sábado, 11 de março de 2017

NICOLAU SAIÃO | É assim que se faz a estória


Estas cartas que aqui se dão a lume fazem luz sobre circunstâncias que aconteciam aquando da Exposição Internacional surrealista “O fantástico e o maravilhoso”, realizada em 1984, no Teatro Ibérico e, seguidamente, pela mão do crítico Rui Mário Gonçalves, posta na SNBA.
Na Nota final se dão mais elementos que, cremos, se necessário iluminarão o que nelas é abordado.
O relato, à guisa de “reportagem”, que na parte final do bloco se insere, descreve – como é patente - um certo ambiente que por essa época envolvia a panorâmica lusitana, mormente nas suas relações com os escritores e pintores surrealistas e outros autores independentes – não contaminados pelo realismo orgânico.

1. De Mário Cesariny a NS (manuscrito), Out. 84

Meu Caro Francisco Nicolau
Depois de muitos picos e oxalá não venham ainda outros mais agudos, o Catálogo da Exposição ficou ontem entregue e agora eles que dêem ao dedo atrasado. Se puder abrir no meio de Novembro já seria muito bom.
Concordo firme com o que na tua última carta dizes do “anarquismo” do e dos Rosemont e o que eu gostava bem é que lho dissesses a ele directamente. Apreciei tanto a tua carta que pensei publicá-la no catálogo, mas parei, porque: teria de ser revista, com vista à publicação; b) levava os textos inseridos para um terreno de que, no geral, estão alheios.
Assim, do que lá vem, e como “responsabilidade” minha no ter posto, penso que será bastante publicar, juntamente com o texto do Rosemont “Para o II Incêndio de Chicago” (que é quanto a mim um belo texto de furor poético) o texto do John Lyle de que fiz um Bureau (chata palavra esta) Surrealista ainda este ano, texto que é contradita formal aos apelos ó Marx ó Freud ó Trotsky ou Lenine; e ainda o texto do Jean-Jacques Dauben/Timoty R. Johnson, que é ultrapassagem serena da questão.
Repito-te que era muito bom (sobretudo para ele) que, e agora que v/ estão em contacto directo, lhe escrevesses dizendo. Mas teria de ser em inglês ou francês porque lá o português não se ouve. Julgo que em espanhol também poderia ser. Ou chinês.
O quadro do Mourato tem que vir. O mesmo problema há em relação às esculturas da Silvia Westphalen e do Pedro Fazenda, que são material pesado e estão em Lagos.
O Carlos Martins tem sido um amigo e um colaborador admirável, e não ponho um pêlo de dúvida de que se esta Exposição se faz ou fez muito mais de metade da força necessária a tal loucura é dele. Mas é também um emotivo, uma emoção a andar, como de criança. Boa, que é a diferença entre ele e o Cruzeiro Seixas, que sempre fez, ou gostou de fazer, de criancinha má.
O que dizes dos “amigos” de aí, quanto a ajudas (transporte do quadro do Mourato), está um pouco contrabalançado pelo que a mesma gente tem feito aqui para desembaraçar obstáculos inenarráveis e seculares. Assuntos alfandegários medonhos e outros medos mais.

Hoje o Teatro Ibérico estreia a Celestina. Vou ver.

O Nicolas Calas refere-se a montras no texto que traduziste. E ainda que isso esteja enterrado lá no 1940, eu ainda me lembro de ter visto, pelo menos duas delas.
Velho, ã?

O Arpad Szenes caíu não sei como e está com um osso para pegar. Com a idade dele isso é pior do que mau. Escrevi-lhe e enviei-lhe o poema que lhe dedicas e vai sair no catálogo.
A ideia é incitar o osso.

Escreve ao Rosemont, mesmo em chinez. Ou encontra aí quem te verta em inglês ou francês. Eu, a ele, já disse o que tinha a dizer há pares de anos.

Parece que o Robert Green, a Debra Taub, o John Graham, o Ludwig Zeller, a Susana Wald e o Granell vêm cá ver a Exposição. E há um Australiano muito muito bom que diz que já não pode com tantos cangurus e quer vir para a Europa. Arranjas-lhe vida de artista aí em Portalegre?
O Mourato deve vir ver a Exposição! Trá-lo contigo.

