terça-feira, 19 de abril de 2016

PEDRO DE ANDRADE ALVIM | François Biard e o “Louvre popular”


Ao me debruçar sobre a trajetória do pintor romântico francês François-Auguste Biard (1799-1882), durante a pesquisa de doutorado centrada num levantamento sobre a trajetória do artista e sua obra, saltou-me aos olhos a afinidade entre a posição que Biard e a revista Musée des Familles se propunham a ocupar na cena francesa por volta de 1840, no contexto de uma indústria cultural em crescimento, sob a bandeira da aliança entre instrução e diversão.
As revistas ilustradas do século dezenove apresentam um material privilegiado para a análise dos avatares e transformações sucessivas do ideal iluminista de difusão do conhecimento. A associação entre o pintor Biard e o Musée des familles, baseando-se na sobreposição de uma visada enciclopédica a uma abordagem sensacionalista, seguia os parâmetros de uma cultura de massa em processo acelerado de expansão.
Hoje um nome pouco conhecido, François-Auguste Biard expôs nos Salões anuais de pintura em Paris ao longo de seis décadas. Grande viajante, manteve na capital francesa um "atelier-museu", que funcionava como gabinete de curiosidades e vitrine de suas pinturas mostrando sítios e costumes dos quatro cantos do mundo. Biard alcançou grande popularidade durante a chamada Monarquia de Julho (1830-1848), mas a principal razão de seu sucesso não eram os quadros com motivos exóticos, e sim pinturas de cenas cômicas, que conquistavam a preferência do público, atraíndo pequenas multidões nos Salões anuais de pintura. Tal sucesso, a que se somavam a aura romântica de explorador e certa competência como retratista, acabou por aproximá-lo da corte do "rei-burguês" Luís Felipe, que o favoreceu com encomendas de pinturas destinadas a instituições públicas, museus e coleções oficiais. Em 1839, participou de uma expedição ao Círculo Polar Ártico, indo da Lapônia ao arquipélago groenlandês do Spitzberg. Entre 1859 e 1861, o pintor, então com sessenta anos de idade, viajou pelo Brasil, onde frequentou a corte e excursionou por florestas do Espírito Santo e Amazônia, realizando em nosso país seu último grande empreendimento exploratório.
Nosso outro protagonista é o Musée des Familles, revista fundada em 1833 e que, passando por múltiplas encarnações, só deixou de circular em 1900. A publicação, que pode ser considerada como uma versão mais modesta do Magazin Pittoresque, outra consagrada “enciclopédia popular” do período, era vendida em fascículos semanais por alguns centavos. Segundo Émile de Girardin, seu fundador, o Musée des Familles tinha a intenção de ser um "Louvre popular, acessível às famílias modestas, pouco cultivadas, mais atraídas pelas imagens do que pelos textos": educar, dando ênfase à ilustração (no sentido de “cultivo”) pela imagem. Os Museus constituíam, assim, um gênero de revista que conferia uma função especial às imagens (embora em sua maior parte fossem gravuras de divulgação, feitas mais ou menos às pressas); um sinal disso é que havia possibilidade de destacar as estampas centrais, e colecioná-las. Atraindo a atenção do público, as imagens acabavam também funcionando como uma espécie de “selo de cultura”.
O Musée des Familles era dividido em seções como episódios históricos, biografias de homens célebres, "fisiologias" da vida moderna (gênero em voga na época, que conbinava observação social a uma abordagem própria das ciências naturais, e possivelmente alimentou o romance naturalista do século XIX), descrições de culturas estrangeiras, temas de divulgação científica… As seções da revista correspondiam de perto às categorias temáticas dos Salões de Pintura frequentados pelo grande público durante todo o século XIX: assuntos históricos, episódios da vida de personagens célebres, cenas de gênero ou de costumes (voltadas para as especificidades cuturais ou sociais), representações de sítios naturais, curiosidades científicas, etc. Os textos eram imbuídos de uma mensagem moral e embebidos de sentimentalismo, adotando um tom paternal e didático. A seriedade de propósitos se estampava nos títulos das seções: “estudos históricos", “estudos de ciências naturais", "estudos de moral". Folhetins, contos e poesias também eram publicados, pelo Musée des Familles, que entre colaboradores de menor importância, chegou a recrutar escritores como Balzac, Alexandre Dumas Pai, Théophile Gautier, Victor Hugo, Jules Verne e Eugène Sue. Ilustradores célebres, como Gavarni, Granville, Johannot e Daumier, também trabalharam para a revista.
Num de seus reveladores prospectus, o Musée des Familles declarava intentar

fazer concorrer todos os homens de imaginação e de talento à civilização gradual de todas as classes.

