domingo, 12 de fevereiro de 2017

EDSON MANZAN | O estilo de James Strachey em The interpretation of dreams


O Grupo de Bloomsbury, mesmo não podendo se atrelar a qualquer definição rígida acerca de suas tramas e de nuances estético-conceituais, constitui importante grupo artístico-filosófico que tomou corpo e influência ao longo do século XX. Começou como uma reunião de amigos provenientes de Cambridge, incluindo ainda algumas pessoas a eles relacionadas. A partir de 1905, quando a primeira reunião das que vieram a ocorrer às noites de quinta-feira se deu, até a década de 1950, muitos foram agregados, mudaram-se ou faleceram. Assim, durante esses anos, a expressão “Grupo de Bloomsbury” adotou ampla variedade de sentidos, de maneira que alguns, antes claramente membros, passaram a almejar a recusa disso, e muitos que não eram membros disseram ser; ou se colocavam no lugar de simples aliados ou de inimigos. Nessas mutações, o grupo, conforme existiu antes da Primeira Guerra Mundial, veio a ser chamado “Old Bloomsbury”, e os sujeitos a ele pertencentes contavam, por exemplo, com Virginia e Leonard Woolf, o irmão mais jovem de Virginia, Adrian Stephen; Lytton Strachey e seu irmão James, e Roger Fry. Durante a Primeira Guerra, adentraram ao quadro Karin Costelloe e Alix Sargant-Florence, que se tornou esposa de James Strachey (ORR, 2004).
O irmão de Lytton nasceu em 1887, sendo, portanto, sete anos mais jovem. Quando ele foi da Saint Paul’s School para o famoso Trinity College, em Cambridge, segundo Winnicott, que escreveu seu obituário, não realizou nada relevante por três anos; a não ser travar conhecimentos com todos que lhe eram interessantes, e conversar sobre tudo que lhe parecesse de proeminência. Diferentemente de demais membros do Bloomsbury, que se encontravam absorvidos pela obra filosófica de G. E. Moore, Strachey adotou o socialismo fabiano e, em decorrência, o concernimento quanto a problemas sociais. Também desenvolveu um interesse profundo por música. Durante um tempo, foi acusado de viver à sombra do irmão, como uma espécie de duplo artístico-intelectual mais anêmico dele, tornando-se, também, seu principal confidente e conselheiro. Era ainda muito íntimo de Rupert Brooke, então presidente da Sociedade Fabiana de Cambridge. No verão de 1908, Lytton e James viajaram à Escócia; o primeiro, devido à sua saúde, este, para se recuperar de efeitos perturbadores de sua adoração cega e absoluta por Rupert Brooke. Nesse ínterim, Lytton passou a escrever com regularidade para The Spectator e James aproveitava grande parte de seu tempo entre a ópera e o teatro. A partir de 1909, e durante seis anos, James foi secretário particular de seu primo Loe Strachey – editor do The Spectator. Foi demitido em 1915 por se posicionar contra a Guerra. Ele e seu irmão compartilhavam desse ponto de vista voltado ao Socialismo, e de uma oposição e pessimismo face à Guerra. No primeiro ano do conflito, mas agora noutra seara, James, Lytton e uma colaboradora, Marjorie, criaram um interessante e delicado minueto, buscando passar pela esteira de Mozart; e aquele iniciou seu relacionamento com Alix. Chegou a trabalhar como C. O. para uma organização Quaker que distribuía leite para as esposas inglesas de civis alemães detidos (ORR, 2004).
Em 1918, os irmãos Strachey foram ao julgamento do filósofo Bertrand Russel, que estava sendo acusado de propaganda subversiva. No mesmo ano, James começou a estudar medicina. Como aponta Winnicott, Strachey ficou muito impressionado com uma citação de Freud num livro escrito por C. G. S. Meyer, e então veio a procurar Ernest Jones, que indicou formação médico-acadêmica como prioridade a uma formação psicanalítica. Após algumas semanas de estudos médicos, James apanhou um resfriado e, segundo a monografia de Douglass W. Orr (2004), intitulada Psychoanalysis and the Bloomsbury group, uma considerável dosagem de tédio. Acabou se tornando crítico dramático para o Athenaeum por um ano. Continuou sustentando seu interesse pela psicanálise e finalmente decidiu-se por escrever direto para Freud. O mestre vienense, agraciado por ser interpelado por um inglês logo após a Guerra, respondeu prontamente e convidou James e Alix a irem até Viena. Foram em 1920, já como marido e esposa. Existe um interessante comentário de Ernest Jones sobre a aventura; quando James foi estudar com Freud, o próprio Jones escreveu uma carta de apresentação, não de todo elogiosa, destacando o quanto conhecia pouco acerca de Strachey até então. Numa das primeiras sessões da análise do tradutor inglês, Freud leu a carta em voz alta para ele. No ano seguinte, o mencionado casal já estaria articulando a análise com a grandiosa tradução. Em março de 1921, James escreveu à sua sogra relatando que ele e Alix estavam traduzindo alguns dos artigos técnicos de Freud. Haveria cinco deles, cada qual fornecendo uma história detalhada de algum caso especialmente interessante. Os textos foram escritos a intervalos durante as décadas entre 1899 e 1920, e apresentam um amplo espectro do desenvolvimento da perspectiva freudiana. O livro viria a ter por volta de 500 páginas. Para os Strachey, afigurava-se uma grande honra; e uma ampla realização clínica e intelectual: obter um conhecimento especialmente profundo da metodologia freudiana, e íntimo, ao poderem conversar diretamente com o mestre sobre tais aspectos – e inclusive sobre os percalços de tradução. Ainda, o lugar de tradutores oficiais de Freud para o idioma mais difundido no mundo lhes traria especialíssimo destaque nos círculos de saúde mental de então, e, em especial, em seu próprio país de origem.
A principal contribuição de James strachey para a psicanálise, além do tão fundamental trabalho de tradução e editoração da Standard Edition, foi uma série de conferências apresentadas em 1933 nas quais formulou seu conceito de interpretações mutativas. Nelas, como sustenta D. W. Winnicott, ele tornou explícito o princípio de interpretação econômica, interpretação ao ponto de urgência, articulada para ser feita em momento propício, tendo em consideração o material apresentado pelo paciente e lidando de modo claro com uma amostra de neurose de transferência. Strachey ainda foi o executor literário de Lytton, inclusive ao editar um livro do mesmo contendo artigos e chamado Spectorial essays, e se esforçou para encontrar um escritor à altura para a biografia de seu irmão. Ainda, colaborou com Leonard Woolf na edição do livro Virginia Woolf e Lytton Strachey: letters (ORR, 2004).
Enquanto psicanalista, em especial no que tange ao âmbito clínico, ressalta Orr (2004), Strachey tratou de assunto bastante interessante, complicado e controverso: o mecanismo da mudança. Em seu tempo, alguns analistas defendiam que a mudança dependeria da resolução de conflitos intrapsíquicos mediante as interpretações transferenciais, ao passo que outros viam o relacionamento terapêutico em si como o mais poderoso veículo da transformação. Aliás, grande parte dessa controvérsia foi impulsionada por um trabalho do próprio Strachey, cuja perspectiva veio a se tornar um modelo clássico de ação terapêutica em psicanálise e que serviu de ponto de partida para várias incidências clínico-teóricas.
O fundamento da visão de Strachey é constituído por uma interpretação mutativa focada na distorção da transferência. Tal ação diz respeito à admissão de que o analista seja colocado na posição de superego auxiliar pelo paciente. Nesse papel, o analista fornece permissão para o paciente exprimir certa pequena quantidade de energia do id na forma de um desejo ou impulso agressivo. O analista se posiciona também no papel do objeto dos impulsos do id do paciente. No entanto, o paciente reconhece que o analista não está, em realidade, agindo qual o objeto arcaico que é alvo do impulso agressivo. Assim, o primeiro se tornaria consciente que há uma diferença entre o objeto interno projetado e o objeto real externo. O novo objeto, então constituído pelo analista, passa a ser internalizado como um introjetado menos agressivo – o que, por sua vez, modificaria a aspereza, a rudeza mesma, do superego (GABBARD, 1999).