Grande abraço
Mário


2. De NS a MC (a carta a que este se refere na sua), 26 Set. 84

Mário:
Apresso-me a escrever-te para te dizer que, com efeito, o papel do Rosemont é de facto de mais. É, pelo menos, um bom serviço prestado aos kgb e companhia, sob a sua capa anarcaqueirante.
Não alinho nisso; seria bom compreender-se que, também eu, não concordo com a sua inclusão no Catálogo; o fantástico e o maravilhoso, sendo a inteligência e a poesia em funcionamento prático, não se compadecem com a vizinhança de pistolinhas de Chicago. Aquilo não é revolucionarismo, é politiquice às três matracadas.
Creio que é urgente mandares dizer a Rosemont que a Exposição nada tem a ver com anarquistas federados ou só de chapelinho; para que tudo não se complique e comece a ficar macacal. E dê merda.
Por outro lado, importa dizer de uma vez por todas: eu não sou anarquista, explicando: sou libertário porque surrealista. A minha estadia junto dos anarquistas ibéricos foi um equívoco provocado pelo facto de eu julgar que as pessoas que se dizem livres têm poesia na cabeça e no corpo, trocando: que são a própria poesia.
Quem são a própria poesia são os poetas: tu, eu, o Martins, assim. Os outros podem sê-lo eventualmente, mas não se têm notado nada. São anarquistas de aviário ou “pistoleiros” puros e simples. A Anarquia, para mim, teria de ser a poesia em movimento. Mas aqui (ou em todo o lado? Espero que não) é só a politiquice duma dada extrema. Que vão para a pôrra, definitivamente. O único anarquista verdadeiro é o homem criativo, o Poeta, que não se curva a cores e traquitanas. E disse, caraças!
Concordo pois contigo e Carlos que importa levar a Rosemont as “actas de Niceia” (passe a piada!). O texto dele parece-me menos surrealista que exaltado. E a exaltação assim é meia-mantença de um outro conformismo. Prefiro os índios e os esquimós, mais que os americanos em (pseudo?) rebeldia. Tenho a ver com os Dogons (assim como com Basile Valentim) nada tenho a ver com Marx e Lenine. E pronto, punheta!
Cago tanto na LSD como nos manifestos eleitoralistas. Tanto me urino nas bombas de compra ou de fabrico próprio como nos artefactos dos cabrões dos militares e estados-maiores. E acabei.
Amanhã te mandarei o resto da tradução do Calas. Acredito no valor do livro dele se o dizes. Aliás estes textos dele não são maus, são só horrivelmente ingénuos (embora necessários, e além disso a inteligentsia de cá é tão estúpida que não irá dar por nada). Depois, um dia, falaremos disso.
Os meus textos que apontas não estão publicados em nada a não ser as cópias fotocopiadas que te mandei – com excepção do Picasso.
Agrada-me que tenhas colocado esses para publicação no catálogo.
Talvez dentro deste tempo eu tenha dinheiro para editar um livro (que dizes a “Objectos inquietantes” ou outro?) Fala disto. Procura por favor uma tipografia que faça BARATO, PÁ. Davas capinha? Então vê lá isto. Estou um bocado melhor, depois falaremos de viva voz.
E viva a Poesia, a revolta e a beleza sem amarras nenhumas.
E vejam lá isso sobre o Rosemont. Se não, qualquer dia estão a fabricar bombas atómicas de bolso. O que é tão mau como o resto.

Abraço grande do
Francisco (nome civil de NS, também manuscrito)

NOTA
Coincidindo com os prolegómenos da Exposição "O fantástico e o maravilhoso", o diretor do quinzenário Voz anarquista (Francisco Quintal) aceitara a minha sugestão de ali ser dada a lume uma "página surrealista" organizada por nós (eu e Mário); assim sendo, juntámos colaboração de surrealistas nacionais e estrangeiros; Franklin Rosemont (EUA), para além de um bom texto sobre o surrealismo destinado ao Livro-Catálogo da Exposição (e que conto publicar numa próxima edição) mandava um outro destinado eventualmente à dita página no qual, visto o anarquismo – conforme à tradição - ser de esquerda, se debruçava com extrema "militância esquerdista" sobre o momento português - manifestamente devido ao desconhecimento do que de facto sucedia em Portugal, onde os surrealistas eram marginalizados e fortemente hostilizados (bem como muita outra gente) pelo partido político que ali representava o império soviético e liderava as operações de conquista do poder em conformidade.