E explicava:

Os mistérios mais árduos tomam aqui uma forma atraente; o saber faz-se pequeno e ajoelha-se diante daqueles a quem ensina (…) o livro para todos (…) que pode ser posto entre as mãos das meninas pequenas, enquanto os homens sérios nele encontram as distrações que pedem à literatura. É uma Revista, mas uma Revista que não apresenta perigo, e acima de tudo uma Revista divertida. [1]

O prospectus de 1840 também informava que uma seção especial seria destinada a

fragmentos de viagens habilmente enquadrados, extratos de obras curiosas, custosas ou raras, que retraçam a história de povos longínquos e desconhecidos.

Entre os anos de 1838 e 1841 a revista publicou vários relatos de expedições polares, artigos de divulgação sobre o ambiente polar e os costumes esquimós e lapões, assim como ilustrações mostrando a fauna e paisagem das regiões glaciais. Uma gravura anônima adaptada da tela Embarcação atacada por ursos brancos, de Biard, foi publicada no mesmo número em que uma resenha alardeava o sucesso da pintura no Salão de 1839. A repercussão publicitária que Biard buscava já a partir da escolha e no tratamento de seus temas se mostrava bastante compatível com a abordagem “simples e dramática” que o Musée des Familles, também fortemente interessado em aumentar suas vendas, optava por dar a assuntos históricos ou científicos.
O sincronismo entre a produção de Biard e os assuntos abordados nos artigos da revista remonta a fevereiro de 1836, em que um texto sobre o tráfico negreiro é ilustrado por uma xilogravura adaptada da pintura de 1835, que tentava sintetizar de forma cênica e dramática a captura e venda de escravos na costa africana. São publicadas notas sobre a atividade do pintor; uma delas refere-se à finalização da Sati hindu, “grande composição cheia de poesia”, mostrando o sacrifício de uma jovem viuva na pira funerária do finado brâmane. Na seção de crítica de arte são feitos comentários extensos sobre os envios cômicos e dramáticos do pintor aos Salões. Nessas obras, como nos textos publicados no Musée, o teor humanista se convertia facilmente em sentimentalismo, a pesquisa etnográfica em apelo exótico e a “reflexão moral” precisava de um contraponto humorístico.
Em sua política de “popularizar a literatura e as artes”, os textos e as gravuras da revista usavam às vezes como matéria prima as mais célebres pinturas da época. Um comunicado editorial proclamava, em uma ocasião, seu orgulho por haver publicado a história de Jane Grey alguns meses antes do Salão de 1834, em que Delaroche exibia sua versão do episódio, “a obra mais popular da exposição”. [2]
O sucesso e o prestígio oficial adquiridos por Biard na década de 1830 o tornavam um colaborador precioso para o Musée des Familles. Várias xilogravuras feitas a partir de suas pinturas foram publicadas nas páginas centrais da revista, como Sati e Cabeças de Lapões, entre 1837 e 1841. A revista publicaria também versões romanceadas de relatos de viagem enviados por Biard da Dinamarca e Noruega. Esses textos, apresentados pelo editor S. H. Berthoud, eram a perfeita introdução para um gênero de pintura que o pintor passou a praticar em obras como A juventude de Lineu; Gulliver na Ilha dos Gigantes e Descoberta de um Mamute Congelado na Sibéria.
Biard encontrou um aliado no editor-chefe da revista, Samuel Henry Berthoud (1804-1891), que viria a ser seu padrinho de casamento em 1841. Especializado em temas ligados a ciências naturais, ele praticava um jornalismo didático e também realizava a produção em série de biografias de artistas célebres, que se espraiavam ao longo de várias edições do Musée des familles. Os “temas à la Berthoud”, a que mais tarde irá se referir Baudelaire, [3] correspondem à proliferação de quadros mostrando episódios da vida dos grandes artistas, que eram expostos em grande quantidade nos Salões de pintura do século XIX. O Musée des Familles dá continuidade a esse comércio introduzindo seus leitores “nos ateliers de Biard, [Victor] Schnetz e Ary Scheffer ou entretendo-os com a biografia de Murillo ou Géricault”. [4]

