segunda-feira, 5 de junho de 2017

JOSÉ CASTELLO | Floriano Martins traz poetas hispano-americanos ao Brasil


Um cearense de 42 anos, autodidata de formação, assina aquele que foi, provavelmente, o mais interessante livro de entrevistas lançado no País em 1998. Escritura Conquistada (Diálogos com Poetas Latino-Americanos), um respeitável volume de 407 páginas, foi publicado em complicada, mas eficaz, coedição entre a Fundação Biblioteca Nacional, a Universidade de Mogi das Cruzes, de São Paulo, e a editora Letra & Música, de Fortaleza. Traz longos diálogos, densos e bem meditados, do autor, o poeta e crítico literário cearense Floriano Martins, com 24 poetas do continente, entre eles nomes importantes, mas absolutamente desconhecidos entre nós, como o nicaraguense Pablo Antonio Cuadra, o peruano Javier Sologuren, o chileno Pedro Lastra, o cubano José Kozer e o argentino Leónidas Lamborghini. Há quatro brasileiros na lista de entrevistados: o poeta, tradutor e crítico Ivan Junqueira, que não é preciso apresentar; Sérgio Lima, um raro representante do surrealismo na poesia brasileira; Sérgio Campos, poeta falecido precocemente em 1994, aos 53 anos, que se definia praticamente de uma “arte arcaica”; e o poeta mineiro radicado em São Paulo Donizete Galvão.
É curioso, primeiro, que um trabalho de tal qualidade necessite de uma verdadeira operação de guerra editorial para, finalmente, vir à luz. E depois, mais curioso ainda, que seja um crítico e poeta de Fortaleza, em ponto tão distante da fronteira hispânica, quem venha a realizar esse esforço de confronto, mas também conjunção entre as duas Américas.
Floriano Martins é bem um intelectual nordestino. Vive das críticas que escreve para a imprensa local, de projetos gráficos (pois é também projetista gráfico autodidata) e de traduções, fazendo verdadeiras contorções para levar à frente seus projetos literários. É um escritor de luta – e é isso, antes de qualquer outra coisa, o que causa respeito. Recentemente, aliás, chegaram ao mercado seus dois mais recentes trabalhos como tradutor: uma antologia de poemas de Federico García Lorca e um livro de contos do cubano Cabrera Infante, ambos editados pela Ediouro, do Rio, volumes que também organizou e prefaciou.
Como poeta, Floriano Martins já tem dez livros publicados, o primeiro em 1979. Livros, reconhece, que como costuma ocorrer com a poesia brasileira, caíram no esquecimento quase completo, sobretudo por causa do eterno problema da distribuição. Alma em Chamas (Letra&Música), o mais recente, acaba de chegar às livrarias nordestinas. Floriano Martins circula sempre que pode pelo Rio, onde frequenta poetas e críticos como Marco Lucchesi, Ivan Junqueira e Antonio Carlos Secchin, e por São Paulo, onde morou entre 1982 e 1987 e deixou amigos e interlocutores assíduos como Claudio Willer e Donizete Galvão. Mas é, por princípio, um grande solitário – ainda mais agora que trabalha em casa e vive apenas para escrever.
E não para de escrever. No fim do ano passado, publicou pela Fundação Memorial da América Latina um belo ensaio, Escrituras Surrealistas, dedicado ao estudo (bastante desprezado, é bom recordar) do surrealismo na América hispânica. Somado ao volume de entrevistas, ao livro de poemas e às duas traduções, foram cinco livros publicados em apenas um semestre. Não satisfeito, Floriano trabalha agora em O Fogo nas Cartas, um volume que reúne entrevistas com escritores brasileiros e algumas das resenhas críticas que publicou na imprensa.
Em parceria com o poeta chileno Pedro Lastra, trabalha ainda na organização de uma antologia da obra do poeta chileno, já falecido, Enrique Lihn – a ser publicada simultaneamente no Chile e no Brasil. Dedica-se também a traduzir uma novela do escritor costarriquenho Alfonso Peña. E faz anotações, já bastante avançadas, para um volume de ensaios sobre os moderrnistas na América hispânica. “Nesse caso, em vez de entrevistas, pois todos já morreram, eu os apresento por meio de ensaios”, explica.
Desde que abandonou um emprego público, há três anos, para dedicar-se integralmente à literatura, Martins parece tomado pela febre de escrever. Mas não vê nada demais em seu ritmo avassalador de trabalho. “São projetos que eu vinha desenvolvendo devagar e agora chegaram à hora de concluir”, diz. É hora também de falar sobre o que finalmente está concluindo. [JC]

JC Como começou sua paixão pela poesia hispano-americana?