O RELATO-“REPORTAGEM”: “PELA PORTA DO CAVALO”

No decorrer da turbulenta sessão surrealista aqui referida e durante a qual se esboçaram entre alguns assistentes amoráveis pequenas cenas de pugilato e outras danças a carácter propiciadas por espectadores fãs dos situacionistas de Leste, além de um poema (já publicado em diversos órgãos e espaços informativos) Mário Botas – que ali nos fôra acompanhar como espectador - teve a gentileza de me oferecer um desenho aguarelado de excelente feitura. Perdido sem apelo nem agravo entre os eflúvios da zaragata ficou ele, creio que capturado por um desembaraçado anónimo admirador do pintor - o que a ninguém dói mais que a mim, seu feliz proprietário durante o melhor de aí uns vinte minutos… ou duas horas.

Sei, por tradição escrita e oral, que há uns senhores (ensaístas ou biógrafos, lhes chamam) que têm por mester traçar a vida e os cometimentos dos que em esta vida pintaram ou poetaram. Dedicado a esses bons espíritos, poupando-lhes assim trabalho moroso de investigação, é que segue este resquício de texto, enviesado porque os tempos não dão para mais.
Ora foi que no passado dia 1 de Novembro dei comigo, de juntura com o Mário Cesariny, num salão de Alcântara a falar de surrealismo. A sessão foi algo picaresca. No meio de gente atenta e interessada houve (e ainda bem, ou mal) uns fulanos que não aguentaram o Artaud, os negros Nauba em livro que lhes dei a ver, os poemas do Mário e os meus próprios. No meio da conversa deram de si, o que foi curioso de contemplar. Já toda a gente sabe que no Movimento político luso (digamos assim por comodidade) há, discreta e séria, uma doce corrente meio nazi/ meio estalinista, expressa ou camuflada. Tão camuflada que por vezes nem os próprios se reconhecem. Bem certo é que o estampido das suas cabeças por dentro lhes dificulta às vezes o conhecimento intrínseco de si mesmos, mas o que não está bonito é que deixemos os vindouros sem isto lhes assinalarmos.
A palestra sucedeu no âmbito da Semana de Presença Libertária. Antes de nós tinha actuado o Grupo Mandrágora com uma peça em um acto de Jorge de Lima Alves, “Jau”, que está a preparar-se para enfrentar o público. Bons moços, os de “Jau” precisam, fundamentalmente, de dinheiro. Como não lhes sairá, seguramente, a Taluda por estes meses mais chegados, talvez outra entidade abone.
Depois de eu ter apresentado uma breve resenha dos prolegómenos dadaístas e surrealistas, Mário Cesariny “para lançar uma ponte entre todos e que permitisse intervenções e perguntas”, começou a ler umas linhas de Artaud, do seu livro “Viagem à terra dos Tarahumaras”. Foi quase a seguir que começou a bagunça (peço desculpa aos meus futuros biógrafos mas não posso utilizar outro termo menos vernáculo): um senhor de barbas, atingido pela voz do autor de “A cidade queimada” e pelos ecos de Artaud, increpou logo o ledor, perguntando-lhe com laivos que pensou irónicos se “aquilo era uma lição de antropologia”. O que ele queria, viu-se depois, era que os surrealistas dissessem ao que vinham, como os pajens de antanho. Qual era o seu presente e, eventualmente, o seu futuro. Antes de lhe responder, o que fiz seguidamente, uma senhora do sector interessado desfechou-lhe com vivacidade o que ele estava a pedir: “que aquilo não era um comício e, se não estava interessado na voz dos poetas, podia sair e arejar o ambiente”. O rapaz de barbas, que devia ser um tímido, calou-se prudentemente.
