terça-feira, 19 de julho de 2016

JACOB KLINTOWITZ | Ivald Granato e a morte em São Paulo


Na madruga de hoje, dia 3 de julho de 2016, morreu o pintor Ivald Granato que foi meu fraterno amigo durante os últimos 49 anos. Talvez seja uma boa hora de dizer que a arte e o artista podem ser sagrados.
Ivald Granato foi um artista que se impregnou e sofregamente sorveu o néctar da criação até o derradeiro momento. Há coisas que só podem ser expressas se bem expressas, como nos disse Thomas Mann. Por dois motivos é justo citá-lo, primeiro porque o título deste texto é derivado da comovente novela de Mann, A morte em Veneza. E, o segundo, é que Granato fez cada obra e cada intervenção, a cada vez, com imenso domínio expressivo e sempre como se fosse o clímax da sua vida.
Eu também pensei num outro título para este texto, um que resumisse o percurso deste artista tão inovador e nem sempre percebido na sua totalidade no seu amado Brasil. Trata-se de epigrama do velho mestre vienense Karl Kraus:

Procura-se deserto apropriado para uma miragem.

Ivald Granato foi um transformador, um artista alquimista de acordo com a lenda sobre a alquimia como transmutação da matéria, um homem que altera a natureza das coisas agindo sobre elas para encontrar a sua substância essencial e torná-las diferentes e, na verdade, torná-las idênticas a si mesmo, mas com uma aparência outra. Ele transmuta a matéria para torná-la igual a si mesmo. Sobre a capa da alteração permanente, ele refaz a herança cultural e anímica para, finalmente, após ferver infinitamente no seu athanor, a ter em si mesmo, a essência da mesma verdade, mas sob a aparência da atualidade.                
Transformar, alterar, refazer para, ao final, ser igual a si mesmo. Transformar para refazer e obter a forma essencial, original, igual a si mesmo e desta vez, à sua própria natureza paradigmática.
No seu percurso, o artista Ivald Granato teve decidida participação social, seja na organização de eventos coletivos, performances, curadoria de exposições temáticas, criação de obras gráficas. O seu processo criativo teve este intercâmbio permanente com o exterior, com outras personalidades criativas, com os assuntos culturais, com os eventos temporários, com os artistas e técnicos de suporte e parceria criativa como os mestres impressores, fotógrafos, editores de imagem. Granato se alimentou deste intercurso e, por sua vez, alimentou o circuito. Poucos artistas brasileiros foram tão dotados para esta experiência coletiva da arte para todos e como inclusão do que Ivald Granato.
O poeta Guillaume Apollinaire, de tanta importância no entendimento e iluminação da arte contemporânea, o defensor do cubismo, no seu belíssimo livro: Le Bestiaire ou Cortège d’Orphée, ilustrado por Raoul Dufy, tem um poema que define bem este ser de comunicação permanente, que era também o seu próprio caso.

Le Chat

Je souhaite dans ma Maison:
Une femme ayant sa raison,
 Um chat passant parmi les livres,
 Des amis em toute saison
 Sans lesquels je ne peux pas vivre.

Na minha tradução livre:

O Gato

Eu quero na minha casa:
Uma mulher com a sua sabedoria,
Um gato passando entre os livros,
Os amigos em todos os momentos
Sem os quais eu não posso viver.