Nesse ínterim, há duas fases da interpretação mutativa. Na primeira, o analista torna o paciente consciente de certo estado de tensão interna, que é relacionada a uma ameaça do superego do paciente em resposta a um impulso do id. A segunda envolve a consciência do paciente, quando o impulso agressivo do id emerge na consciência, de que o objeto fantasístico e o analista real são diferentes. Strachey enfatiza que nessa fase o analista deve evitar a todo custo agir como o objeto fantasístico ao se tornar chocado ou enervado à expressão do impulso do id trazida pelo paciente. Somente quando o analista mantém um aspecto de neutralidade, o paciente se torna apto a distinguir a discrepância entre objetos reais e internos e, destarte, internalizar o analista como um novo objeto que modifica o superego. Em decorrência, é interessante notar que, em leitura acurada do trabalho clássico de Strachey, torna-se perceptível que a internalização de um novo relacionamento e certa modificação das relações de objeto internas do paciente seriam cruciais para a ação terapêutica. Até se esta tiver sido posta em movimento por uma intervenção interpretativa (GABBARD, 1999).
Em artigo de Strachey (1999) mesmo, intitulado The nature of the therapeutic action of psycho-analysis, o autor esclarece da seguinte maneira os mencionados pontos sobre a clínica analítica: a primeira fase da interpretação mutativa, na qual uma porção da relação de certo conteúdo do id do paciente ante o analista é tornada consciente em virtude da posição do último como superego auxiliar, é bastante complexa em si mesma. No modelo clássico da interpretação, o paciente se tornará, primeiramente, consciente de um estado de tensão em seu ego, daí, será feito consciente que há um fator repressivo atuando – que seu superego o está ameaçando com castigos – e somente assim tornar-se-á consciente do impulso do id que veio a alavancar os protestos de seu super-ego e, nessa trilha, feito com que ascendesse a ansiedade em seu ego. Esse constitui o esquema clássico. No que Strachey chama de sua prática atual, o analista encontrar-se-ia trabalhando dos três lados de uma vez, ou em sucessão irregular. Em dado momento, uma pequena porção do superego do paciente pode ser revelada ao mesmo em toda sua selvageria, noutro, a situação do ego de não conseguir de fato defender-se; ainda, sua atenção pode ser direcionada às tentativas que faz de restituição; em busca de compensação por sua hostilidade; em algumas ocasiões, uma fração da energia do id pode ser até encorajada diretamente a desbravar os restos de uma resistência já enfraquecida. Existe, no entanto, uma característica comum a todas essas operações; acontecem em pequenas dosagens – a interpretação mutativa é governada pelo princípio de ser um processo bem gradual. Segundo Strachey, as grandes mudanças em curto período de tempo tendem a vir mais de um trabalho sugestivo do que de aspectos analíticos. Pois cada interpretação envolve o investimento, a soltura (release) de certa quantidade de energia do id e, conforme seria perceptível na clínica, se a quantidade de energia liberada é muito grande, o instável equilíbrio que habilita o analista a funcionar como superego auxiliar do paciente é levado ao colapso. Em todo caso, é pela ação analítica que tem em conta a constituição e funcionamento do superego auxiliar que tais liberações (releases) de energia podem se efetuar.
Assim, no texto de Strachey, é interessante encontrar, por exemplo, o termo id-impulse, ao invés de instinct; mais biologizante e utilizado, na maior parte das vezes, na tradução inglesa de Freud (da edição Standard) para se referir ao investimento ou movimento da libido, quando ela, por exemplo, investe um objeto, conforme o conceito de Besetzung (“investimento”, “movimento para ocupação”) que a libido realiza. Ainda, percebe-se no artigo o respeito do tradutor inglês à observação freudiana acerca da própria palavra “psicanálise”; Strachey, assim como em muitos momentos de seu trabalho de tradução, inclusive no livro que aqui é nosso objeto de estudo, The interpretation of dreams, respeita a observação do mestre vienense de que o mais adequado seria dizer ou grafar, conforme o alemão, Psycho-Analyse, com ênfase, portanto, no aspecto de estudo da alma – psique. Destarte, no texto do inglês é comum encontrar a grafia psycho-analysis. Ainda, deparamo-nos com os termos latinizantes ego, id e superego, para traduzir as palavras (conceitos) do original alemão: Ich (“eu”), Es (“isso”) e Überich (“sobre eu”).
De tal modo, atendo-nos, devido a limites de amplitude textual, a dois capítulos de The interpretation of Dreams, o II e o VII, de fundamental importância prática (no caso do II, trata-se de onde se encontra um amplo exemplo de interpretação onírica, e autoanálise freudiana; é apresentada a análise de um sonho modelo, o famoso Sonho da injeção de Irma) e teórica (pois, no capítulo VII, é mostrado, pela primeira vez, o molde freudiano do aparelho de alma, seelischer Apparat, que, conforme é colocado no Compêndio de psicanálise, deve ser imaginado, figurado, pelo analista, com fins de compreensão psicodinâmica dos processos anímicos), para discutir o trabalho de tradução e decorrente estilo textual de Strachey, podemos observar o seguinte: o estilo em inglês é límpido, direto, similar ao alemão; em todo caso, o próprio aspecto mais conciso e direto da língua inglesa mesma destaca ainda mais tal característica, e Strachey parece procurar fazer desse modo um uso produtivo dessa tendência, deixando o texto com um discurso claro e objetivo, ou seja, segundo uma textualidade que obedece e faz intenso uso do critério positivista de objetividade da exposição conceitual e consequentes relações entre conceitos e exemplificações: “for ‘interpreting’ a dream implies assigning a meaning to it – that is, replacing it by something which fits into the chain of our mental acts as a link having a validity and importance equal to the rest” ou ainda: “As we have seen, the scientific theories of dreams leave no room for any problem of interpreting them, since in their view a dream is not a mental act at all, but a somatic process signalizing its occurrence by indications registered in the mental apparatus” (FREUD, 1980). Nesse estilo técnico-científico, de caráter tanto estilístico quanto terminológico, a própria escolha do título do capítulo, The method of interpreting dreams: an analysis of a specimen dream, mostra um aspecto instigante da escolha de Strachey, a palavra specimen, em inglês, apresenta certa duplicidade semântica, que, em todo caso, caminha para a linguagem médico-científica: trata-se de espécie, no senso de espécime, ou amostra, por exemplo, no quesito de uso laboratorial, como, por exemplo, falamos de uma amostra de sangue (segundo o dicionário Oxford). A palavra que Freud forja em alemão é Traummuster, ou seja, amostra de sonho (Traum), assim, em alemão, o vocábulo atrelado a Traum, Muster, tem um sentido de amostra, mas também de modelo, padrão, desenho, estampa, não tendo um cunho tão biológico ou laboratorial como o specimen de Strachey; nessa linha, mesmo obtendo em consideração as conhecidas ambições científicas de Freud para o reconhecimento epistemológico da psicanálise pelo campo intelectual de cunho positivista, sua maneira de se exprimir, já no título do capítulo, é mais ampla, menos científico-positivista ou laboratorial, ou seja, médica, que a escolha de Strachey; cuja voz também pode ser ouvida na escolha da expressão mental apparatus, conforme se vê no trecho que destacamos acima, para traduzir a germânica expressão tecida por Freud: seelischer (ou psychicher) Apparat (aparato de alma, anímico, psíquico). É importantíssimo, em termos conceituais e de visada clínica, conforme nos alerta Bruno Bettleheim (1982) em seu Freud and man's soul, perceber que a tradução inglesa Standard faz uso da ideia de mente (mind, mental) e não de alma (Seele), conforme colocado na obra mesma de Freud. Assim, tal distorção, ao buscar cientificizar, delimitar conceitualmente, a noção freudiana, rouba-nos das implicações da noção de alma, anímico, tão cara à metapsicologia. Em momento ainda mais incipiente de seu labor, em 1890, sendo que o termo psicanálise somente virá a se configurar na letra de seu criador em 1896, Freud escreveu um artigo dedicado a detalhar sua concepção de “tratamento psíquico” (Psychische Behandlung), ou seja, da alma, feito para tal, assim delineando um tratamento psíquico, ou anímico.
Segundo Mario Eduardo Costa Pereira (2013), no artigo A nada santa alma freudiana, é digno de nota que o mestre vienense já inicia seu texto referindo-se e tomando cautela e observação quanto a questões de terminologia e tradução, lembrando o leitor que Psychê é vocábulo grego e sua tradução germânica é Seele: alma.