Depois de Cesariny lhe ter dito que, ao contrário dele, não acreditava no progresso ocidental, que era o que repassava a sua intervenção, pouco na história e ainda menos no futuro da literatura, afirmei-lhe por minha vez que me parecia que Artaud, pondo de parte o interesse evidente do seu relato, todo percorrido por uma aragem de paixão e imaginação, não estava morto. “Neófito, não há morte”, como dizia o Fernando Pessoa. Além disso, era de nos interrogarmos se não estariam mais mortos os laboriosos mentores da cultura cristã inventora da corrida em frente (para o abismo). Quanto ao surrealismo, vai indo bem e de saúde: a poesia sob todas as formas é o que lhe interessa, os totalitarismos o que não lhe quadra. Disse alguns textos do Cesariny e meus, espalhando revoada de diabos. Recompostas as coisas, tracei um panorama do que se pode entender por acção poética: prospecção do humor negro, do amor e da alta Aventura, da ligação ao não-autoritarismo, à Beleza e ao repúdio do que por detrás dela se esconde como um rinoceronte: o horrível do Belo, exemplificado entre nós por sarcófagos altifalantes como José Augusto França, Prado Coelho, universitários e outra gente de fraque. Expliquei mais ou menos em tempo porque é que aderimos à chamada Utopia dos Grandes Transparentes, porque negamos a religião clerical e o Poder, seja ele de Estado ou de sector. Foi a seguir, quando coloquei o Dada retardado Vaneigen no lugar que lhe compete (estraga-albardas mascarado de sacristão, exemplificado pela repugnante frase “a Esperança é a trela da submissão”) que alguns rapazes ficaram um pouco ourados. Após dar a minha opinião sobre o que eles pretendem destruindo a Poesia e a Arte (a arte lúcida e viva) e que é simplesmente destruir a forma mais eficaz de criatividade, dei a altura e a água ao Mário que mostrou sem margem para confusão a razão de serem os adeptos de Vaneigen iguaizinhos aos moços de Brejnev: adesão a um comportamento rígido e totalizador, sequelas sexuais não resolvidas, ódio à Vida no mais alto grau, adesão a esquemas maniqueístas. Depois de me referir ao exemplo que Bradbury equacionou no seu magnífico “Fahrenheit 451”, uma sociedade crestadora dos livros, das pinturas, mergulhada na masturbação, no comer-dormir-trabalhar e na delação, foi aí que tive oportunidade de ver saltar do canto um indivíduo espumando de fúria que, parecendo conhecer-me, achou “que tinha de acabar-se com a Arte e os artistas”. Retorqui-lhe que só havia um meio para isso – prender em campos de concentração os ditos, queimar os quadros e instaurar a polícia total do pensamento e do corpo. Pelo que me dizia respeito garantia-lhe que, mesmo numa cela, mesmo retalhado, continuaria a fazer versos, se não escritos pelo menos pensados. O indivíduo em causa, persistindo, afirmou-me que o que lhe interessava era “destruir o surrealismo”, programa aliás digo eu já no mapa de certos sujeitos como Hitler, Mussolini e Salazar. O que o indivíduo queria significar era sem dúvida “destruir a poesia” que para ele ao que percebi é apenas alibi e truque.
Censurado por alguns assistentes, com quem chegou a envolver-se em disputa física apartada por outros, a pessoa tentou continuar a conversa lá fora, não sem antes me tentar aplacar dizendo-se magoado por eu o ter comparado ao Brejnev. De facto comparei-o mal: parece-se mais com um jovem e desaparecido membro da “Jugendgroup” que vi num filme sobre a Segunda Guerra Mundial.
A sessão, ao que percebi, iria acabar mal se um interveniente não tivesse vindo pôr termo ao espectáculo (passe a ironia) falando na hora tardia.
E foi só.
Resta-me garantir aos jovens assistentes interessados que continuarei a poetar. Isto serve também para os não interessados. Agradeço também a atenção expressa pelos outros assistentes: mulheres e homens. E até sempre…

ns

NOTA
Este texto foi publicado na página cultural do semanário alentejano “A Rabeca”, órgão de informação onde na altura colaborava.



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NICOLAU SAIÃO (Portugal, 1949). Poeta e ensaísta, tradutor e artista plástico. Página ilustrada com obras de Joseph Cornell (Estados Unidos), artista convidado desta edição de ARC.

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Agulha Revista de Cultura
Fase II | Número 25 | Março de 2017
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