segunda-feira, 21 de novembro de 2016

JOANA RUAS | Viagem de Rilke pela Espanha árabe


Em 1996 fui convidada a participar no Colóquio Interdisciplinar, «Rilke, 70 anos depois», organizado pelo Departamento de Estudos Germanísticos da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Decidi-me então por um trabalho sobre a influência exercida em Rilke pelas Cartas de Mariana Alcoforado, a freira de Beja. As Cartas Portuguesas, como ficaram conhecidas, foram escritas por Mariana Alcoforado ao jovem capitão do regimento de cavalaria do cardeal Mazarin, Noël Bouton de Chamilly, conde de St Léger. Mazarin, que seguindo a política de Richelieu, pretendia dividir as forças militares espanholas apoiando a Catalunha e Portugal na sua luta contra a Espanha, na sequência dessa política, um corpo expedicionário chefiado pelo tenente-general conde de Schomberg foi enviado para Portugal em 1660 para ajudar os portugueses na luta pela restauração da independência. Noël Bouton de Chamilly, conde de St Léger fez parte deste corpo expedicionário que uma vez em Portugal foi colocado no Alentejo sob a chefia de Schomberg que fora nomeado seu general mestre de campo. Em Beja, Noël Bouton conheceu Mariana Alcoforado, então uma jovem de 21 anos, freira no Convento da Conceição desta cidade alentejana, entre a Estremadura e a Andaluzia.
Após uma brilhante carreira militar na Flandres, Chamilly foi nomeado Marechal de França em 1703 tendo morrido em Paris em 1715. Sem ter tido um biógrafo, de Mariana Alcoforado apenas conhecemos a sua paixão e a sua morte em 1725 com oitenta e três anos de idade e que chegou a abadessa do convento.
Depois de em 1910 ter percorrido o Norte de África e, em 1911, visitado o Egipto, Rilke parte para Espanha no inverno de 1912 onde viaja por Toledo, Ronda, Córdova e Madrid, acompanhado pela obra do orientalista especializado em várias Línguas entre as quais o Hebreu e o Árabe, Antoine Fabre d’Olivet, a quem se deve também o conceito de Línguas Mães. O poeta quis nesta viagem alcançar Beja mas tendo ficado sem o seu companheiro de viagem, Fabre d’Olivet, em Ronda, esgotado pela solidão e pelo isolamento pois não entendia a língua castelhana, nem podia contar com o apoio das inúmeras pessoas com quem se correspondia, desistiu do seu propósito. Poeta de língua alemã e súbdito do império austríaco dos Habsburgos, Rilke nasceu em Praga e viveu os dez primeiros anos da sua vida nesta cidade impregnada pela cultura eslava, germana e judaica, situada na Boémia historicamente aberta à influência do sul e do ocidente, em especial da França. Até à recatolização levada a cabo pelos Jesuítas, Praga foi sacudida pelas lutas religiosas pois a Boémia está situada entre os Sudetas onde nasceu o filósofo místico teutónico, Jacob de Boehme e a Morávia herética de Jean Huss.
Depois da Grande Guerra, Rilke optou pela nacionalidade checa, tendo perdido, por esse facto, muitos dos seus amigos ligados ao império Austro-Húngaro. Nos meios intelectuais que Rilke frequentou, nomeadamente na Alemanha e, em 1900 em Worpswede onde conhece a que viria a ser sua esposa, Clara Westhoff, e uma amiga, Paula Becker, havia um intenso interesse pelo orientalismo. No circulo das suas relações, entre os que a esse estudo se dedicavam encontravam-se: Carl Heinrich Becker que foi o primeiro a sustentar a tese de que a única religião só habitada por Deus seria a judaica e que o arabismo de Toledo dizia mais respeito à vida árabe e judaica que ao cristianismo; Hugo Hofmannsthal que concebe, com um grupo de humanistas, a revitalização, através dos estudos filológicos, da leitura dos textos sagrados ; o iranista Friedrich Carl Andreas, marido de Lou-Andreas Salomé.  