Em outros termos, ao incorporar a seu vocabulário técnico a Psychê dos antigos – de maneira direta ou pela via do Seele alemão – Freud assume implicitamente as conotações dessa tradição: como princípio de vida, de inteligibilidade e de afetividade. Contudo, a essa referência à tradição grega, o criador da psicanálise acrescenta uma precisão decisiva: a expressão “tratamento psíquico” não busca tanto enfatizar o objeto sobre o qual ele supostamente se aplica, “a alma”, mas o meio pelo qual se exerce, ou seja, um meio próprio à alma: a palavra. Uma cura pela palavra, um tratamento pela conversa, uma talking cure, são todas definições que explicitam a especificidade da clínica freudiana, a qual busca ter acesso à alma do homem que sofre dando-lhe a palavra, da maneira mais espontânea possível, deixando-lhe dizer tudo o que lhe vem à mente. Para Freud, a “alma” e a palavra encontram-se intrinsicamente articuladas.
(...)
De fato, em Freud trata-se de uma “alma” muito particular que em nenhum caso se confunde com uma substância, ainda que imaterial, como proporia uma concepção cartesiana. Ao contrário, sua completa virtualidade é explicitamente evocada através dos múltiplos esforços freudianos para figurar um “aparelho da alma”, um “aparelho psíquico”, ou ainda, um “seelischer Apparat” (PEREIRA, 2013).