LE SINGE DE BIARD E A CULTURA DOS ALMANAQUES | Um texto curioso de Berthoud intitulado Le singe de Biard marcou o início da parceria entre o pintor e o Musée des familles, em 1838. [5] Trata-se de uma espécie de conto ambientado no atelier-museu de Biard. O autor alonga-se na descrição do atelier da Place Vendôme, situado no último andar de um prédio antigo, um vasto saguão repleto de curiosidades como jacarés empalhados, peles de tigre e caiaques esquimós. Pontificando entre os freqüentadores habituais do atelier, um vieux savant toma a palavra para defender a autoridade das narrativas tradicionais contra a “dúvida moderna generalizada”:

Adeus a essas lendas ingênuas que se contavam desde muitos séculos atrás!

O ancião põe-se em seguida a enumerar algumas narrativas imbuídas de significado histórico e moral, como o encontro de Diógenes e Alexandre, o episódio da espada de Dâmocles e outras belas histórias, que de um momento para o outro passaram a ser expostas a um ceticismo generalizado. Desafiado pelos convivas, o Velho Sábio dá mostras de estar em sintonia com o espírito científico moderno ao apresentar provas factuais da veracidade do relato sobre a aranha amestrada do escritor Pélisson, aprisionado na Bastilha no século XVII.
Finda a intervenção do “velho sábio”, Biard, apresenta à assistência sua própria aranha de Pélisson: Mouniss, um macaquinho capaz de surpreender a todos com truques e acrobacias. Brinda então seus convidados com relatos das andanças que propiciaram seu encontro com o pequeno companheiro:

Às vezes rico, às vezes pobre, nunca em paz e sem sobressaltos de fortuna…

O conto de Berthoud termina, com o relato do fim trágico de Mouniss, ocorrido tempo depois da reunião no atelier de Biard: excessivamente mimado pelos comensais do pintor, ele acaba por morrer de indigestão. Sua carcaça empalhada será conservada junto à gaiola de outra mascote: um camaleão, cuja história o autor reserva para outra oportunidade. O destino do macaco fora talvez uma advertência sobre as conseqüências nefastas de um sucesso fácil, fundado no simples entretenimento.
 O ponto central do conto é o discurso proferido pelo vieux savant, exaltando o valor moral e instrutivo das "lendas ingênuas”, que formam uma cultura de fait-divers da história nacional e de diversas regiões do globo, espécie de arquivo de experiências que serve de base para valores morais e saber científico. Até certo ponto intrigante é o exaltado protesto contra a "dúvida moderna generalizada". A que tal discurso estaria de fato reagindo? Talvez estivesse menos voltado contra o espírito cético e positivista apontado no texto, do que contra tendências iconoclastas de setores avant-garde da crítica artística e literária, cujo potencial de negação ameaçava a credibilidade de um empreendimento como o Musée des Familles e da produção de artistas como Biard, que buscavam agradar aos diversos setores de uma burguesia em plena expansão. No momento mesmo em que os excessos da imaginação romântica estavam se tornando mais palatáveis para o grande público e em que "O macaco de Biard" foi publicado no Musée des Familles, surgiam novelas como Fortunio de Théophile Gautier (1837) e Capitaine Pamphyle de Alexandre Dumas Père (1840), que parodiavam clichês românticos, exacerbando-os até o non-sense. Por volta de 1870, com o projeto de um Dicionário das Ideias Feitas, Flaubert alcance o cume desse espírito paródico e niilista, compilando os lugares comuns da “cultura de almanaque”, que fora continuamente difundida e reproduzida ao longo das décadas passadas. Com isso, surgia um gênero inédito de absurdo.