Toledo constituiu para Rilke uma revelação. Eis o que ele disse sobre essa sua estada numa carta a Maria von Thurn und Taxis: «Percorri os diferentes lugares e impregnei-me do espírito de tudo como que para o reter para sempre: as pontes, as duas pontes, este rio, e, disposta acima dele, esta abundância aberta da paisagem que podemos abraçar com o olhar como algo em que se pode ainda trabalhar. E esta oportunidade que temos de ensaiar os primeiros caminhos, esta certeza indescritível em ser tomado e guiado — imagine que segui a ruela de São Tomé, depois a do Anjo. Esta última conduziu-me à Igreja de San Juan de los Reyes; ao longo dos seus muros pendem, em série, longas cadeias de aprisionados ou de libertados repousando sobre a cornija. Esta cidade incomparável contém a custo nos seus muros a paisagem árida, não diminuída, insubmissa, a montanha, a pura montanha, a montanha da Aparição — porque é duma maneira prodigiosa que a terra se eleva fora dos seus muros e se faz imediata diante das suas portas: mundo, criação, montanha e vale, génesis. Até aqui o tempo tem sido dos mais claros e o espetáculo das noites desenrola-se nos calmos espaços; a partir de hoje, o céu complicou-se depois do meio-dia e choveu, mas um vento frio e firme veio interromper a chuva na sua queda, empurrou as nuvens para o alto e comprimiu-as em massas compactas abaixo do sol já declinante, — adivinho a que espécie de formações a atmosfera aqui deve recorrer para se conformar docilmente à imagem da cidade: ameaças acumularam-se e, no horizonte, derramaram-se sobre o transparente relevo de outras nuvens, continentes imaginários que se ofereciam inocentemente a elas, e tudo isto acima da desértica ambiência da paisagem por esse facto ensombrada — enquanto que da profundidade do abismo, um troço do rio aparecia (mais alegre que Daniel na cova dos leões) —, a grande viga da ponte e, enfim, absolutamente empenhada na ação, a cidade com todos os seus matizes de cinzento e ocre face ao azul límpido mas inacessível do Oriente. Para quem está em Toledo, El Greco desaparece na ambiência aqui existente sendo apenas uma bela fivela que encerra a grande aparição à volta das coisas, um cabuchão enorme engastado neste terrível e sublime relicário.»
Foi nesta cidade, onde em toda a parte se sentia tão profundamente a Lei que se lhe tornava compreensível a lenda segundo a qual Deus teria, ao quarto dia da criação, tomado o sol para o pôr mesmo em cima de Toledo, que Rilke reencontrou a inspiração perdida pois ali compõe alguns fragmentos das Elegias. «Oh chuva de estrelas vista uma vez de uma ponte...» assim evocará Rilke, em 1915, a ponte de San Martin sobre o Tejo.







Desde 1901 que as cartas da religiosa portuguesa atraíram a atenção do poeta, tendo-as mais tarde celebrado nas Elegias de Duíno (na 1ª e na 5ª) ao lado da poetisa Gaspara Stampa. À exceção de Kant, o elogio das paixões foi feito, na Alemanha, por J.F.Abel, o mestre de Schiller, Herder, Fichte e Hegel. Rilke considera, contudo, o amor uma realização das amantes e, para lhes compreender a Voz, lê as Cartas de Mademoiselle Lespinasse, os Sonetos de Louise Labé, poetisa francesa do século XVI, traduz para o alemão os Sonetos de Elisabeth Barret Browning e o Sermão de Amor de Maria Madalena, uma obra que suscitou imensa admiração quando foi encontrada nas caves reais de S. Petersburgo, e, estando escrita em francês, pela elegância, fogosidade e audaciosa eloquência que caracterizavam o seu estilo, levou os peritos a considerarem-na como uma obra da Águia de Meaux, o mais ilustre representante do catolicismo do século XVII, Bossuet, autor das admiráveis Oraisons Funèbres. Na vasta correspondência mantida pelo poeta até 1921, a sua paixão pela freira de Beja continuou sendo objeto de uma profunda reflexão. A 15 de Junho de 1907, escreve a Clara Rilke: «As cartas de mademoiselle Lespinasse formam um grande volume de 536 páginas. Li todos os dias duas ou três pelo que tenho que ler para bastante tempo ainda. Não é preciso pensar na religiosa portuguesa. Ela é muito século XVIII, encontra prazer no seu infortúnio, sem que uma necessidade profunda a obrigue a ressenti-lo; e, com isto tudo, lenta, lenta, lenta. Rica, no entanto, de conhecimento e julgamento.» E, a 3 de Setembro de 1908, a Clara Rilke: «Eu contraponho-lhe ( a Rodin) a religiosa portuguesa, falo-lhe desta atitude transfigurada que aparece, aqui e ali, na mulher, de um querer que a leva para além da simples saciedade. Mas ele não acredita nisso e tem, ai! do seu lado, o exemplo de muitas santas que usaram Cristo, é fácil de provar, como de um simples companheiro de cama; um suave equivalente do macho ausente, do amante mais terno que elas poderiam ter encontrado, enfim, ter achado. Eu cito ainda o exemplo da minha religiosa. Eu mostro como em algumas das suas cartas ela soube exceder, ir mais além do objecto do seu amor. E estou bem seguro do assunto e juro que se cedendo à sua última prece, o conde de Chamilly, esta besta, tivesse regressado, ele ter-lhe-ia sido tão estranho, tão invisível como uma mosca que caminha na terra quando nós estamos no alto de uma torre e olhamos para baixo. Eu permaneço firme e não abandono em nada a minha convicção sobre a religiosa
Tendo regressado a Paris, troca impressões sobre o caso da religiosa portuguesa com André Gide e com Annette Kolb a quem, a 23 de Janeiro de 1912, escreve: «O caso da portuguesa é tão maravilhosamente puro porque ela não projeta as torrentes do seu sentimento no além, no imaginário, mas reconduz em si, com uma força infinita a genialidade desse sentimento; suportando-o, nada mais. Ela envelhece no convento, torna-se muito velha; não se torna numa santa nem numa boa religiosa. Repugna ao seu raro tacto colocar em Deus o que lhe não estava destinado desde a origem e que o conde de Chamilly podia desdenhar… Se esta mulher, cuja grandeza ultrapassa todos os limites, tivesse cedido um instante, ter-se-ia precipitado em Deus como uma pedra no mar e, se tivesse agradado a Deus lançar nela todo o seu esplendor como Ele o faz sem cessar para os Anjos, estou certo que, imediatamente, tal como ela se erguia lá, nesse triste convento, ela ter-se-ia tornado um anjo, interiormente, no fundo da sua natureza.»