O molde mais evidente é o célebre “esquema ótico”, apresentado no capitulo VII da Interpretação dos Sonhos (1900), no qual o aparelho psíquico é imaginado como um sistema de lentes de, por exemplo, um telescópio, alocadas em sequência, que seriam cruzadas por um facho luminoso segundo certa acomodação espacial e temporal determinada.
As lentes seriam metáforas das diferentes camadas de organização dos traços de memória, constituídas segundo gramáticas e conteúdos mnêmicos próprios aos diferentes períodos da vida, ou seja, das diferentes modalidades temporais de relação do sujeito com o Outro. O fenômeno “anímico” seria, assim, a composição virtual desse feixe de luz, cambiante a cada instante de sua travessia desses diferentes lugares psíquicos, os quais, em última instância, são estruturas de memória e linguagem (PEREIRA, 2013).
De tal modo disposta, tal noção parece em viva incongruência com o aspecto livre e aéreo que uma perspectiva mais romântica poderia indicar à alma humana. Tratar-se-ia, desse modo, exclusivamente do resultado passivo e fantasmagórico das determinações inconscientemente impostas pela história e pela linguagem a um sujeito, nas suas relações com o Outro? O “sopro” mediante o qual os antigos se atinham à alma não passaria de uma quimera encobertando a total sobredeterminação do “sujeito”, reduzido assim a alguma condição de irrestrito assujeitamento? Nessa visada, a Traumdeutung instituiria a listagem e explicitação das regras “pelas quais a aparente liberdade da alma estaria, na verdade, inteiramente submetida às regras de uma cadeia associativa, funcionando segundo uma lógica fria e automática que escapa inteiramente ao próprio sujeito” (PEREIRA, 2013). Em tal perspectiva, a ideia do “aparelho” referiria fundamentalmente ao aprisionamento da alma em suas consignações simbólicas. Entretanto, o que a Traumdeutung explana é precisamente que o sujeito não é por inteiro dedutível da conexão lógico-simbólica na qual se inscreve e pela qual extrai sua condição de existir qual ente atravessado pela linguagem. Mesmo o sonho mais interpretado, analisado, em Freud, traz que a nascente de suas associações está fundeada no “‘Não-Reconhecido’” (das Unerkannten), ponto em que as palavras são incapazes de traduzir integralmente o desejo que o move” (PEREIRA, 2013). Constituída por sua inscrição fundamental nas tramas da linguagem e, por conseguinte, mnêmicas, a alma freudiana não se deixa limitar a categorias da lógica e da representação. Ela, na verdade, se define mediante o resto que insiste em tentar se manifestar, exprimir, traduzir; em se fazer reconhecer e se realizar, atuar, ainda que de maneira sempre incompleta e surpreendente. É precisamente nesse sentido que Freud cunhou um método clínico que ao mesmo tempo é um método de pesquisa, e não um caminho de dedução adiantada. É preciso conceder a palavra ao sujeito, para que, em transferência, ele mesmo possa se espantar ao se escutar dizer algo de integralmente imprevisto, mas densamente revelador de si próprio. Ademais, o autor do artigo em foco nos lembra que

a “alma freudiana” não é nada santa. Aquilo que circula no “aparelho anímico” é fundamentalmente libido, princípio erótico que, em sua tendência mais elementar, busca a satisfação pelas vias mais curtas possíveis, sem levar em conta qualquer consideração de ordem moral, prática e nem mesmo de sobrevivência. Trata-se de pura vontade de gozo, que, diante da impossibilidade da realização plena, deve poder investir eroticamente sua própria falta e incompletude. Nesse mesmo movimento, é o desejo que emerge como motor erótico da alma confrontada à castração de sua própria incompletude. (PEREIRA, 2013)