O “ALTO” E O “BAIXO” ROMANTISMOS | A carreira de Biard iria também sofrer com tal processo de descrédito. Nos anos de 1840, o pintor seria qualificado com ironia por Baudelaire de homem universal, [6] devido à sua capacidade de abordar com a mesma confiança tanto os gêneros considerados mais nobres quanto os considerados mais vulgares. Um dos aspectos sintomáticos que se apresentam em sua obra é o esforço para combinar elementos tidos como trágicos e grotescos, seguindo os exemplos de Victor Hugo e de Delacroix. Desde o início, Biard havia buscado formas de conciliar o sublime com o trivial, nos termos da célebre fórmula de Victor Hugo no prefácio de Cromwell (1827). O modo como sobrepunha numa mesma tela componentes cômicos e dramáticos podia desorientar o espectador e certamente exasperava a crítica. Os comentadores dos quadros diziam que ficavam em dúvida se deviam "rir ou tremer" diante das cenas representadas. A trajetória do artista e a recepção crítica de sua obra tendem a expor a tensão entre o "alto" romantismo e os “vulgarizadores”, que visavam, conscientemente ou não, o consumo de massa. Um vínculo seminal entre e a produção artística e literária do Romantismo e os estereótipos da cultura de massa, que floreciam juntos no mesmo período foi denunciado pelo crítico de arte Clement Greenberg em um texto de 1939, “Vanguarda e Kitsch”.
Aos poucos, os temas exóticos foram se revelando também um terreno propício para o jogo com as expectativas e emoções do público, acrescentando um elemento de estranhamento cultural que podia fornecer uma espécie de álibi para a confusão dos gêneros artísticos consolidados.
Um dos exemplos mais notáveis disso é fornecido por As conseqüências de um naufrágio, pintura exposta no Salão de 1837 reproduzida numa xilogravura do Musée des Familles. Ao escrever sobre o quadro na revista, um comentarista anônimo dizia sentir “o coração apertado diante desse horrível espetáculo”, que “falava à alma pelo terror e pela piedade”. [7] O recurso à autoridade da fórmula de Aristóteles mostra, mais uma vez, o modo como o Musée des Familles (provavelmente refletindo o estilo do editor Berthoud) buscava apoiar-se diretamente sobre paradigmas de reconhecida universalidade para legitimar suas posições. Os partidários do modelo de arte “instrutiva” e “divertida” defendido pelo pintor se mobilizaram naquele momento, uma vez que o Naufrágio exposto no Salão de 1837 estava sendo duramente atacado, levado mesmo à beira do ridículo por críticos de destaque.
 Gustave Planche, por exemplo, irritava-se com a “literalidade” da obra:

Se fôssemos testemunhas de um espetáculo semelhante, sem dúvida ficaríamos amedrontados, tomados de piedade, mas não podemos suportar a literalidade de tais angústias e calafrios: isso não é tragédia, é um horrível melodrama. [8]

A pintura é descrita da maneira seguinte pelo poeta e crítico Auguste Barbier, que se revelaria em diferentes ocasiões um aliado próximo de Biard:

Numa costa tempestuosa, vemos uma massa de carne branca, uma massa de mulheres e crianças nuas, tiritando de pavor à beira das ondas salgadas; e à volta dessa carne de peixe, dessa maré humana, uma ronda de selvagens com corpos negros e disformes, meio símios e meio homens, dançando, urrando, contorcendo-se e, a faca entre os dentes, preparando-se para devorar todos esses restos aterrorizados do naufrágio. [9]

Na tela de Biard, a representação do horror se misturava a um componente sexual: a cena mostrada não era apenas a do prenúncio de um banquete antropofágico, mas de um estupro coletivo. Agitando-se freneticamente diante da “massa de carne branca” (mulheres, crianças e cadáveres), negros selvagens exibem sua bestialidade. A pintura pode ser considerada um marco no encontro da reportagem sensacionalista com a ficção de horror e o erotismo (com elementos racistas e sádicos), ajudando a criar o modelo mais tarde explorado por Josephine Baker e King Kong.
Alguns comentadores criticaram o pintor por estabelecer uma confusão entre gêneros inconciliáveis, mesclando o horror à busca de efeitos cômicos. O resenhista da revista L’Artiste dizia não saber se devia “rir ou tremer”, e concluía que “o quadro falha então na obtenção de seu efeito”. Para rebater essas críticas e justificar a comunicação entre diferentes gêneros estéticos, Barbier lançou mão de uma argumentação surpreendente:

(…) essa pintura seria excessivamente aterrorizante, se o sentimento individual do autor não se apresentasse, e temperasse a crueza pela silhueta cômica das figuras e o aspecto grotesco dos antropófagos. Sob esse ponto de vista, a obra torna-se notável. A aliança do grotesco e do terrível é possível: e a existência, na natureza mesma, de um povo ao mesmo tempo feroz e risível legitima a obra e produz uma marca profunda na arte. [10]