FM Isso surgiu pelos idos de 83, 84, ao receber de um amigo na Espanha, de presente, a Poesia Completa de Cesar Vallejo. Logo no prólogo encontrei referências ao chileno Vicente Huidobro e ao uruguaio Julio Herrera y Reissig, poetas que eu desconhecia, ambos da lavra modernista, da virada do século – o modernismo na América hispânica equivale, aproximadamente, ao nosso simbolismo. São poetas que me despertaram grande curiosidade e me estimularam a descobrir as trilhas invisíveis dessa poesia. A partir deles, em um ou dois anos, estabeleci uma vasta rede de correspondência com escritores do continente. Nas primeiras cartas, eu me identificava como um autor brasileiro curioso a respeito da literatura hispânica e me dizia interessado em me corresponder. As respostas foram, no geral, muito acolhedoras. Em pouco tempo, eu me correspondia com dezenas, centenas, mesmo, de poetas de todo o continente.

JC Em que época começou a fazer as primeiras entrevistas?

FM Já entre 1985 e 88, comecei a fazer entrevistas com escritores brasileiros, que publiquei em parte no Suplemento Literário do Minas Gerais e também no suplemento do Diário do Nordeste, de Fortaleza. Só agora eu as estou reunindo em um livro, Fogo nas Cartas, que acabo de organizar. Esse não é só um livro de entrevistas: é uma seleção dos textos que publiquei na imprensa. Há também resenhas, comentários e artigos críticos.

JC Viajou pela América Latina para fazer as entrevistas?

FM Todas elas foram feitas por carta. Em alguns casos, houve um vaivém: eu recebia um lote de respostas e remetia em seguida novas perguntas, num diálogo lentíssimo. Com os escritores brasileiros, afora raras exceções como o Claudio Willer e o Roberto Piva, que foram feitas pessoalmente, trabalhei da mesma forma. A técnica que passei a exercitar, e que hoje prefiro, é a da entrevista epistolar. Pode-se pensar que optei por ela só por força das contingências, mas não é só isso. As entrevistas feitas por cartas proporcionaram-me uma profundidade maior e as conversas tornaram-se também textos literários.

JC Quando você começou a trabalhar nas entrevistas?

FM As entrevistas com os hispano-americanos foram feitas entre 1988 e 1995, portanto ao longo de quase oito anos. Foi preciso ter paciência. Há a demora natural da correspondência internacional. E também houve outros autores que, por uma razão ou outra, acabaram por recusar-se a responder minhas perguntas e perdi longo tempo esperando por isso. O livro só ficou pronto em 1995. Foi entregue à gráfica em julho de 1998 e em agosto estava pronto – uma década depois da primeira entrevista. Foi uma edição pequena: dois mil exemplares foram entregues à própria Biblioteca Nacional e a tiragem restante, não mais que 700 exemplares, ficou com a editora, que teve de enfrentar as dificuldades de distribuição. Fiz lançamento em Natal, São Paulo, Rio e Brasília, ocasião em que as pessoas puderam comprar o livro. São os exemplares que sobraram dessa leva, não sei quantos, que ainda estão nas livrarias.

JC Que critérios usou para a escolha dos entrevistados?

FM Todos os entrevistados representam, de alguma maneira, momentos inestimáveis da poesia contemporânea em seus países. Representam muitos gêneros, estilos, escolas. O chileno Enrique Gómez-Correa, ou o venezuelano Juan Calzadilla, ou o colombiano Fernando Charry Lara foram, por exemplo, os fundadores de importantes movimentos literários em seus países. Além disso, há a importância muito grande que alguns deles deram ao ensaísmo e à tradução, como é o caso do peruano Javier Sologuren, ou o do chileno Pedro Lastra, ou o do boliviano Eduardo Mitre. É a multiplicidade que define a existência do poeta em nossa sociedade.

JC Esses poetas consagrados confirmaram seu prestígio?

FM Tive mais confirmações que desilusões. Tive, sim, algumas frustrações. O chileno Enrique Lihn, por exemplo, às vésperas de nosso encontro, morreu. Não pude entrevistar o peruano Emilio Adolfo Westphalen, que, ao lado de César Moro, outro peruano que já morreu, é um dos mais destacados nomes do movimento surrealista do Peru. Ele queria receber-me, mas está muito velho, com problemas de saúde, e não foi possível.

JC Por que estamos tão isolados da poesia da América hispânica?

