sábado, 11 de março de 2017

ALASTAIR SOOKE | Joseph Cornell: o homem que guardou o mundo numa caixa


Os artistas têm sido móveis desde a antiguidade, quando escultores e pintores autônomos se deslocavam pela costa do Mediterrâneo à caça de encomendas.
Foi, sem duvida, o que aconteceu na Renascença, quando o alemão Albrecht Dürer, por exemplo, visitou Veneza e documentou a jornada em uma série de aquarelas geniais. A tradição clássica que encontrou na Itália transformou a maneira como realizava suas imagens.
Um par de séculos depois, era comum que artistas do norte europeu viajassem, muitas vezes através da França e pela Itália, no chamado Grand Tour, para familiarizar-se com as obras-primas da antiguidade.
Foi exatamente o que fez Jean-Étienne Liotard, artista suíço do século 18 especializado em retratos a pastel imaculados e magníficos que podem ser vistos em uma nova exposição na Royal Academy of Arts de Londres – e chegou a Nápoles pela primeira vez em 1735, antes de prosseguir até Roma e Florença.
“Como faziam todos os artistas dignos do nome no século 18, Liotard foi à Itália para ter acesso à tradição antiga, e também à renascentista,” explica MaryAnne Stevens, uma das curadoras da exposição doa RA. “Mas ele foi, também, porque havia ali uma fonte em potencial de encomendas, já que todos estavam fazendo o Grand Tour.”
Por “todos”, Stevens se refere aos nobres, cortesãos, diplomatas, poetas e tantos outros que consideravam o Grand Tour um elemento essencial para a formação de um cavalheiro. Em 1738, Liotard acompanhou uma dupla de ‘milords’ da aristocracia inglesa em uma jornada até Constantinopla, onde permaneceu por quatro anos. Pelo restante de sua carreira, vendeu – com considerável sucesso, sua imagem como a d’O Turco.
No século 19, o grande pintor romântico francês Delacroix ficou extasiado com suas experiências no Norte da África, no Marrocos e na Argélia. As vistas que encontrou o inspiraram por toda a vida: “A cada passo há quadros prontos”, escreveu da cidade de Meknes.
O modernista francês Matisse também encontrou sustento estético no Marrocos, que visitou por duas vezes entre 1912 e 1913. Matisse, aliás, muitas vezes recorria às viagens quando se sentia travado no trabalho de pintor. “Em frente à tela, não tenho ideia nenhuma”, escreveu em carta à filha Marguerite, em 1929.
Para reabastecer seu patuá artístico, programou uma viagem ao Taiti no ano seguinte – talvez em homenagem ao pós-impressionista Gauguin, que vivera e trabalhara na Polinésia Francesa.
“Não se pode viver em uma casa bem cuidada demais, uma casa mantida por tias do interior,” disse Matisse a um amigo pouco antes da viagem ao Taiti. “É preciso ir à selva para encontrar maneiras mais simples de fazer coisas que não sufoquem o espírito.” Durante a última década de sua vida, enquanto produzia seus magníficos recortes de papel, Matisse recorreu frequentemente às suas memórias do Taiti.
Mas aventuras longínquas nem sempre são necessárias quando se trata de criar arte de qualidade – como prova a biografia do mesmérico artista americano do século 20 Joseph Cornell, tema de uma nova retrospectiva no Kunsthistorisches Museum de Viena.
Cornell é conhecido por suas caixas-vitrine, que mesclam objetos disparatados como cachimbos de cerâmica, rolhas, bolas de gude e selos, além de elementos de colagem de papel, resultando em dioramas fantásticos e poéticos.
Passou a vida toda nos Estados Unidos, indo poucas para longe de Manhattan ou da área que cercava sua casinha no bairro do Queens. Mas viveu embriagado da cultura e da história europeias, que pesquisava avidamente, devassando as livrarias da Quarta Avenida durante o intervalo para o almoço em seu emprego entediante de vendedor de tecidos.