Rilke decide traduzir para o alemão as Cartas de Mariana Alcoforado, trabalho que inicia em Abril de 1913, como se pode ler na carta que de Paris, a 10 de Abril desse ano, dirige a Marie von Thurn und Taxis: «Aqui os bosques e as árvores estão em trabalho sem que as possamos deter enquanto o mundo à volta deles se tornou melancólico, chove, tudo está penetrado de humidade e espantamo-nos que não neve de tal maneira parece haver indiferença no céu. Sobre a terra a primavera, no céu, a recusa, enquanto eu traduzo, finalmente, as cartas de Mariana Alcoforado. A mesma relação aí se encontra : Chamilly era o céu, mas Deus estava justamente, sem dúvida alguma, na terra, bem no centro do imperecível coração da religiosa portuguesa. A precedente tradução alemã era um puro escândalo; sinto pois uma grande alegria por poder dar uma versão pessoal e convicta destas cartas, as mais adoráveis entre as que até hoje foram escritas. Que magnificência desprovida de escrúpulos, e de que maneira assustadora a sua de querer suscitar o amor; que incêndio, que calamidade, que declínio! Arder para si, seguramente, se o pudéssemos, eis o que valeria a pena viver e morrer. Uma relação semelhante à da Religiosa deveria acabar por ser encontrada no fim dos nossos dias; estes gritos e em seguida nada a não ser um pequeno silêncio, contínuo, um silêncio universal e, depois, as Trombetas do Julgamento. Depois de uma tal voz, uma tal experiência que sobe todos os degraus do coração, é irrisório maltratar o amor por um pouco de felicidade, e não suficiente felicidade, e de passar o tempo em tudo isto, tempo que por assim dizer é já passado, antes mesmo que se tenha começado».
A 29 de Dezembro de 1921, já em Muzot, numa carta a Ilse Blumenthal-Weiss, escreve: «Sim, a voz de Mariana Alcoforado, freira de Beja, é uma das mais valiosas e maravilhosas ao longo dos Tempos — hoje como no passado. E como não havia de sê-lo? O grito será sempre o mesmo (só que nem todos os corações têm a mesma voz intensa na sua dor!). As mulheres só têm esta infinita tarefa do coração, é esta a sua arte perfeita enquanto os homens — que têm, em suma, outras ocupações — nela só esporadicamente participam enquanto desastrados diletantes ou, pior ainda, enquanto usurários do sentimento, ora acrescentando-o ora perturbando-o Os homens estão envolvidos na ação e a ventura que encontram numa mulher impele-os até com maior intensidade e premência para a ação a favor da qual julgam dever dirigir a intensidade adquirida no amor, afastam-se, concentram-se no seu trabalho, é com este que aprendem, que se comprometem e a este se amarram; aparecem de vez em quando, semidestruídos, semipossessivos e, excetuando certos momentos de namoro, mal distinguem entre o gesto certo e o gesto errado, quando deveriam antes cultivar o jardim do amor, expectante e tantas vezes abandonado, tantas vezes revolto. Alguns são assim. As outras, as mulheres, só têm esse jardim e são para ele o céu, o vento e o sossego; só dentro dele se movem, só podem aceitar a existência e as estações no ritmo da espera da plenitude e da despedida. É esta insuperável fatalidade que na freira portuguesa é mais forte e mais pura do que em qualquer outra — excetuando Safo, talvez — e o seu grito é justo, eternamente justo ( pois o conde de Chamilly, por seu lado, talvez tivesse ajudado muito a darmos-lhe razão!). Infelizmente traduzi tarde demais essas cinco cartas; já não estava nessa ocasião tão perto delas como no tempo em que as descobri (há cerca de vinte anos) — e, por esse motivo prescindi de dar ao livrinho uma introdução ou uma observação do meu punho. Leio, comovido, a ligeira variação como que tocada a um só dedo sobre o instrumento das minhas palavras num silêncio frágil. E agradeço os votos de Ano Novo. Que para si e para os que lhe são queridos seja portador de muitas benesses. Sim, vivo completamente só neste manoir que um amigo alugou para mim. Depois das horríveis interrupções da minha vida interior e exterior dos últimos anos que passei, somente preciso disto: uma longa solidão porventura para sempre. Só assim espero poder reconstituir alguma continuidade ao meu labor íntimo e tomada de consciência. Vosso, Rainer Maria Rilke
As Cartas da Freira de Beja chamaram a atenção do público para o seu destinatário tendo Saint-Simon feito um retrato de Chamilly em que o descreve como «um homem grande e forte, o melhor homem do mundo, mas tão tolo e espesso, que não se compreende que pudesse ter qualquer talento para a guerra… Vendo-o, ouvindo-o, jamais se acreditaria ter inspirado um amor tão desmedido como o que habita a alma destas famosas Cartas Portuguesas».