Igualmente, deve-se dizer que a alma freudiana, sem se enlear com o inconsciente coletivo de Jung, ou configurando conceito metafísico-cosmológico, espécie de Anima Mundi, como se diz na literatura e no ocultismo, por exemplo, na poesia de William Butler Yeats; não é solipsismo absoluto ou ser absoluto, imutável; antes; está em continuidade com a tradição e experiência humana. “Para Freud, a experiência de realidade não tem nada a ver com se perceber as coisas tais como elas efetivamente são, mas sim com concebê-las e recortá-las segundo coordenadas simbólicas compartilhadas com o restante do grupo humano” (PEREIRA, 2013). Trata-se de realidade psíquica; e, destarte, do sujeito atravessado pelo simbólico – o âmbito da linguagem em sua plasticidade e decorrentes incorrências. Assim, torna-se fundamental obter em consideração o Complexo de Édipo, com suas raízes ancestrais, arcaicas, e com sua “jurisdição generalizada”, constituindo a pedra angular da ordenação simbólica do psíquico, afiançando uma condição mínima de instalação do sujeito na situação humana pela via da linguagem. No entanto, e “Caprichosamente, contudo, a palavra é sempre impotente para responder a nossos questionamentos mais fundamentais sobre nós mesmos e para garantir uma comunicação sem resto, uma cópula perfeita, com o outro” (PEREIRA, 2013). Então assinalada pelo laço humano da linguagem, ainda assim a alma freudiana está trespassada por um laivo irremediável de solidão.
A investigação clínica da alma, delineada na constituição da psicanálise, aponta para certa dualidade, especialmente quando confrontamos o Projeto para uma psicologia científica (1895) com A interpretação dos sonhos (1900). A primeira perspectiva é pronunciada em termos muito conexos aos empregados pelos colegas de Freud do Instituto de Fisiologia da Universidade de Viena, em cujo laboratório, em seu período acadêmico, ele desenvolvia com grande entusiasmo investigações de teor positivista. O arrebatamento que apresentava pelas atividades de pesquisa só se comparava ao respeito e admiração que nutria por seu mestre nessas empreitadas, Ernst Brücke. “A interpretação dos sonhos – que dispensa apresentações por ter sido das obras mais editadas e traduzidas na contemporaneidade – distingue-se, radicalmente, em seu enunciado, do Projeto, o qual Freud nunca levou a público” (LO BIANCO, 2002). Ao oposto do que se nota no texto de 1895, que privilegia o mecanismo neuronal, as quantidades, os investimentos e os movimentos de energia no Aparato Psíquico, em A interpretação dos sonhos, é da matéria tão cotidiana e pouco estimada pelos estudos científicos que Freud irá tratar. “Os sonhos, pode-se dizer, eram o resto do que interessava ao pensamento científico de final do século XIX. Sem dúvida, há nesta passagem de um a outro texto, uma inflexão preciosa a ser demarcada” (LO BIANCO, 2002). Localiza-se, na mesma, a tensão que distingue a escrita freudiana, assim como o ponto no qual se faz radicalmente distinto das produções do termo do século. Estas dimanavam, quase totalmente, na esteira do positivismo, que ambicionava de início ser a teoria, a visão de mundo, que garantiria o caráter positivo, e legítimo, do conhecimento científico. Freud, no ponto mesmo em que se forma e partilha do universo vinculado a essa visão, elege ainda outra, consagrada ao apelo à poetização da vida, colocando as artes no cerne das temáticas humanas; trazendo o tópico onírico, do cotidiano, para tornar o inusitado e singular também objeto de inquirição e conhecimento.
No enunciar-se, sob transferência, um sujeito, ao procurar pronunciar sua verdade, pode se assombrar, por um átimo, justamente por perceber-se enquanto sujeito. Descobrimento sempre prófugo, que se atualiza exclusivamente nesse lampejo do ente, “pois a alma que assim se expressa, tal como o vento, é perpetuamente móvel” (PEREIRA, 2013). Mas enquanto evento, descobre-se existir. Singularmente, ainda que inseparável da estrutura e incidência do cosmo. Ainda nesse sentido, Bruno Bettelheim (1982) destaca que, em alguns matizes, a história de Amor (Eros) e Psiquê é uma espécie de contraparte da lenda de Édipo, apesar de relevantes distinções. A lenda de Édipo fala do medo de um pai quanto a ser suprimido e substituído por seu filho; para inverter tal processo, o pai tenta destruir o último. Na história de Psiquê, fala-se de uma mãe que está temerosa quanto à possibilidade de certa jovem substituí-la nas afeições da humanidade, e de seu filho, e que, portanto, tenta destruir a jovem. Mas, ao passo em que a lenda de Édipo se apresenta tragicamente, Amor e Psiquê têm um final feliz; e seria esse fato significante. O amor de uma mãe por seu filho e sua ira cega contra a jovem que ele prefere pode ser, por exemplo, algo relacionado ao fato da jovem ultrapassar a mulher madura em beleza; que um filho se afaste da mãe para vincular-se à sua noiva, que a noiva tenha de sofrer devido ao ciúme da mãe do amante – tudo isso, apesar de extremamente conflituoso, na leitura de Bettelheim, estaria de acordo com emoções humanas previsíveis, esperáveis, e se colocaria na linha do conflito de gerações. É por isso que, ao cabo, Júpiter e Vênus aceitam a situação; Amor e Psiquê celebram seu casamento à presença de todos os deuses; Psiquê é tornada imortal e Vênus se apazigua quanto a ela. Mas Édipo, ao matar seu pai e se casar com sua mãe, executa uma fantasia infantil que deveria assim haver permanecido. Ao fazê-lo, Édipo teria ido contra a natureza; a physis; o que resulta no desfecho trágico para os envolvidos.
Em todo caso, se Freud estava ou não ciente ou movido pelos paralelos e diferenças desses dois mitos, não sabemos, mas sabe-se quão fascinado ele era pela mitologia grega, estudando-a intensamente, além de colecionar estatuário grego, romano e egípcio. Portanto, ele absorveu que Psiquê foi caracterizada como jovem e bela, e enquanto portadora de asas de pássaro ou borboleta. Pássaros e borboletas são símbolos da alma em várias culturas, e servem para enfatizar sua característica de transcendência. Desse modo, tais símbolos investiram o vocábulo “psique” com conotações de beleza, fragilidade e insubstancialidade; ideias que ainda vinculamos à noção de “alma”, e, Bettelheim nos adverte, sugerem o grande respeito, cuidado e consideração com as quais Psiquê deve ser manejada, pois outro procedimento a violaria ou, até mesmo, destruiria. O analista austríaco ressalta que respeito, cuidado e consideração são atitudes que a psicanálise também requer. Em nosso trabalho, atentamos de forma mais pontual para que, portanto, trata-se de exigência destarte premente à tradução psicanalítica.
O capítulo II, ora obtido em tela, da Traumdeutung, possui um aspecto deveras imagético, na apresentação de seu próprio sonho, o famoso Sonho da Injeção de Irma, Freud o perfila mediante várias e ricas imagens, apresentando, a cada passo hermenêutico, suas associações reveladoras às mesmas, desnudando-se até onde lhe é possível, no intento de sustentar sua tão inovadora quanto complexa tese sobre o sonho enquanto realização distorcida, disfarçada mediante os recursos psíquicos da condensação e do deslocamento, de desejo recalcado, mas presente e atuante em âmbito inconsciente. “O sonho da injeção de Irma, especialmente a garganta examinada, ilustra o encontro enigmático com a sexualidade para a qual nenhuma representação é adequada” (SANTIAGO & LINO, 2010). A proposição freudiana na época era a de que o sintoma neurótico manifestava a presença de determinadas representações simbólicas ignoradas pelo sujeito e que, em decorrência, um ganho de saber seria a abertura do caminho para uma possível cura. O inconsciente, então, no feitio de um reservatório de representações simbólicas que tiveram de ser excluídas, apresenta a dimensão de um saber não sabido e, com a verbalização das palavras que se aproximam de traduzir alguma