Os amigos, em todos os momentos, sem os quais eu não posso viver: Ivald Granato.
Trata-se de um artista símbolo da vanguarda brasileira, um dos criadores da performance no país e atuante na criação de eventos simbólicos como a mostra paralela “Mitos Vadios”, feita de performances, obras perecíveis, discursos, instalações, declarações, cenas teatrais, em contraposição ao tema da Bienal “Mitos e Magia”.
Aqui, em minha opinião, o artista não se contrapunha ao tema ou à ideia da existência da mitologia e sua importância na estruturação da arte e nem à convicção de que os mitos possam pertencer à estrutura psíquica permanente do ser humano e ser estruturante da sua psiquê. E nem mesmo ele se opunha à discussão da magia, tomada neste contexto como uma recorrência à arte totêmica e também ao xamanismo. Talvez Ivald Granato também não negasse a Bienal Internacional de São Paulo. Eu acho que Granato, mais uma vez, queria simplesmente chamar a atenção para o ato cotidiano da criação artística, para a existência de um trabalho diário e no qual o talento é alicerçado no duro exercício.
Há, igualmente, a empatia de Granato com os artistas, em geral, o seu inconformismo tribal com aqueles que estão marginalizados de eventos, certames, espaços públicos, museus e do circuito da arte. Muito de suas ações públicas têm como substrato o seu impulso pela integração das partes.
Acredito que Granato não perderia a sua ideia, a própria piada do título, “Mitos Vadios”, por nada deste mundo. E, como uma constante que observei neste artista, ele simplesmente gostou de fazer uma oposição em forma de acréscimo, um comentário bem humorado ao título e brincar com as palavras. Granato é um artista que aparentou desprezo pela palavra e pelo discurso verbal e, foi comum, expressar-se de maneira onomatopeica, como se fosse personagem de história em quadrinhos. O que eu já apelidei de “idioma granatês”. E, no entanto, ele amou o jogo de palavras. Talvez, na verdade, o que incomodava o artista, fosse a palavra utilizada artificialmente, sem o seu peso etimológico, com snobismo, como uma máscara, esconderijo da superficialidade e da cultura de aparências.
Também podemos aceitar que Oscar Wilde tem razão quando nos diz “Aos olhos de quem leu a História, a desobediência é a virtude original do homem. A desobediência permitiu o progresso – a desobediência e a rebelião.”.
Granato foi pintor, gravador, performático, escultor. Como alguns outros artistas no mundo inteiro, Ivald Granato organizou mostras de arte, promoveu atividades coletivas, intercâmbios internacionais, e, à sua maneira, gerou energia e reflexão no meio cultural. Artista de natureza expressionista, a sua obra é dotada de grande dinamismo e de um marcado desenho de alta intensidade.
A aparência costuma ser a máscara que oculta o real. E, paradoxalmente, no oculto pode estar a revelação. O que se oculta indicia a realidade.
 Ivald Granato é o aparentemente anárquico mestre da história da arte.
E pode ser dito dele, numa paráfrase do que Virginia Woolf escreveu sobre Katherine Mansfield, que Ivald Granato é um pintor. Um pintor nato. Tudo o que sente, ouve ou vê não é fragmentado nem descartado; pertence ao conjunto de sua escritura, de sua arte.
Todo artista nato, para continuarmos com a expressão da Virginia Woolf, tem convicção absoluta de sua linguagem, pois ela é a expressão máxima, e, talvez, a expressão total, do seu ser. É uma verdade absoluta que nada pode mudar, independente de ser aceita e acolhida, ou não, pelo universo social.
Vocação é destino. Mesmo que vocação signifique “chamamento”, e nada possa ser mais contundente que a sua raiz latina, hoje nos meios de comunicação a preferência é por “talento”, mais fraco, menos preciso e sem o compromisso pessoal que a vocação exige. Ivald Granato foi um artista nato, acreditou de maneira absoluta na sua linguagem que expressou a totalidade do seu ser e teve certeza de que a linguagem forma o ser.
O extraordinário escritor G. B. Shaw utilizou este enigma, o da linguagem como formadora do ser, para escrever a sua peça mais famosa, Pigmalião. Nela está dito com absoluta clareza (evidentemente na clara tradução do Millôr Fernandes): “O domínio da linguagem faz mudar a vida…” Shaw também era um artista nato.
Penso que cabe uma observação: na verdade, a principal parte deste relato é feita de minhas observações sobre a atitude pessoal do artista e do seu desempenho. É a marca do meu convívio.
E para continuar no mesmo ritmo epigramático, é melhor voltar a citar Oscar Wilde. A escolha deste irlandês genial deve-se, além do brilho das suas frases, ao fato de que era um escritor profundo que fingia ser frívolo.  O uso das máscaras como disfarces, ocultamentos e revelações é substrato permanente neste relato. Não só o artista e a sua aparência, como o mundo social e as suas máscaras como verdades aparentes que levam ao equivoco. A persistente ilusão racionalista de que a arte é feita de conceitos intelectuais, mesmo que seja desmentido pela prática artística e por centenas de depoimentos de artistas de todos os gêneros, é uma máscara amortecedora e discriminatória. Vejo a ação do Granato como um gesto de solidariedade. Cabe ao homem da nossa época lutar por sermos mais humanos.
Oscar Wilde escreveu que o “…mistério do amor é maior do que o mistério da morte”.
