terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

ESTER FRIDMAN | As vontades e a potência do leão

Em “Das Três Transmutações”, no livro “Assim Falou Zaratustra”, Nietzsche fala sobre como o espírito torna-se camelo, como o camelo torna-se leão, e como o leão torna-se criança. Cabe lembrar que, em Nietzsche, não existe a dicotomia entre espírito e corpo. A partir da minha leitura, o camelo representaria a humanidade cristã-eclesiástica (lembrando que para Nietzsche “cristianismo é platonismo para o povo”). O espírito teria se tornado camelo com a moral cristã, a moral do dever. O camelo não tem escolha, ele deve carregar o peso da culpa. É o espírito de carga, que se ajoelha para ser carregado, e vive no deserto, lugar onde não há fartura, nem de água, nem de comida, lugar onde tudo é mais difícil. Para o camelo, ser virtuoso é cumprir seus deveres, é ser obediente e resignado, é carregar a vida nas costas e se orgulhar do sofrimento. Por dois mil anos há um predomínio do camelo no deserto, e este vive sem reclamar, com sua vontade fraca de ressentido. Ajoelha-se diante do dragão e diz: “sim, meu senhor, eu lhe devo obediência”. O senhor a quem o camelo obedece é o último dragão, que é o “tu-deves”. O dragão seria, de alguma maneira, a lei universal, uma vez que, em um de seus simbolismos ele aparece como o verbo criador. E cada escama do dragão pode ser uma pessoa que obedece. Cabe lembrar que na antiguidade, alguns animais eram símbolos do culto de divindades, na qual o dragão era o símbolo do mal.

Mas Nietzsche nos diz que, assim como um dia o espírito se tornou camelo, existe a possibilidade de se transmutar em leão. O camelo que se transmuta em leão é aquele que percebe a sua condição de escravo. Claro, só procura a liberdade quem está preso. Quem é livre não procura a liberdade. A busca pela liberdade ocorre nessa transição do camelo para o leão. Dizer um “sagrado não ao grande dragão” é se assumir como leão. O leão não deve obediência ao dragão porque é um espírito livre. O lema do espírito livre, do leão, não é “eu devo”, mas sim, “eu quero”. Mas, me parece que há graus de espírito livre. O espírito livre por excelência é aquele que não acredita em nada, é a inversão do crente. O dragão diz ter criado todos os valores. Ele diz: “Todo o valor já foi criado, e todo valor criado – sou eu. Em verdade, não deve haver mais nenhum 'eu quero'!”. Mas o leão quer lutar contra o grande dragão. Nietzsche diz: “'Tu deves' está em seu caminho, cintilante de ouro, um animal de escamas, e em cada escama resplandece em dourado: 'Tu deves'”. O próprio dragão diz ser todo o valor criado, e ele aparece cintilante de ouro. Ora, o ouro foi um dos símbolos de Jesus, como o era também de Apolo.