parte do conteúdo de conflito no sujeito: um ganho de saber seria aguardado, acreditando-se que assim o sintoma poderia ser em parte (ou, como pensado na época; até mesmo no seu todo) abolido. O desígnio psicanalítico, conforme aventado no artigo, e com base no apresentado ponto de vista, seria o de engatar o sujeito na construção do saber que ficou imêmore por imposição do recalque, na esperança de recuperar, (re)configurar, a representação referente à sexualidade. Desse modo, quanto a tal aspecto fortemente imagético do trabalho freudiano, e sua relação com o trabalho desempenhado por Strachey, o psicanalista canadense Patrick Mahony (1999), em seu artigo Uma tradução psicanalítica de Freud, observa o seguinte: como atinência a seu estilo evocativo, Freud costumava ampliar a metalinguagem em linguagem novamente e destituir a diferença entre ambas; os exemplos mais significativos dessa prática não se restringem à determinada passagem, mas perpassam toda a obra. Um exemplo interessante é a Traumdeutung, cuja progressão explanadora é apresentada por Freud qual certa viagem ao longo de uma paisagem natural. Para Freud, segundo Mahony, a paisagem frequentemente simboliza a mulher, de modo que podemos assistir a seu trajeto por meio de A interpretação dos sonhos como um concomitante exame minucioso do corpo feminino. “Uma pequena amostra dessa magnífica multiplicidade de significado reside na associação do sonho com o umbigo...” (MAHONY, 1999), umbigo que se refere ao irrepresentável, inefável ou ininterpretável que se apresenta em cada sonho; furo, buraco não apreensível em seu conteúdo, mas causador de estranheza, potencial ocasionador de atração e repulsa, fascinação e perplexidade, de possível interesse – nunca correspondido, respondido –; inabarcável fonte de desejo, portanto?
As referências visuais, ao longo de toda a obra, configuram uma área profícua, na qual o mestre vienense mistura linguagem e metalinguagem, e tais alusões, a seu turno, imiscuem-se ao uso feito de imagens arqueológicas, sexuais e naturais, propiciando certo significado múltiplo, intertextual. “Devemos nos lembrar de que Freud era uma pessoa predominantemente visual – Augenmensch – (...), como se vê pelos elementos pictóricos que impregnam seus escritos” (MAHONY, 1999). Assim, a leitura de Mahony simplesmente nos mostra que “É compreensível que ele recordasse sempre o conselho de Jean-Martin Charcot, outro conhecido por sua ênfase na visualização: ‘ver as mesmas coisas repetidamente, até que elas, por si sós, comecem a falar’” (MAHONY, 1999). Por conseguinte, o analista canadense nos fala da possibilidade de uma cegueira agravante que veio a acometer Strachey ter influenciado o desempenho de seu trabalho de tradução, já que ele nem sempre reproduz as atinências visuais do texto fonte. “Essa possível incapacidade se complica no caso da apresentação que Freud faz do complexo de Édipo, ao longo da qual ele cita três vezes uma tradução Édipo Rei para o alemão que é insistente em referências visuais” (MAHONY, 1999). Strachey, então, em The interpretation of dreams, lutando pela manutenção da elegância poética, recorre a certa tradução aceita do clássico para o inglês, ao invés de traduzir ele próprio as passagens utilizadas por Freud. Em todo caso, e independentemente de Édipo rei, aspecto essencial da terminologia visual de Freud é sua recorrência ao teatro. Isso também pode ser distinguido no uso que faz de “palavras significativas comuns”: Probe pode significar “julgamento”, “experimento” ou “demonstração”, mas igualmente “ensaio”, Darstellung se refere a “descrição”, mas também “à representação do ator”, Vorstellung, vocábulo inclusive bem caro à filosofia alemã (e que constitui também questão lexical basilar no corpus freudiano) especialmente no pensamento de Schopenhauer, que tanto influenciou a visão de homem e de mundo na psicanálise, remete à “representação”; ou à “apresentação teatral”. Torna-se plausível que Freud possa, por exemplo, fazer representações dramáticas sobre a cena primária; de maneira que, ao descrever a construção de uma das derradeiras partes da cena enquanto Schlussakt, último ato, faz-nos compreender o processo mediante teor teatral.
No ensaio A concepção psicanalítica da perturbação psicogênica da visão, endereçado principalmente a oftalmologistas austríacos, é um exemplo per se dessa categorização visual. “Aqui, é-nos oferecida a inestimável experiência de assistir à habilidade de Freud de integrar tema, destinatário e expressão expositiva, tudo de forma vaga. Às vezes, essa indefinição desaparece na tradução de Strachey” (MAHONY, 1999). Mahony (1999) oferece os seguintes exemplos de trechos: Ja, wenn wir sehen, dass ein Organ.../und die anderen Untersuchungsweisen.../den Gesichtspunkt der Sexualität ausser acht gelassen. Sendo que as traducões de Strachey são: Indeed, if we find that an organ…/and other methods of research have left…/the standpoint of sexuality out of account… Já Mahony propõe o seguinte: Indeed, if we see that an organ/and other ways of research have not paid attention to/the viewpoint of sexuality. Ou seja, a proposta envolve usar see, ao invés de find, not paid attention to, ao invés de have left the standpoint out of account, ou seja, verbos e expressões menos formais e que ofereçam maiores possibilidades e aberturas semânticas. “Essa indefinição consiste na coerência com o fluido estilo de investigação de Freud. Em outros pontos, por exemplo, ele às vezes se presta a um uso indeterminado de Ich e Phantasie” (MAHONY, 1999). Assim, a distinção que Strachey traz de Ich como ego, self e eu (I), e a proposta de Susan Isaacs (apud MAHONY, 1999) de que o conceito de Phantasie viesse a ser ortograficamente recolocado para diferençar manifestações conscientes e inconscientes – respectivamente, em inglês, fantasy e phantasy – prejudicam a flutuação livre, a fluidez mesma dos textos de Freud, “que falam sobre a livre associação e, ao mesmo tempo, a realizam” (MAHONY, 1999).
Em todo caso, sobre a Traumdeutung, compete-nos perceber seu aspecto imagético essencial, no qual o sonho é tratado, de forma técnica, a partir de suas imagens. Pois cabe ao paciente associar a partir das imagens oníricas e, então, com esse processo de associação livre destarte desencadeado pelas mesmas, fornecer à sessão analítica, e à escuta do analista, o material para possível decifração, sempre parcial, do(s) sonho(s). De modo que, no capítulo VII da grande obra, somos levados a imaginar, ou, como colocado por Pedro Heliodoro Tavares (2014) em sua tradução do tardio e panorâmico Compêndio de psicanálise, supor (“supomos”: Wir nehmen) um aparelho psíquico.
Assim, no capítulo VII da obra máxima freudiana, encontra-se, por exemplo, a expressão aparelho da mente, no que Strachey fala “structure of the apparatus of the mind” (FREUD, 1980); no dicionário Oxford, vemos que em inglês apparatus remete a uma disposição, ou conjunto (set) de ferramentas, instrumentos ou equipamentos usados para desenvolver algum serviço, alguma atividade; em alemão, o termo abarca em sua semântica os sensos de aparelho, máquina, dispositivo, instrumento. Em alemão parece obter, portanto, certa semântica um pouco mais ampla que no inglês, servindo também como um instrumento, um dispositivo específico e isolado, não necessariamente trazendo a noção de conjunto instrumental. Em todo caso, em seu Vocabulário da psicanálise, Laplanche e Pontalis (2001) destacam que a expressão freudiana “psychischer ou seelischer Apparat” ressalta determinadas características que a teoria psicanalítica atribui ao psiquismo, sua capacidade de transmitir e transmudar a energia psíquica e promover sua diferenciação em sistemas ou instâncias. Aliás, em Die Traumdeutung, Freud define o aparelho psíquico fazendo analogia do mesmo com aparelhos óticos, divididos em partes e camadas funcionais específicas. De modo que:

