terça-feira, 19 de abril de 2016

LEONTINO FILHO | David Haize: o narrador de nervos afiados


                               
Se somos estranhos numa dada região, nem nos atrevemos a deitar no chão frio. Caminhamos, caminhamos, caminhamos sempre. Sente-se nas costas o focinho gelado dum revólver que nos manda andar mais depressa, mais depressa, mais depressa.

Henry Miller

Os atalhos trilhados para se alcançar a liberdade perfazem a danação do humano gesto de desejar o infinito. O infinito que se esconde nas pontilhadas estações do desejo. O desejo que arranha a pele na consangüínea vontade de partir, sempre. E, partir, do princípio ao fim, é desatar a aventura de livre ser, sem amarras, lamentações, louvações, sem certezas dos passos próximos na lonjura do trajeto. A figura da distância desafia os ínvios retiros a narrar. Sem pedágio, a história desencadeia a fartura de atarantados motivos, cada um deles suporta o clamor das vozes, rebenta a onipotência da fé, molda os espaços do bem, desclica a incoerência do mal, reelabora a lida postiça dos humores, destrona os catecismos suplicantes e instaura uma poética onde as criaturas, na rodagem de suas vidas, caminham desassossegadamente compondo no clarão do tempo os derradeiros fiapos de sonhos.
Desatar o novelo da liberdade, eis uma das tarefas do consistente narrador que elabora sua narrativa com perícia e arte, atrelando em um só universo a unidade, o dinamismo, a síntese, o implícito e o sugestivo que destravam as vivências erráticas com tamanha intensidade e concentrada emoção que faz do explícito a força motora das fortuitas observações do cotidiano. Os sentidos incendiados pela volúpia da linguagem salientam, nas bordas dos detalhes aparentemente banais, as combinações frenéticas de um mundo não revelado, um espaço para além, muito além dos clichês, identificado em sua inteireza com a construção de uma literatura sem frescura; uma ficção transparente que foge ao lugar-comum e se agiganta quando explora as regiões encobertas do coração humano, reavivando nota a nota, ponto a ponto, letra a letra, face a face as comoções que se desdobram diligentemente nas feridas, rupturas e perdas das ilusões. O narrador, com tal perfil, é um devorador de exuberâncias.
Com força narrativa arrojada e múltipla capacidade de entrelaçar enredos, R. Roldan-Roldan traduz o avesso da cidade no romance Rapsódia para um Viajante Solitário. Para narrar os muitos outros lados da cidade escondida, ele convoca, mais uma vez, David Haize, espécie de alter ego do autor que, municiado de sua poderosa linguagem, passeia pelos subterrâneos dos esquecidos lugares; os cantos e recantos que causam asco e nojo à maioria dos ditos seres normais, os mesmos que esquecem as sombras pesadas das sentidas e prematuras viagens ao redor de seu próprio umbigo. O narrador roldaniano estilhaça o jogo das aparências quando mobiliza as idéias e os temas por meio de uma penetrante polifonia poética. David Haize traz para a cena narrativa a atmosfera claustrofóbica daqueles que estão à margem da margem, sósias de párias identificados apenas com fragmentos do humano, personagens insulados em meros esboços de gente. O narrador-rapsodo viaja solitariamente pelos meandros da desventura e a cada descida ao sub revela as fraturas mais ou menos expostas do indivíduo, mesmo a contragosto, arrimo de seu destino. Uma viagem maiúscula, solitária e obsessiva; de intensa e ilimitada estranheza, uma jornada sem parlapatices e falações, cravejada de beleza, sublime em seu epos narrativo numa linguagem transparente, por vezes quase prosaica, a vida no envolvimento alegórico do existir, em plenitude.
Rapsódia para um Viajante Solitário orbita em torno de dois momentos, o primeiro deles, a porta de entrada, traz como referência o nome de Os amores perdidos ou a descida ao sub, onde David Haize, desimpedido das sutilezas, penetra as instalações ocultas da cidade silenciada, completamente injetada por esboços amorosos; nesta fase, o narrador reaviva as mais delirantes e comovidas histórias, de Edith, de Quase (o Anão), de Müller e Ariel e de Myriam, todas elas, de uma forma ou de outra, redimidas pelo ruidoso tamborilar da liberdade.  Os acordes dos amores que permeiam a semiescura dor de cada personagem enfatizam o traço abismal do desapego de si mesmo e da periculosidade que a solidão representa; afinados as suas fraquezas, os habitantes do sub digerem tristeza e desespero encarnados às mais desenfreadas misérias e humilhações. O anão Quase é a esmerada síntese de todas as histórias esboçadas nas clandestinas vielas da cidade; a grandeza deste personagem deve-se, entre outras marcas, a sinceridade e a coerência com que mergulha na paixão que o liberta e, ao mesmo tempo, o nega, aprisionando-o a sua condição de incompletude, uma espécie mal-ajambrada de gente, uma migalha de ser – um farrapo qualquer –, identidade evanescente a começar pelo nome, Quase, provavelmente, o personagem, dentre todos os tresmalhados, o mais lancinante em seu périplo amoroso. Pode-se, assim, pensar que os indivíduos, na sua imensa maioria, são meras sombras gigantescas de uma realidade quase sempre enrugada no íntimo de um ser chamado Quase.



