segunda-feira, 3 de abril de 2017

ESTER FRIDMAN | Viagem através da linguagem - uma genealogia dos opostos


Para a filosofia tradicional todos os opostos estão separados, não tem a mesma origem, e não podem nascer um do outro. Os filósofos utilizam as oposições bem e mal, falso e verdadeiro, certo e errado, supondo que as coisas “boas” têm uma origem e as coisas “más” outra; ou que as coisas verdadeiras têm uma origem e as coisas falsas outra. São dadas assim, fontes diferentes para cada um dos opostos. Nietzsche desvia-se deste caminho, dizendo que os opostos têm a mesma origem. Não existe uma origem para o bem e outra para o mal. Os opostos, tendo a mesma origem, estão enredados, são as mesmas forças que transitam de um polo a outro.
Essa questão dos opostos não parece ser mistério para filólogos. Algumas línguas antigas faziam uso de uma só palavra para designá-los. Sabe-se que além de Nietzsche, a Alemanha contava com muitos filólogos no século XIX, dentre eles Karl Abel (1837-1906). Abel publicou, em 1884, um trabalho intitulado A Significação Antitética das Palavras Primitivas, incluído, no ano seguinte, nos Ensaios Filológicos. [1] Não tenho conhecimento se Nietzsche teve acesso ao referido trabalho, ou se ele próprio fez um estudo neste sentido. Mas, o conteúdo da exposição de Karl Abel me parece muito pertinente no que se refere ao “conceito” de polaridade dentro do pensamento nietzschiano. De acordo com Abel, a língua egípcia antiga comporta muitas palavras com dois significados, sendo um o oposto do outro. É como se, em português ou alemão, por exemplo, tivéssemos a mesma palavra para designar grande e pequeno, em vez de duas. E, de acordo com o estudo de Abel, em um estágio ulterior dessa língua antiga, havia palavras compostas, que continham dois opostos, mas significando apenas um. Por exemplo, a palavra velho-jovem significava jovem e a palavra longe-perto significava perto. A explicação para esse fenômeno da linguagem, segundo o filólogo, é que só conhecemos algo pela existência de seu oposto – se não houvesse noite, mas apenas luz, não haveria como distinguir luz e escuridão. Dessa forma, todo conceito vem de seu contrário e um não existe sem o outro. Assim, para comunicar um conceito, os antigos tinham como medida o seu contrário. Quando queriam comunicar que algo é forte, por exemplo, a palavra forte continha o seu oposto fraco. Segundo Abel, os significados opostos presentes na língua egípcia encontram-se também nas línguas semita e indo-europeia. E é muito provável que estejam presentes em outros grupos linguísticos. Em latim, por exemplo, há uma só
palavra para designar sagrado e maldito, que é a palavra “sacer”. Interessante notar que em alemão “stumm” é mudo, calado, e “stimme” é voz. Resquícios dessa característica de línguas antigas podem ser encontrados nas línguas modernas. Um exemplo típico é a palavra “without”, da língua inglesa. Seu significado é “sem”, mas a palavra vem acompanhada de seu oposto “com”. Tudo indica que foi através de um processo gradativo que o homem aprendeu a separar os dois lados de uma antítese e a pensar um deles de forma completamente isolada do outro. Antes se pensava junto – a ligação entre os opostos era natural, espontânea. Uma vez feita a separação na linguagem, foi uma questão de tempo para que o homem pensasse que a separação existe de fato. Geração após geração nasceu já imbuída de uma linguagem na qual a separação dos opostos já era completa, efetiva e aceita. Uma vez que há uma palavra para designar uma coisa, e outra, completamente diferente, para designar seu oposto, parece obvio que os opostos têm origens diferentes. Só um filólogo para dizer que não.
Se toda essa questão ficasse somente entre os filólogos, seria apenas mais uma curiosidade interessante sobre a linguagem. Mas Nietzsche trouxe isso para a filosofia, ou seja, para a vida. A ciência foge das ambiguidades e não se dá conta do quanto elas fazem parte da vida. O vocabulário das línguas antigas, composto por palavras ambíguas, estava mais próximo da origem dos opostos. Muitas respostas às questões filosóficas já estavam na própria palavra. Hoje designamos os opostos com palavras diferentes e desconexas, perdendo assim a compreensão imediata de seu parentesco.
Enquanto Nietzsche falava da origem comum dos opostos, Freud, investigando os sonhos de seus pacientes, notou que