Ao falar de aparelho psíquico, Freud sugere a ideia de certa organização, de uma disposição interna, mas faz mais do que ligar diferentes funções a “lugares psíquicos” específicos; atribui a estes uma dada ordem que acarreta uma sucessão temporal determinada. A coexistência dos diferentes sistemas que compõem o aparelho psíquico não deve ser tomada no sentido anatômico que lhe seria atribuído por uma teoria das localizações cerebrais. Implica apenas que as excitações devem seguir uma ordem que fixa o lugar dos diversos sistemas (LAPLANCHE & PONTALIS, 2001).

E podemos ainda perceber o respeito dos autores ao teor propriamente da alma, psíquico, do conceito, afastando-nos da noção de mente ou mental. O aparelho psíquico traz, para Freud, certo teor de modelo, ou de ficção ilustrativa. Trata-se de metáfora riquíssima que põe em jogo as articulações e movimentos metafísicos, no sentido de imaginados e delineados, não de substância primordial absoluta – como se estabelece no âmbito filosófico –, da bruxa metapsicologia.
Voltando-nos a Bettleheim (1982), vemos a observação de que no inglês americano o uso da palavra soul (alma) se restringiu à ambiência religiosa. Esse não era o caso da Seele no alemão da Viena de Freud, e não abrange as regiões do mundo falantes de alemão atualmente. Neste idioma, a palavra Seele reteve sua mais ampla significação, resvalando no sentido de essência do homem, até mesmo no que nele pode ter de mais valoroso ou peculiar, próprio; ou referindo-se mesmo a seu teor espirituoso. Segundo o analista vienense, tal vocábulo deveria na tradução inglesa da Standard nesse sentido ter sido transmudado. Aliás, Freud utiliza Seele e seelisch ao invés de geistig (espiritual), por esta palavra se referir em especial aos aspectos racionais da mente – dos quais obtemos consciência. A ideia de alma, em contraste, definitivamente abarca muito do que não estamos cientes. Freud almejou tornar relevante que a psicanálise estava concernida não somente com o corpo e o intelecto pelo mesmo envolvido, como a maioria de seus colegas médicos, mas, e acima de tudo, com o obscuro âmbito do inconsciente que configura parte infinita das incidências emocionais e de linguagem no ser humano. Ainda, falando em termos clássicos, com o desconhecido submundo no qual, de acordo com a mitologia antiga, as almas incorrem.
Em todo caso, em nenhum ponto específico de seus escritos, Freud fornece uma definição em especial precisa da noção de alma. Bettleheim suspeita que a escolha mesma do termo advem de seu caráter inextricável, de sua ressonância afetiva. Sua ambiguidade fala pela própria ambiguidade invencível da psique. Tentar um aporte clínico de tal termo (definição que, aliás, e ao que tudo indica, Strachey e demais tradutores do criador da psicanálise sem dúvida receberiam muito bem) o teria extirpado de seu valor qual meio de expressão do pensamento freudiano. Deve-se ter em conta, por conseguinte, que quando Freud fala da alma, ele produz uma condensação; certa metáfora. Trata-se de algo intangível em seu todo, que exerce poderosa influência em nossas vidas. Refere-se àquilo que nos faz humanos. Para Bettleheim, nenhum outro termo poderia igualmente contemplar a proposta subversiva trazida pela psicanálise.
Seguindo no trabalho de Strachey, deparamo-nos com o seguinte trecho, ligado às rebatidas de Freud às críticas de Morton Prince:

His readers are thus reminded that in the course of all his descriptions of these dissociated states he has never attempted to discover a dynamic explanation of such phenomena. If he had, he would inevitably have found that repression (or, more precisely, the resistance created by it) is the cause both of the dissociations and of the amnesia attaching to their psychical content (FREUD, 1980).