 Não é por acaso que artistas cristãos deram a Jesus cabelos louros dourados, como os de Apolo. Cabe aqui lembrar, ainda, que, na mitologia grega, era um dragão que tomava conta do velocino de ouro. Jasão precisou vencer o dragão para levar o velocino de ouro ao rei. Temos também São Jorge em combate com o dragão, que muitos artistas ilustraram como a luta entre o bem e o mal. Além de cintilante de ouro, o dragão é descrito como um animal de escamas. A escama é o símbolo da montanha ou do suporte do mundo, que deriva do símbolo da tartaruga. Na arte românica, as tartarugas aparecem sob os pés do Cristo na ascensão, simbolizando o limite da terra e o contato com o céu. Num outro sentido, que faz sobressair a coincidência dos opostos, as escamas designam, ao contrário, o obstáculo que impede ver o céu. É preciso que as escamas caiam dos olhos para que o homem compreenda. Mas o leão, com seu querer próprio, cria liberdade para que se possa criar novos valores. O leão não é criador de novos valores, mas abre caminho para a nova criação. É preciso a força do leão para vencer o dragão.
Dois mil anos com tal predomínio do camelo não foram em vão. O homem aprendeu muito no deserto. Mas agora precisa ter coragem de querer o que já sabe. Agora precisa se tornar leão. Nietzsche diz no fragmento de outono de 1887: “Só se tem tardiamente a coragem daquilo que se sabe”. Na condição de camelo, o homem não tinha um querer próprio. Qualquer discurso que manifestasse uma experiência individual própria, diferente do rebanho, era muito mal visto. Só havia uma verdade – a verdade do rebanho. O homem na condição de leão é diferente. Assim como o homem é uma ponte para o além-do-homem, o leão é uma ponte para a criança. Não seria a criança o próprio além-do-homem? O leão tem a coragem que faltava ao camelo para impor sua individualidade, para impor sua vontade, que não é necessariamente igual a de todos. No camelo há uma vontade fraca. O leão enfrenta o dragão e provoca o crepúsculo dos ídolos. Derruba os valores antigos, possibilitando a criação de novos. É claro que o camelo ressentido irá odiar o leão por isso. A partir da minha leitura, para Nietzsche a criação só é possível onde reina a diferença, onde não há rebanho.
Podemos notar que há graus de flexibilidade nas diferentes fases do espírito. O camelo é todo rígido, devido ao peso dos valores; o leão é bastante flexível, ágil; e a criança é pura flexibilidade.
Podemos nos perguntar: - como se dão as referidas transmutações? Para Nietzsche, o mundo, e tudo o que existe, é um conjunto de forças em permanente relação de combate. Não existe força no singular, ela se apresenta sempre como multiplicidade. O mundo é uma pluralidade de forças que agem e resistem, umas em relação às outras. O corpo humano, com suas células, tecidos e órgãos, consiste numa pluralidade em constante combate. A cada momento surgem vencedores e vencidos, e hierarquias vão se formando. Mas essas hierarquias nunca são definitivas. A vida, assim, é um constante vir-a-ser. O que ocorre dentro do corpo, também ocorre entre os indivíduos, que são corpos da sociedade. Nietzsche diz que “A realidade reduz-se exatamente à ação e à reação particular de cada indivíduo em relação ao conjunto”. Sempre há forças que comandam e forças que obedecem, forças ativas e forças reativas. O corpo humano, para Nietzsche, é a grande razão. Quando a grande razão se configura de uma determinada maneira, quando uma determinada hierarquia prevalece, abre-se a possibilidade para a transmutação. Essa configuração não é igual para todos. Se o fosse, estaríamos falando de um padrão, de um modelo, o que seria um absurdo, tratando-se de filosofia nietzscheana. As vontades do leão vêm de configurações de forças que possibilitam o querer. Não é o “eu” do leão que “quer”, mas sim uma pluralidade de forças. Uma vez ocorrida a transmutação do camelo em leão, o fato de o leão impor sua vontade própria, inverte a direção da força. A força que no camelo era reativa, voltava-se contra si mesmo, no leão é ativa, volta-se para fora. Não há mais o espírito gregário, com sua vontade de igualdade, próprio aos escravos. Há que lembrar que, para Nietzsche, o instinto gregário, que prevalece na sociedade de rebanho, não é primordial nem universal. O camelo é um animal doméstico e servil. Seus instintos vitais estão domesticados. O leão é um animal selvagem e astuto – ele observa em silêncio e sabe esperar a hora certa para o ataque. Nessa inversão da força pode-se ver o início de um niilismo ativo, a partir do qual se é possível criar novos valores. É o caminho para o mais forte, para o mais saudável, para o criativo. Seria o caminho para o além-do-homem?



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ESTER FRIDMAN (Brasil, 1963). Filósofa e escritora, pesquisadora da linguagem simbólica, seu tema de mestrado foi A Linguagem Simbólica no Zaratustra de Nietzsche. Estudiosa também das filosofias da Índia, escreveu Kriya-Yoga e a Filosofia dos Kleshas no Yoga Sutra de Patanjali. Contato: ester8fri@gmail.com. Página ilustrada con obras de Óscar Sanmartín (Espanha), artista invitado de esta edición de ARC.

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Agulha Revista de Cultura
Fase II | Número 24 | Fevereiro de 2017
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
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