Algumas vezes Granato me mostrou a sua releitura da obra de Francis Bacon. Pinturas de rara qualidade, dotadas de ironia, poesia subjacente e um doce delírio no dialogo imaginário com o mestre. Certo dia, combinamos que eu faria um texto para uma grande exposição do “Baconato”. E nunca mais falamos no assunto. Mas eu o tinha vivo em meu espírito. Eu imaginei mais do que o tratado entre nós: um livro de pequeno formato, mas de muitas páginas, papel couché fosco 170 grs, uma família de tipos histórica, talvez Bodoni, existente desde o século XVIII, com um projeto gráfico derivado dos desenhos e esboços de Da Vinci. Seria uma homenagem e um diálogo com três mestres, Da Vinci, Francis Bacon e Ivald Granato.
Eu já fazia pequenas anotações (partes soltas na imensidão do papel) sobre o “Baconato” a espera de uma data comemorativa qualquer para mostrar ao Granato e me beneficiar do seu permanente entusiasmo para prosseguir. É o que se segue, anotações em busca do entusiasmo que já não está mais entre nós.
Refazer para, ao final, ser igual a si mesmo. Transformar para refazer e obter a forma essencial, original, igual a si mesmo e desta vez, à sua própria natureza paradigmática.
A obra de Ivald Granato o qualifica para esta experimentação de criação conjunta de linguagem. As suas características de estar filiada a história da arte e, ao mesmo tempo, ser capaz da espontaneidade, estão próximas da vivência do fazer coletivo e da sobrevivência da individualidade quando em grupo.
O devorador de imagens. A manifestação da arte como sistema de permanente reciclagem das energias. Antropofagia mágica. Comer a linguagem para ter em si as virtudes do objeto e do conceito do outro. O devorador das imagens do mundo.
A alteridade e o canibalismo granatino.
O que Ivald Granato sempre faz não é incluir todo mundo no seu trabalho e todo o mundo no mundo da arte e a arte em todo o mundo?
Ivald Granato é um devorador das imagens do mundo. E o que registra esta câmera idealizada?
Ivald Granato domina as técnicas formais do desenho e da gravura. Naturalmente a sua rapidez e intensidade é mais próxima da litografia do que da gravura em metal que, em regra, exige outro tipo de meditação. A gravura em metal é feita, no mais das vezes, por artistas santos, “tibetanos”, filósofos, iluminados. O gesto explosivo de Ivald Granato registra a natureza, flores; figuras humanas, a sua constante em tantos anos; cabeças humanas; a história da arte, por apropriação e intervenções em obras de artistas como Francis Bacon, Pablo Picasso, Andy Warhol, Leonardo da Vinci, Jasper Johns, Henri Matisse.
É bastante claro que o núcleo central da obra de Granato é refazer e experimentar todas as experiências criativas da arte nos séculos vinte e vinte e um.
Pode ser dito que este é um princípio geral da arte e que ela é, do ponto de vista histórico e do ponto de vista da linguagem, uma permanente releitura. As rupturas são feitas impregnadas de história pregressa. E é sempre estimulante quando percebemos que as rupturas foram criadas passo a passo e são processos e não exatamente rompimentos.
Talvez onde Granato nos diz de maneira mais franca de seu processo criativo seja na série, que, aliás, parece infinita, nunca acaba, intitulada de Baconato. Francis Bacon mais Ivald Granato. 
O aspecto saboroso literariamente é que Bacon, pelo seu lado, também é um devorador de imagens. A começar pelo seu nome, é claro, que é o mesmo nome do filósofo, cientista, e misterioso esotérico Francis Bacon, seu parente distante. Homem de saber enciclopédico, experimentalista, Francis Bacon (1561-1626) é considerado como um dos criadores da ciência moderna. Francis Bacon era um homem tão extraordinário que quando ainda não estava certa a identidade de William Shakespeare, uma forte corrente intelectual acreditou que William Shakespeare era Francis Bacon sob pseudônimo. Para o gênio literário que, segundo Harold Bloom, criou o homem moderno, só Bacon seria suficiente.
  E Francis Bacon (1909-1992), o mais impactante artista da segunda metade do século vinte, que nos revelou, mais uma vez, o peso da matéria humana, sempre se fundamentou na história cultural. Ele, sozinho em seu ateliê, lia em voz alta os poetas, especialmente o grego Ésquilo. Os poetas são “formidáveis” disparadores da arte (estimuladores, ponto de partida para enfrentar a tela branca), nos disse Bacon. A sua pintura era mais “clinica”, do que “Macbeth”, de Shakespeare, afirmou.
Pois bem, além de tudo isto, já por si só um assunto que requereria longo e delicado e delicioso relato, este irlandês de gênio, refez a pintura a partir da pintura de Diego Velázquez, especialmente o “Papa Inocêncio X”.
É de Francis Bacon, em livro-entrevista de Franck Maubert, as seguintes afirmações, colhidas quase ao acaso:

…Mas, Velázquez…
Velázquez ainda assim é diferente. A grande arte acrescenta à vida.
Sou obcecado por Velázquez.
Velázquez é o ponto de partida. E, depois, em seguida, deixo-me guiar pelo acaso. Velázquez me serviu e resserviu…

Francis Bacon como um devorador de imagens e um vulcão criativo de imagens. Lava ardente. Bacon como transformador. Alquimista.
“Baconato” é um disparador de texto. Acho que dá para escrever um “Jaconato”.

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Jacob Klintowitz (Brasil, 1941). Ensaísta e crítico de arte, uma das vozes mais perenes e lúcidas da crítica de artes no Brasil. Página ilustrada com obras de Ivald Granato (Brasil, 1949-2016).



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Agulha Revista de Cultura
Fase II | Número 19 | Agosto de 2016
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