Na verdade, seu conhecimento do mundo para além dos Estados Unidos tornou-se tão detalhado que, ao conhecer o artista francês Marcel Duchamp, Cornell travou longa conversa com ele, na língua materna do interlocutor, a respeito de Paris – falando do Louvre e dos lobbies dos principais hotéis da cidade. “Só ao fim da conversa é que Cornell observou que nunca estivera na cidade, coisa que deixou Duchamp sem palavras,” escreveu no catálogo da exposição de Cornell Jasper Sharp, um de seus curadores.
Naples (c. 1942) é típica do surpreendente cosmopolitismo das composições do artista. Em uma caixa de madeira com frente de vidro e equipada com uma alça metálica, vemos uma garrafa de vinho e uma concha em frente à fotografia de uma rua da cidade italiana. Dentro da caixa, uma etiqueta de bagagem com a palavra “Nápoles” pende de um fio preso à parte de cima da caixa, de onde pendem, também, retalhos de pano pálido, como se fossem roupas no varal.
É uma obra de arte altamente urbana e que se apresenta como síntese elegante da memória de uma visita a essa cidade encantadora. A não ser, claro, pelo fato de que Cornell nunca estivera ali.
Quanto mais pensamos no trabalho de Cornell, mais evidentes as alusões à Europa. Há muitas referências à arte europeia, inclusive ao famoso autorretrato de Dürer aos 13 anos, assim como à tradição continental de baús de curiosidades, aos quais suas caixas se assemelham.
Cornell também era apaixonado pelo ballet. “Se fôssemos reconstruir uma biografia sua partindo apenas das obras que temos,” escreveu, certa vez, a historiadora da arte Sandra Leonard Starr, “chegaríamos a uma conclusão confusa. O artista pareceria um fanático belo ballet nascido na Europa em torno de 1800 e que tivesse passado muito tempo viajando pela Inglaterra, França, Itália e EUA, testemunhando muitas das grandes apresentações da história do ballet; 150 anos depois, ainda perseguindo ativamente a dana enquanto tema, pareceria se ter estabelecido nos Estados Unidos até a morte, em 1972.”
A excentricidade da decisão de Cornell de não viajar, dado o tema de sua arte, não passou despercebida entre seus contemporâneos. Em 1953 o pintor expressionista abstrato americano (e admirador) Robert Motherwell escreveu: “Que tipo de homem é esse, que, partindo de antigas fotografias em cartão colhidas em sebos, conseguiu reconstruir o Grand Tour europeu do século 19 em seu olho interno de forma mais vívida do que quem de fato o percorreu, que não era nascido na época e nunca saiu do país, que conhece o aspecto do Vesúvio numa certa manhã de 1879, e o das sacadas de ferro fundido daquele hotel em Lucerna?”
A resposta: um homem simples e nostálgico de extraordinária autossuficiência, alguém que se sentia afastado do próprio tempo, mas era capaz de extrair alimento para a imaginação de livros empoeirados e fotografias descartadas de outrora.
Cornell às vezes sentia algum arrependimento por nunca ter viajado: “Há tantos lugares no mundo aonde eu deveria ter ido,” disse, certa vez. Em geral, contudo, nunca estava tão feliz quanto quando garimpava sebos, brechós e lojinhas de Nova York, procurando por suvenires de tempos e lugares distantes. Descreveu um desses estabelecimentos, onde era cliente regular, como um “santuário e retiro de prazeres infinitos”.
Era ali que se sentia ligado à antiga tradição dos artistas viajantes porque podia dar-se ao luxo do próprio vaguear – pela mente.



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ALASTAIR SOOKE (Inglaterra, 1981). Crítico de arte do The Daily Telegraph. Este artigo data de outubro de 2015 e aqui está traduzido por Allan Vidigal. Página ilustrada com obras de Joseph Cornell (Estados Unidos), artista convidado desta edição de ARC.

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Agulha Revista de Cultura
Fase II | Número 25 | Março de 2017
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