Muitos foram os artistas que criaram imagens de Soror Mariana. Na 5ª Elegia de Duíno, Rilke tenta dar visibilidade ao rosto de Mariana, dando-nos um esboço que localiza fora do pequeno retângulo da sua cela, optando por a colocar na imobilidade da sua figura na Praça , espaço fechado tendo em primeiro plano a Nuca, versão moderna do cavaleiro de Chamilly, num cenário onde se exibem acrobatas , espectadores e rufadores de tambor. Na 5ª Elegia de Duíno, Ri1ke traça o rosto perecive1 de Mariana para no-lo devolver, pela cosmética, imperecive1 na sua fisionomia primitiva, e no sentido de Figura que lhe dá a iconografia cristã pois entre a imagem arrebatada e a reencontrada se narram acontecimentos passados e também vindouros. Este rosto impassível está tocado pelo eterno. É hermético como a palavra amor é uma palavra etrusca hermética. O poeta fixou o instante em que ela, pela superação, alcançou a liberdade e a paz. O poeta pintou a plenitude de uma alma que superou o sofrimento e devolveu a si mesma a integridade do que havia sido.
Outra foi a abordagem de Henri Matisse que ao contrário do poeta, fixou no rosto da religiosa os vestígios da passagem intensa da paixão. Matisse, tendo sido submetido a uma delicada intervenção cirúrgica, em 1945 ocupou a sua prolongada convalescença trabalhando na edição ilustrada das 5 cartas de amor da religiosa portuguesa. Para dar não apenas visibilidade mas realidade aos retratos imaginários dos diversos estados de alma da alentejana Mariana Alcoforado face à força do sentimento amoroso e simultaneamente à dor da ausência do amado e à sua perda definitiva, Matisse tentou vários modelos para os seus desenhos da religiosa e acabou por escolher Doucia, a filha do seu merceeiro, mulher-flor mas com a robustez que caracteriza a mulher alentejana e que inspirou pintores portugueses como Querubim Lapa e , sobretudo Manuel Ribeiro de Pavia. As páginas do livro, editado em 1946 por Tériade, foram profusamente ornamentadas com flores, frutos e plantas características da flora mediterrânica.
Em 1964, Lima de Freitas ilustrou o livro Soror Mariana, Cartas de Amor, uma edição da Artis, Lisboa, em que a par da imagem da religiosa cria, em cada uma das cartas , a figura de uma mulher secular, de cabelos soltos, simplesmente apaixonada ,em que o sagrado e o profano não coexistindo nas imagens, estão unidos na linguagem na medida em que a linguagem é a expressão do pensamento e, ao mesmo tempo, como disse Wittgenstein,,uma representação da realidade.



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JOANA RUAS (Portugal). Ensaísta, narradora e jornalista. Estreia com o romance com Corpo Colonial (1981), seguindo-se-lhe O Claro Vento do Mar (1996), A Pele dos Séculos (2001) e A Batalha das Lágrimas (2006). O seu livro de ficção Das Estações entre Portas foi publicado no Brasil pela Escrituras Editora. Participou na 8ª Bienal Internacional do Livro do Ceará onde proferiu palestra intitulada "Aproximar o Distante, Do Estranho ao Familiar – duas experiências: Timor-Leste e Guiné-Bissau". Contacto: joanaruas@sapo.pt. Página ilustrada com obras de Armando Reverón (Venezuela), artista convidado desta edição de ARC.






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