o modo pelo qual os sonhos tratam a categoria de contrários e contradições é bastante singular. Eles simplesmente a ignoram. O “não” parece não existir, no que se refere aos sonhos. Eles mostram uma preferência particular para combinar os contrários numa unidade ou para representá-los como uma e mesma coisa. [2]

A linguagem dos sonhos não é a mesma linguagem do estado de vigília. A psicologia trabalha com a hipótese de que a linguagem onírica é uma linguagem do inconsciente. Este parece lidar mais com símbolos do que com conceitos, tanto é que depois de Freud e, principalmente, depois de Jung, os terapeutas tentam interpretar os símbolos contidos nos sonhos de seus pacientes. Os símbolos remeteriam à totalidade do homem, o self, para usar o termo junguiano, enquanto que a linguagem conceitual do estado de vigília remeteria apenas à parte racional do homem, à pequena razão, para usar um termo nietzscheano.
A questão dos opostos chamou a atenção de Freud não só com relação aos sonhos, mas também com relação ao tema do “estranho”, ao qual dedicou um artigo. [3] Estranho em alemão é “Unheimlich”, oposto à “Heimlich”, que significa doméstico. Estranho, portanto, teria a conotação de não familiar. Ao examinar os significados dessas palavras, Freud descobre que

entre os seus diferentes matizes de significado a palavra ”Heimlich” exibe um que é idêntico ao seu oposto, “Unheimlich”. Assim, o que é “Heimlich” vem a ser “Unheimlich”. Em geral, somos lembrados de que a palavra ”Heimlich” não deixa de ser ambígua, mas pertence a dois conjuntos de ideias que, sem serem contraditórias, ainda assim são muito diferentes: por um lado significa o que é familiar e agradável e, por outro, o que está oculto e se mantém fora da vista. (…) Por outro lado, percebemos que Schelling diz algo que dá um novo esclarecimento ao conceito do Unheimlich, para o qual certamente não estávamos preparados. Segundo Schelling, Unheimlich é tudo o que deveria ter permanecido secreto e oculto, mas veio à luz. [4]

Para quem achar “estranho” o que Schelling afirma, Freud acrescenta: “Dúvidas serão afastadas ao consultar o dicionário de Grimm (1877, 4, Parte 2, 873 e segs.)”. [5]

NOTAS
1. ABEL, K., Über den Gegensinn der Urworte, Leipzig, (154,155-61), 1884 e Sprachwissenschaftliche Abhandlungen, Leipzig, (155,160), 1885 (citado por Freud em um artigo intitulado A Significação Antitética das Palavras Primitivas, in Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol. XI, p. 226.
2. Sigmund FREUD, Obras Completas, vol. XI, p. 141
3. O ‘estranho’, Obras Completas, vol. XVII, p. 273
4. Obras Completas, vol. XVII, p. 282
5. Obras Completas, vol. XVII p. 282 e 283



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ESTER FRIDMAN (Brasil, 1963). Filósofa e escritora, pesquisadora da linguagem simbólica, seu tema de mestrado foi A Linguagem Simbólica no Zaratustra de Nietzsche. Estudiosa também das filosofias da Índia, escreveu Kriya-Yoga e a Filosofia dos Kleshas no Yoga Sutra de Patanjali. Contato: ester8fri@gmail.com. Página ilustrada com obras de Ana Mendoza (Venezuela), artista convidada desta edição de ARC.

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Agulha Revista de Cultura
Fase II | Número 26 | Abril de 2017
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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