Théophile Gautier qualificava As conseqüências de um naufrágio como “o sucesso burguês do ano”, deblaterando contra a pintura que visa excitar o riso através do “emprego da deformidade física”, “corcundas, pançudos, beiçudos, bochechudos, com o nariz vermelho, um olho de cada cor, pelo cinza, careta disforme”. Abria exceções para a produção dos mestres flamengos e Jacques Callot, cujos “tipos bizarros” eram “belos e poéticos, à sua maneira”. As conseqüências de um naufrágio lhe faziam o efeito de um espetáculo de ópera bufa, em que “alegres bembaras” dançam um balé desenfreado.
Na cena africana imaginada por Biard há um eco das obras de Louis Boulanger inspiradas em Victor Hugo, como O sabá das bruxas (1827), ou Fogo do céu (1831), onde o artista acumulava “numa arquitetura imitada de [John] Martyn, inacreditáveis pencas de seres humanos” . No romance Burg Jargal, de Victor Hugo, um personagem feito prisioneiro por uma tribo africana assistia a um espetáculo que era comparado a um sabá. O quadro de Biard exposto em 1837 remetia, para alguns, a “alguma coisa de dissimulado, de odioso, de monstruoso, de grotesco”:

 É isso que a pintura deve querer buscar? (…) Não se pode, à vista deste quadro, exclamar-se com Shakespeare: “O’ horrible! horrible! most horrible!”? [11]

ENTRE CHRISTIANIA E TRONDHEIM | Dois textos com a narrativa romanceada de episódios da viagem de Biard e sua jovem esposa Léonie d’Aunet ao Spitzberg (Groenlândia) foram publicados no Musée des Familles, logo após o retorno do casal a Paris. [12] O primeiro texto é assinado por Berthoud, o segundo é apresentado por este último como “simples notas” escritas por Biard, “que não as destinava à publicidade, e o diretor do Musée des Familles deve sua comunicação à amizade do artista, que é hoje citado com razão como um dos nossos mais célebres pintores e mais intrépidos turistas”.
 En Chemin pour le Spitzberg” conta a visita, provavelmente fictícia, do pintor e sua companheira “tão loura e tão corajosa” à masmorra da fortaleza de Aggerbuys, em que estava aprisionado o célebre salteador norueguês Ouli-Eiland. Famoso por fugir das prisões em que o encerravam, Ouli-Eiland não desapontaria: meses depois, quando o casal já estava de volta da expedição ao Spitzberg, os jornais anunciaram que o facínora havia novamente escapado.
O segundo texto publicado pelo Musée des Familles tem a forma de um extrato de diário de viagem do pintor. À medida em que os viajantes se afastavam rumo ao extremo norte da Europa, a paisagem se tornava cada vez mais espetacular e terrível. A carruagem subiu as montanhas escarpadas do Dovre com o reforço de dois cavalos suplementares, e os viajantes mergulharam em gargantas de aspecto “lúgubre muito variado”, troncos tortuosos que barravam a passagem, “como enormes serpentes”,
… assim como grandes pedras esverdeadas, meio escondidas pelos pântanos de águas lodosas, me pareciam sapos monstruosos. Em um momento acreditei ver no meio da estrada um espectro ainda envolvido em sua mortalha…
Amanhã veremos Trondheim e o castelo de Munckholm, tornado tão célebre graças ao Han da Islândia, do Sr. Victor Hugo. Nós trouxemos este livro. Nós o leremos nos locais mesmos em que o poeta dispôs a cena de seu romance.
Biard costumava enviar aos jornais e revistas “comunicados” de viagem, e uma notícia sobre um acidente ocorrido na “horrível estrada que vai de Christiania a Trondheim”, foi publicada em primeira mão na seção de faits divers da revista l’Artiste. Na nota se dizia que Biard, o “pintor costumeiro dos ursos brancos”, “este homem que tem tanto espírito e alegria na ponta de seu pincel”, e sua jovem esposa, que “há menos de seis semanas” assistia a uma representação teatral em Paris, haviam ficado muito tempo “suspensos sobre o abismo”, até que camponeses, “com precauções infinitas (…) puderam trazer de tão longe os dois estrangeiros sãos e salvos”. O autor da nota acrescentava, de forma irônica, que a cena do acidente, combinando elementos “terríveis” e “joviais”, se prestaria bem à mistura de estilos característica do pintor, e que se este resolvesse incluí-la entre os envios ao Salão de 1840 poderia expor ao público sua obra-prima. [13]
O “extrato de diário” publicado no Musée des Familles inclui a narrativa do acidente de carruagem do ponto de vista de um de seus protagonistas: por pouco não haviam caído todos num precipício, após o cocheiro ter perdido o controle da condução. Os passageiros escaparam sem um arranhão, mas um dos cavalos teve que ser sacrificado…
Chovia, e, de tempos em tempos, um pouco de granizo vinha nos arranhar a cara. Tentei mesmo assim fazer um croquis de minha miserável condução e meus mais miseráveis cavalos, cujas patas imitavam o telégrafo, deitados sobre as costas como se encontravam, os infelizes! Foi preciso deixar o croquis inacabado. A chuva aumentava…
A passagem é típica dos relatos do pintor repórter sobre as dificuldades para exercer seu talento em campo, dificuldades que não faltariam durante a viagem ao Brasil, décadas depois. Ao retornar a Paris, em 1862, Biard publicou um extenso relato ilustrado de seu périplo brasileiro numa edição de luxo da editora Hachette, que apareceu primeiro numa versão abreviada, na revista Le tour du monde, publicação bem mais sofisticada que o Musée des familles. Duas décadas depois das colaborações com o Musée, constata-se o ingresso do artista num mercado editorial marcado pela especialização progressiva e por certo espírito positivo, distanciado dos arroubos emocionais em que se compraziam os românticos. Não existe mais a proposta ingênua combinando aventura e exotismo do Musée des familles, que buscava levar cultura a uma “massa de iletrados”, mas um direcionamento para o público do Segundo Império, bem instalado em seus privilégios sociais e enriquecido pela expansão do sistema colonial francês. A descrição etnográfica ocupava um espaço maior tanto nos relatos de viagem quanto nas pinturas dos artistas viajantes, e o impulso imaginativo, tão presente na produção de Biard no momento de sua colaboração com o Musée des Familles, já não encontra terreno para espraiar-se.