O movimento seguinte do viajante solitário é O arquipélago dos sentidos ou os mistérios do cabaré, aqui, reaviva-se a transfigurada abundância do êxtase em suas múltiplas tentações e incisivas miragens. A rapsódia roldaniana executada por David Haize, esse irmão de sangue de Arturo Bandini (John Fante) e Henry Chinaski (Charles Bukowski), aponta para a impermanência dos desejos e para a perenidade dos exilados amores – todo ato amoroso evidencia uma carnação de abandonos. Emboscado pelo martelar das sentenças: “De longe vens” e “Aonde vais David Haize?”, o rapsodo-narrrador celebra seu reencontro com a bem-aventurada Anastacia Lazarovna, concentrando todo seu poder de rememoração nas acuradas observações da eterna senhora, portadora de inesquecíveis universos ficcionais, uma Sheherazade em  constante movimento ao redor das vidas comuns depuradas no sub ou nos arquipélagos mais exóticos, lugar de seres apátridas, região da liberdade esbraseada pela turbulência dos amores. Ainda, entre reencontros, idas e voltas, muito ao som do fascínio e da pujança das canções de Tom Waits e Kathleen Brennan, entre tantos, David Haize, sem abdicar das lembranças, confabula com suas verdades, seus interditos entrevistos na explicitude de sua missão: desalojar os fantasmas que rondam o abismo das aparências, suportando as rupturas, as feridas e as perdas que circunstanciam a realidade – a ficção quase total da vida. Pater, Mater ...  é, desse modo, a estação de entrega máxima de David Haize para com suas histórias, sejam elas do sub ou dos sentidos,  ambas pontuadas pela impertinência do canto.
Rapsódia para um Viajante Solitário traduz o imaginoso mundo de David Haize, o narrador-criador de universos mágicos, aquele sobre o qual o escritor R. Roldan-Roldan delega a liberdade para contar as vivências sensíveis e visíveis que infestam a cidade, numa tacada antilírica gestada entre os embotados afetos e as estropiadas paixões; há algum tempo, August Strindberg deixou registrado: “Uma cidade está sempre vibrando, concordo, mas para sentir essa vibração é preciso ter nervos afiados”, R. Roldan-Roldan afia os nervos de David Haize que, por seu turno, aguça a percepção dos seus companheiros de viagem – a bígama, o poeta cego, a louca e a ativista –, todos solitários na estrada do tempo, urdidos em suas rapsódias. O canto roldaniano possui estilo, força e intensidade, é indispensável, absoluto em suas mínimas reentrâncias: a vida em forma de arte, a arte em forma de obra e a obra tecida com o linho da liberdade, deveras.

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LEONTINO FILHO (1961). Poeta e Professor de Teoria da Literatura e Literatura Brasileira, na Universidade do Estado do Rio Grande do Norte/UERN. Publicou os seguintes livros de poemas: Cidade Íntima (1987/ 1991/ 1999); Semeadura (1988) e Sagrações ao Meio (1993). Autor do ensaio de crítica literária – inédito em livro, intitulado: Sob o Signo de Lumiar – Uma Leitura da Trilogia de Sérgio Campos (Natal: Universidade Federal do Rio Grande do Norte/Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem, 1997). Doutor em Estudos Literários pela UNESP (Campus de Araraquara/SP) com a tese: Lavoura arcaica – o narrador solto no meio do mundo (2005). leontinofilho@uol.com.br. Página ilustrada com obras de Arthur Bispo do Rosário (Brasil), artista convidado desta edição de ARC.



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Agulha Revista de Cultura
Fase II | Número 16 | Maio de 2016
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