Neste ponto do capítulo VII, percebe-se a conexão da noção de recalque (aqui como repression) com o conceito de resistência. Em consulta ao trabalho de Laplanche e Pontalis, somos lembrados de que a teoria do recalque (no idioma fonte, Verdrängung), esse conceito que formula pedra angular no edifício psicanalítico, impôs-se vinculada a fatos clínicos desde os primeiros tratamentos de pacientes histéricos, nos quais Freud pode constatar que as lembranças ligadas à etiologia patológica não estavam disponíveis para os pacientes, mas trazem, quando recuperadas, ou redescobertas, grande tonalidade afetiva. A noção de recalque, aqui evocada, surge desde o início enquanto correlativa a inconsciente. “O termo ‘recalcado’ será durante muito tempo, para Freud, até a definição da ideia de defesas inconscientes do ego, sinônimo de inconsciente”. Assim, os conteúdos recalcados se furtam “ao domínio do sujeito e, como ‘grupo psíquico separado’, são regidos por leis próprias (processo primário)”. De maneira que uma representação recalcada constitui em si um âmbito de cristalização passível de atrair demais representações insuportáveis (e, por isso, transmigradas para o inconsciente; inclusive devido à angústia insuportável que sua tomada de consciência pode produzir na psique) sem que haja intervenção de propósito consciente. Nessas vias, a operação de recalque apresenta o caráter do processo primário, especificando-se enquanto defesa patológica, e configurando-se como processo dinâmico, ao implicar a utilização de um contra-investimento e, apesar disso, mantendo-se suscetível a ser posta em incidência pela pressão (drang) do desejo inconsciente que busca retornar à consciência, e satisfazer-se mediante as atividades do aparelho motor e da estimulação das zonas erógenas. Mas o quê é abarcado pelo recalque? Não exatamente o Trieb, pois, na medida em que se calca no orgânico, equivoca-se quanto à alternativa consciente-inconsciente; nem em exato o afeto. Este, apesar de modificado pelo recalque, não chega a se tornar em estrito inconsciente. Trata-se, então, dos “representantes-representação” (Vorstelung) do Trieb. Estes elementos representativos estão acoplados ao recalque primário, “quer provenham dele, quer entrem com ele em conexão fortuita. O recalque reserva a cada um deles um destino distinto ‘inteiramente individual’, segundo o seu grau de deformação, o seu afastamento do núcleo inconsciente ou seu valor afetivo” (LAPLANCHE & PONTALIS, 2001). Em consequência das devidas definições, apesar do recalque representar uma espécie de protótipo das ações defensivas, não é apropriado argumentar, em consonância com a Standard Edition, que o recalque equivale à noção de defesa; constitui momento da operação defensiva, no sentido preciso de recalque no inconsciente. E, enquanto conceito, pode ser entendido em seu triplo registro metapsicológico; daí: dos pontos de vista tópico, econômico e dinâmico. Ou seja: Verdrängung, no vocabulário freudiano, é termo bem distinto de Repression que, no alemão, costuma mais relacionar-se à repressão policial, contenção social, limitação incidida de forma deliberada ou prevista conforme o contexto sócio-político ou cultural do caso. Assim, seu cognato em inglês, repression, “ato de contenção”, “supressão”, ou de “controle” ou “subjugação deliberada ou percebida de algum sentimento”, não se aproxima de fato ao processo inconsciente de recalque, conforme sistematizado por Freud. É importante, também, vermos que, no trecho de The interpretation of dreams acima destacado, Strachey faz uso de psychical, e não de mental – o que chama a atenção para o fato de ele por vezes manter uma lealdade mais considerável à letra freudiana. Pois, até mesmo mais à frente no mesmo capítulo, deparamo-nos com a não usual utilização da expressão psychical apparatus, ao invés de mental apparatus. No entanto, ainda mais adiante aparece:

Dreams and neuroses seem to have preserved more mental antiquities than we could have imagined possible; so that psycho-analysis may claim a high place among the sciences which are concerned with the reconstruction of the earliest and most obscure periods of the beginnings of the human race (FREUD, 1980).

Neste trecho, encontramos mental antiquities junto à grafia psycho-analysis, que traz a devida ênfase na questão da psique. Tratar-se-ia da demonstração de certa ambivalência quanto à opção pelo uso de mental no senso do psíquico?
Assim, se pensamos na etimologia da palavra estilo, vinculada ao latim stylus, vara aguçada para escrever em argila, que passou a metaforizar maneira de escrever ou maneira de fazer, podemos ver que James Strachey, com seu estilo, faz furo na argila freudiana; em alguns momentos, submetendo-se à discursividade médico-científica e positivista, tentando preencher os supostos furos epistemológicos em Freud, acaba por produzir outros, numa busca de integridade técnica, ou no declínio imagético do texto devido a seu progressivo problema visual, tornando-se, destarte, uma espécie de Tirésias às avessas, preso à tradição médica, sem se entregar a alguma visão mais ampla, profunda, que flerte mais com o intangível. Mas o(s) furo(s) produz(em): a segurança, a fluidez, a riqueza vocabular, o bom uso das célebres Notas do editor inglês que pode ser feito pelo profissional sempre de modo interessante e profícuo – trata-se da mão de um grande escritor, erudito e humilde artífice – que transforma a obra de sua vida na portentosa tradução do labor do mestre vienense, legando-nos uma das mais belas prosas técnico-teóricas já produzidas na língua inglesa, em tom firme e acurado sob apuro visível a cada passo, mesmo com os problemas terminológicos ou o prejuízo imagético. Em todo caso, podemos estar seguros de, em inglês, fazer um dos caminhos intelectuais mais intensos do século XX, e conhecer um dos maiores autores desse riquíssimo idioma de Shakespeare.



Referências
BETTELHEIM, B. Freud and man’s soul. Nova York: Oxford University Press, 1982.
FREUD, S. JUNG, C. G. The Freud/Jung letters. Princeton: Princeton University Press, 1979.
FREUD, S. The interpretation of dreams. Em: The pelican Freud library. Tradução: James Strachey. Harmondsworth: Penguin Books, 1980.
FREUD, S. Compêndio de psicanálise. São Paulo: Autêntica, 2014.
G. O. GABBARD. Presentation of Strachey’s article. Disponível em: http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3330522/pdf/66.pdf. Colhido em: 10/05/2015.
LAPLANCHE, J., PONTALIS, J.-B. PONTALIS. Vocabulário da psicanálise. Tradução: Pedro Tamen. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
LO BIANCO, A. C. Freud: entre o movimento romântico e o pensamento científico do século XIX. Psychê, vol. VI, núm. 10, 2002.
MAHONY, P. Uma tradução psicanalítica de Freud. Em: Traduzindo Freud. Org.: Darius Gray Ornston. Tradução: Cristina Serra. Rio de Janeiro: Imago, 1999.
ORR D. W. Psychoanalysis and the Bloomsbury Group. Clemson: Clemson University Digital Press, 2004.
PEREIRA, M. E. C. A nada santa alma freudiana. Disponível em: http://revistacult.uol.com.br/home/2013/01/a-nada-santa-alma-freudiana/. Colhido em 10/05/2015.
SANTIAGO, J., LINO, C. E. de S. Saber e verdade no sonho da injeção de Irma. Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 16, dez. 2010.
STRACHEY, J. The Nature of the Therapeutic Action of Psycho-analysis. Disponível em: http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3330522/pdf/66.pdf. Colhido em: 10/ 05 /2015.

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EDSON MANZAN CORSI (Brasil). Escritor, tradutor e psicanalista. É autor do livro de contos Inferno e Memória, dos seguintes livros de poemas: Sombras do Momento, Duas Metáforas e um Sol, e Estranho Livro Noturno. Exerce a clínica psicanalítica em consultório particular e mantém grupos de estudo sobre diferentes tópicos. Encontra-se vinculado à formação em psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, de São Paulo. Página ilustrada con obras de los niños mágicos del Arte Amigo (Costa Rica), artistas invitados de esta edición de ARC.

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Fase II | Número 23 | Janeiro de 2017
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