sexta-feira, 29 de abril de 2016

FLORIANO MARTINS | Marcel Schwob: os segredos da imaginação


Disse Marcel Schwob que "o livro que descrevesse um homem em todas as suas anomalias seria uma obra de arte". Decerto tinha em mente uma outra ideia que defendia o dramaturgo Henrik Ibsen, a de que "viver é combater contra os seres fantásticos que nascem nas câmaras secretas de nosso coração e de nosso cérebro". Schwob buscou com todas as suas forças a revelação assombrosa do que ele próprio chamara de "um caos de traços humanos".
Livros como Vidas imaginárias e A cruzada das crianças – ambos publicados em 1896 –, importam sobremaneira pela confirmação de uma estética que estabelecia um diálogo vital entre arte e imaginação. Schwob repudiava todo instinto de imitação. Sua aventura exaltava o abismo, o profundo mergulho no desconhecido para dali retornar o homem, senão curado de si mesmo ao menos fortalecido pelo reconhecimento de sua perversão intrínseca.
Nascido em Chaville em 1867, o francês Marcel Schwob foi um dos mais consistentes autores vinculados ao Simbolismo. Desde cedo, na infância transcorrida em Nantes, conviveu com dois outros idiomas: o inglês e o alemão. Tinha por tio um bibliotecário e orientalista bastante prestigiado, Léon Cahun, que lhe auxiliou em muitas de suas traduções de Catulo, Petrônio e Anacreonte. O convívio com o tio e os milhares de livros, aliado à sua contagiante inquietude, invocaram os impulsos da imaginação, levando-o a escrever desde cedo e já de maneira singular.
Leitor voraz e austero, logo trata de aprender outros idiomas, entre eles o grego e o sânscrito. Escrevendo, sem distinção hierárquica, poemas, contos, crônicas, ensaios e a eles acrescentando suas inúmeras traduções, Schwob vai despontando rapidamente como grande expressão de um período dado como decadentista. Sua residência em Paris revela fortes amizades e uma trilha favorável de ações. Tornam-se regulares suas colaborações para dois destacados órgãos da imprensa parisiense: L’Evénément e L’Echo de Paris. Neste último, chega a promover escritores mais jovens, a exemplo de Jules Renard e Paul Verlaine.
Em 1892 publica seu primeiro livro de contos, Couer double, que traz uma significativa dedicatória a Robert Louis Stevenson. Logo em seguida surgem O rei da máscara de ouro (1893) e Le livre de Monelle – livro que será reeditado em 1903 sob o título La lampe de Psyché –, publicações que são recebidas pela crítica como obra de um escritor já maduro, apesar de seus incompletos 30 anos. A edição de Mimes (poemas) é considerada uma pequena obra-prima. Passa então a colaborar com o Mercure de France, o mais importante veículo de imprensa naquele momento. E casa-se com a atriz Marguerite Moreno.
A partir daí Marcel Schwob começa a influir em todas as instâncias em que se locomove. A afinidade com o Simbolismo propicia o desenho sugestivo de uma palavra secreta, vinculando-o aos estudos do Ocultismo e às consequentes seções dos salões da Rosa Cruz na Paris finissecular. Era considerado o poeta do maravilhoso, e foi de importância reconhecida para a firmação estética de autores como Oscar Wilde e Alfred Jarry. Mantém correspondência com George Meredith e Paul Valéry. A todo momento ressalta seu interesse maior: escrever um grande livro sobre François Villon. Publica então Spicilège (1896), série de ensaios já difundidos na imprensa. Contrai uma infecção pulmonar que o levará à morte em 1905, não sem antes empreender algumas estimulantes viagens de navio pela península ibérica.
Revendo a obra de Marcel Schwob vamos encontrar alguns aspectos igualmente fundamentais e abandonados. Foi um dos mais relevantes tecedores do poema em prosa. A partir daí mesclou os gêneros, somando à imaginação a reflexão crítica e o sentido de uma iluminação ascética. Vidas imaginárias e A cruzada das crianças não fazem senão confirmar o que digo. Le livre de Monelle acrescenta um componente sensual, que dá à poética de Schwob uma consciência plena dos principais obstáculos que sua época impunha a toda manifestação artística.
No Brasil conhecemos unicamente o Marcel Schwob de A cruzada das crianças, publicado na década passada pela Iluminuras. Segundo Rémy de Goncourt, trata-se de um "livrinho milagroso". Schwob acentuou uma característica baudelairiana dos tableaux-vivants (quadros-vivos), apreendendo lições do mergulho na história, neste caso com destaque para uma passagem da Idade Média, redimensionando-as a partir dos poderes da imaginação, logo em seguida, segundo Jorge Luis Borges, ao prologar uma edição deste livro, entregando-se "aos exercícios de imaginar e escrever".







 Em Vidas imaginárias sondou a resistência de tipos bizarros retratados a partir de um sentido vertical de desregramento social. As diversas vidas ali biografadas configuram expressões sutis e de refinado tratamento no que respeita a particularidades humanas como a perversidade, a anarquia, o amor e a arte. São retratos que confundem intencionalmente uma dupla face da existência: imaginação e imaginário. Schwob recorre à ironia como um artifício essencial à conexão de imagens, dando a ela distintas modulações, medidas pela singularidade de cada expressão que busca.
Marcel Schwob não escreveu o "grande livro" que pretendia em relação a François Villon, mas sim o mais intenso, minucioso e revelador ensaio acerca do poeta francês do século XV. Fascinava-lhe o que Sérgio Lima situa como "exaltação do momento", aspecto que iria compor o sentido da "beleza convulsiva" essencial ao Surrealismo. Villon, neste sentido, emblemava a ideia de uma negação absoluta da história, semelhante ao "Lâchez tout" de André Breton ou ao "Larga tudo" de Almada Negreiros.
A obra e a vida de Marcel Schwob confunde-se com um momento vertiginoso vivido por nós. Não exatamente pelo estigma finissecular, mas sobretudo por um acesso de repetição provocado por um século que não soube lidar consigo mesmo. O século XX é grosseiramente contraditório. Produziu compreensões fundamentais, ao mesmo tempo em que não conseguiu aplicá-las. Schwob não cabe aqui senão como uma sugestão para o indispensável diálogo com o passado.


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Agulha Revista de Cultura # 07. Outubro de 2000. Página ilustrada com obras de Sérgio Lucena (Brasil), artista convidado desta edição especial de ARC.



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Organização a cargo de Floriano Martins © 2016 ARC Edições
Artista convidado | Sérgio Lucena
Agradecimentos a Isa Fonseca
Imagens © Acervo Resto do Mundo
Esta edição integra o projeto de séries especiais da Agulha Revista de Cultura, assim estruturado:

S1 | PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)
S2 | VIAGENS DO SURREALISMO
S3 | O RIO DA MEMÓRIA

A Agulha Revista de Cultura teve em sua primeira fase a coordenação editorial de Floriano Martins e Claudio Willer, tendo sido hospedada no portal Jornal de Poesia. No biênio 2010-2011 restringiu seu ambiente ao mundo de língua espanhola, sob o título de Agulha Hispânica, sob a coordenação editorial apenas de Floriano Martins. Desde 2012 retoma seu projeto original, desta vez sob a coordenação editorial de Floriano Martins e Márcio Simões.

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