FM Segundo alguns dos entrevistados, o isolamento dá-se por causa da ineficiência das ações diplomáticas de seus países. Outros acham que há um desinteresse mútuo, expresso na frase “nós não nos interessamos por eles porque eles não se interessam por nós”, o que, além de não resolver o problema, é um argumento falho. Basta pensar que em alguns países como o México, o Peru e a Venezuela se publicam coleções importantes de autores brasileiros. A Biblioteca Ayacucho, da Venezuela, por exemplo, tem um programa editorial com obras completas de autores da a América Latina, entre eles vários brasileiros, como Drummond, José Lins do Rego e Machado. Além do mais, há o mais inaceitável dos argumentos: o da falta de mercado. A verdade é que não temos nenhum programa editorial para a publicação da poesia hispano-americana. E os poucos poetas que chegam até nós, chegam às vezes de forma bastante estranha. O argentino Enrique Molina, por exemplo, entrou no Brasil por meio do único romance que escreveu, um romance histórico! Ele morreu há dois ou três anos, deixando dez excelentes livros de poesia, mas só conhecemos seu único romance, de menos importância. As editoras parecem, às vezes, trabalhar às cegas.

JC Isso, provavelmente, produz uma visão distorcida da poesia hispano-americana contemporânea.

FM Sim, há um desconhecimento em relação ao que se passa lá fora e, em consequência, há, como eu costumo chamar, um “desprograma” editorial. O nicaragüense Ernesto Cardenal, bastante conhecido no Brasil, é, na verdade, um poeta de menor importância em sua geração. Basta confrontar sua obra com a de Pablo Antonio Cuadra, um de meus entrevistados em Escritura Conquistada, e também com a de Luiz Alberto Cabrales, e se verá a diferença. E, no entanto, enquanto esses dois são absolutamente desconhecidos no Brasil, já temos pelo menos uma antologia de Cardenal em português. O mesmo se dá em relação ao Chile. Enquanto se disseminam as traduções do pior Neruda, desconhecemos poetas como Pablo de Rokha, Rosamel del Valle ou Humberto Díaz Casanueva, que são da mesma geração de Neruda e muito aclamados pela crítica chilena. Do mesmo modo, modernistas de importância do mexicano López Velarde, ou do peruano José Maria Eguren, ou do argentino Leopoldo Lugones, continuam desconhecidos no Brasil.

JC E quais seriam os motivos de tantos enganos?

FM Não consigo encontrar nada que justifique esse isolamento e esses enganos a não ser uma desprezível tendência brasileira de considerar a América hispânica mais próxima do Terceiro Mundo do que nós. O que é apenas um efeito cascata no âmbito do colonialismo cultural. Nós somos uma nação sem paidea, desfigurada culturalmente, e aí não aceitamos que possa haver identidade na cultura peruana, na uruguaia, na mexicana. E cometemos um grave erro. O importante seria que os escritores brasileiros concordassem em discutir abertamente o que se passa conosco.

JC Não persistem também zonas de isolamento interno? Apesar de todos os avanços das telecomunicações e da informática, uma cidade como Fortaleza não está ainda culturalmente isolada?

FM A verdade é que só temos dois grandes centros editoriais, São Paulo e Rio, e tudo o mais é periferia. E o que se produz aqui só existe se desaguar e ecoar nesses dois centros. É lamentável, mas é uma realidade. No caso cearense, por exemplo, temos dois poetas que se poderia mencionar nacionalmente: Gerardo Mello Mourão e Adriano Espínola. Mas ambos moram no Rio e, além disso, têm suas obras editadas por grandes editoras do Rio ou de São Paulo, que fazem seus livros existir. A publicação de um livro já não garante sua existência. Um livro só existe quando é lido e para isso precisa ser distribuído. No caso do Ceará, temos poetas como um Francisco Carvalho, e no passado tivemos José Albano e Américo Facó, já mortos, que foram em seu tempo nomes de grande importância. Mas eles não tiveram obras reeditadas. Eu mesmo estou cuidando da reedição da obra do Facó, um poeta esquecido que morreu só há 40 e poucos anos.

JC Ivan Junqueira diz que os poetas cearenses brigam muito entre si – e aponta, assim, para um isolamento interno também.

FM Isso é verdade, mas se dá mais no plano existencial, até porque a inveja é um dos componentes mais característicos do perfil do cearense – e ao revelar isso num artigo na imprensa de Fortaleza, certa vez, eu quase fui apedrejado, mesmo risco que corro agora. A verdade é que no nosso caso a inveja é um componente forte e não diz respeito só aos artistas. Eu não saberia dizer qual é a origem desse sentimento, francamente.

JC Se há pouco espaço, é natural que a competição se acirre.