NOTAS
1. Musée des Familles, “Prospecto” do ano de 1840.
2. A revista também destacava o fato da Jane Grey ter sido “a primeira obra de artista contemporâneo reproduzida [na revista]”, fazendo notar que “os quadros de Delaroche requerem, para serem compreendidos, um público a par dos episódios que abordam.” Musée des Familles, vol. 1 (1833-1834), p. 137.
3. BAUDELAIRE, Ch., 1845, Section IV: tableaux de genre.
4. ROSENTHAL, L., 1989, p. 57.
5. BERTHOUD, Samuel-Henry, “Le Singe de Biard”, Musée des familles, 6, 1839, p. 276.
6. BAUDELAIRE, Charles. “De quelques douteurs”. Salon de 1846. Paris, 1846. É significativo que Baudelaire tenha empregado a mesma expressão, mas num sentido positivo, para se referir a Eugène Delacroix.
7. ANÔNIMO, “Salon de 1837”, Musée des Familles, t. 4, maio de 1837.
8. PLANCHE, Gustave, “Salon de 1837”, Études sur l’école française, peinture et sculpture (1831-1852), Paris, Michel-Lévy-frères, 1855, vol. II, pp. 88-89.
9. BARBIER, Auguste, Salon de 1837, Paris, 1837, pp. 161-163.
10. BARBIER, A., 1837, op. cit.
11. JUBINAL, Achille, “Exposition d’Anvers (septembre, 1843)”, L’Artiste, 3ème série, t. IV. p. 184.
12. En Chemin pour le Spitzberg” Musée des Familles, t. 7, abril de 1840, pp. 193-198,e “Entre Christiana et Drontheim (notes prises à Konigswald, Norvège, le 10 juin 1839)”, Musée des Familles, t. 8, setembro de 1841, pp. 368-373.
13. ANONIMO, “Faits Divers”, in L’Artiste, t. 18, p. 224.

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Pedro de Andrade Alvim (1963). Artista e professor universitário. Graduado em Educação Artística (1990) e Filosofia pela Universidade de Brasília (1991). Mestre em História da Arte e da Cultura pela UNICAMP (1997) e Doutor em História da Arte pela Universidade de Paris I (2001). Professor adjunto no Departamento de Artes Visuais do Instituto de Artes da Universidade de Brasília desde 2002. Contato: pedrand71@hotmail.com. Página ilustrada com obras de François Biard (França, 1799-1882).



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Agulha Revista de Cultura
Fase II | Número 16 | Maio de 2016
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