FM De fato, de uma maneira geral, os poetas são invejosos. Mas é curioso ver até que ponto essa briga se dá entre bons e maus poetas. Não me vem à memória o caso de nenhum bom poeta que participe desse tipo de atitude, mas posso estar enganado. O fato é que não nascem bons poetas todo dia, mas todo dia há alguém querendo ser poeta e isso cria um ambiente propício para esse tipo de atitude. A poesia que se divulga hoje em raros momentos vai além de superficialidade, de maneirismo retórico, e o que se vê é uma ausência quase absoluta de identidade. Os poetas, hoje, são sempre epígonos de alguma determinada circunstância, escrevem sempre “à maneira de”. Boa parte desses poetas mais divulgados é, além disso, refém da imagem. Brinco dizendo que se tirassem o vaso de flor da janela não teriam mais sobre o que escrever.

JC O contato pessoal com os poetas que entrevistou não teria sido importante?

FM De todos os poetas o único que conheci pessoalmente foi o chileno Rolando Toro. E isso porque ele esteve em Fortaleza e veio à minha casa. Poetas da América hispânica raramente aparecem no Nordeste. Mas as cartas permitem uma aproximação muito boa e também que se faça muita coisa a partir delas. No ano passado, por meio de uma correspondência intensa com a revista literária Blanco Móvil, do México, fizemos uma edição da revista inteiramente dedicada à literatura brasileira contemporânea, organizada e apresentada por mim.

JC Como é o contato entre os poetas nordestinos?

FM A grosso modo, os poetas não se comunicam entre si. Mais do que a disputa, há o isolamento. Isso é do temperamento dos poetas? Do meu não é. Não faço parte disso, não entendo, mas os escritores têm dificuldade de ir à imprensa, acham que a imprensa é que deve ir a eles. Depois reclamam que não há espaço para eles… Muitas vezes isso é verdade, mas outras vezes vejo o oposto: o escritor acha que tem de vir alguém atrás dele, a começar pelo próprio colega, o outro escritor. Isso é pela vaidade, pelo orgulho, ainda muito fortes no temperamento do escritor brasileiro.

JC Só do brasileiro?

FM Nas entrevistas com os hispano-americanos não transparece esse tema do orgulho. Há, no entanto, alguns casos bem parecidos. Os colombianos também são um tanto quanto desunidos. De um modo geral, não vejo esse orgulho e essa vaidade em outros países, não quero dizer que não exista. Vejo, sim, o inverso disso, como é o caso dos poetas peruanos, que são muito unidos.

JC Não são as condições adversas, de mercado, que provocam tanta competição?

FM Isso pode ser uma boa defesa dos escritores, mas não é justificativa. Com condições editoriais mais favoráveis, num local com uma tradição de publicação de revistas poéticas, etc., podem competir menos. Aqui as revistas ainda são sazonais, sem consistência, sem durabilidade. Logo, há menos espaço para os escritores e os ânimos se acirram. Países pequenos como a República Dominicana ou Porto Rico têm, ao contrário de nós, grande tradição de revistas literárias. O México, nesse sentido, é insuperável. Não há mais espaço para a aventura literária, três amigos juntarem-se para fazer uma revista. Hoje, uma revista é uma empresa, tem de ser feita em outras bases. E, quando há a oportunidade de uma revista se firmar, sempre aparece alguém disposto a invalidar o trabalho.



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Entrevista concedida, por telefone, a José Castello. Originalmente publicada no Caderno 2, do jornal O Estado de S. Paulo. São Paulo, 06/02/1999. JOSÉ CASTELLO (Brasil, 1951). Biógrafo, crítico literário, cronista, romancista e jornalista.
Colagens reproduzidas nesta página:
2005 Equilíbrio de assombros
2005 Escombros da memória
2005 Indecisões do imaginário
2005 Percurso entre dois mundos

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Organização a cargo de Márcio Simões e Floriano Martins © 2017 ARC Edições
Artista convidado | Floriano Martins
Imagens © Acervo Resto do Mundo
Esta edição integra o projeto de séries especiais da Agulha Revista de Cultura, assim estruturado:

1 PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)
2 VIAGENS DO SURREALISMO, I
3 O RIO DA MEMÓRIA, I
4 VANGUARDAS NO SÉCULO XX
5 VOZES POÉTICAS
6 PROJETO EDITORIAL BANDA HISPÂNICA
7 VIAGENS DO SURREALISMO, II
8 O RIO DA MEMÓRIA, II
9 SEGUNDA ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)

A Agulha Revista de Cultura teve em sua primeira fase a coordenação editorial de Floriano Martins e Claudio Willer, tendo sido hospedada no portal Jornal de Poesia. No biênio 2010-2011 restringiu seu ambiente ao mundo de língua espanhola, sob o título de Agulha Hispânica, sob a coordenação editorial apenas de Floriano Martins. Desde 2012 retoma seu projeto original, desta vez sob a coordenação editorial de Floriano Martins e Márcio Simões.

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