sexta-feira, 29 de abril de 2016

FLORIANO MARTINS | Kizumba-Mass, de Graccho Braz Peixoto


Em outra ocasião comentei sobre duplo equívoco cometido pela leitura que se costuma fazer da chamada MPB. De um lado, uma instância de mercado, onde a produção como que substitui a estética, sendo regente absoluta de tudo o que se torna público em nome desse hoje reducionista rótulo (MPB); de outro, tocando na mesma ferida, apenas por outro ângulo, o fato de que o caráter das novas estrelas – e valerá reiterar sempre: mais estrelas do que novas – condiz com a penumbra imposta.
A pergunta a se fazer é se acaso haverá ainda alguma maneira de se discutir consistência e renovação no âmbito de uma canção popular no Brasil. Claro que não me refiro mais ao bordão desentoado de uma safra de efêmeras revisitações, incluindo o prato predileto de uma derrocada grosseira por que tem passado uma das mais sólidas formas de expressão da cultura brasileira: a redução a estratos que se isolam entre si (regionalismo?), iludidos de que representam uma fatia importante do mundo. Refiro-me à nossa música genial, aclamada em todos os lugares pela abrangência e vigor com que anima tudo à sua volta.
A pergunta insiste: haverá ainda tal condição? E tal insistência vem uma vez mais à tona, inquietante, justamente quando ouço Kizumba-Mass, CD de estreia do cantor e compositor Graccho Braz Peixoto. Um primeiro ouvido permite entender que se recupera ali algo que já se dava como perdido: trata-se de um disco de autor, onde, segundo o próprio Graccho, "o trabalho do produtor não assume importância desmedida". Um primeiro olhar também o põe em condição distinta em analogia com seus pares: o despojamento de formas, texturas, imagens não se dá aleatoriamente, ou seja, percebe-se a presença substanciosa de ligamentos, o que imprime ao CD um ar de manifesto.
Graccho se mostra com um trabalho que sugere o restabelecimento à livre navegação, por costas e entranhas de uma cultura ("à procura de um humanismo, em uma viagem pelos sons de minha formação musical"). Não se trata de um desprendimento sem meta, uma vez que a busca consiste no que ele próprio chama de visão humanista/lírica de mundo. E uma riqueza a mais se desvela pelo fato de que tal viagem não elude o diálogo aberto com outras culturas.
Evidente que seria redutor observar que essa procura se revela pelo inusitado com que o artista rejeita o regional em nome do metafísico, o jargão em nome da invenção. O mesmo se poderia dizer acerca da nítida valorização da imagem ou da diversidade rítmica e de recursos instrumentais utilizados. Igualmente caberia referência à intertextualidade, sobretudo na forte ligação com o cinema e a pintura. Tais artifícios, vistos em isolado, confundem-se com algumas inúmeras atrações anunciadas como a última novidade. Graccho possui uma consciência preciosa em relação aos riscos, inevitáveis.
Situa uma das canções, Uno & Verso, "como um pensar sobre a diversidade e imensa complexidade instaladas de nossas vidas", sinal de que nem CD nem Graccho estão mais para o ardil superficial de uma retórica que, em nome da multiplicidade, deu apenas no vazio existencial e no enriquecimento de um delgado filão de mercado. Em conversas com ele, me disse que o CD perseguiu uma ideia básica: "passar uma visão de mundo, uma posição, uma crítica, apoiada em letras e texturas musicais, outros sons, escolhidos segundo as linguagens com as quais componho, sinto a música, me relaciono com ela".
Aqui entra em cena um componente pouco apreciado por aqueles pressupostos artistas que circulam no mercado da música: a dimensão humana da arte, a perspectiva de um trabalho que não se ausente de seu estar no mundo. Descartemos quaisquer panegíricos de cunho panfletário. A humanidade o homem não a encontra passando pelo quadrilátero de sua janela, mas antes desentranhando-a da própria existência. Ao surgir com um CD de estreia aos 46 anos de idade, Graccho se permite esse amadurecimento, não incorrendo mais nos desequilíbrios entre ser e estar no mundo. O dado não se mostra como predisposição em relação ao jovem talento, mas antes como obrigatória percepção de respeito a um trabalho sólido que soube atravessar com dignidade todos os ardis da mídia. Enfim, um quadro bastante comum, no mercado de músicas, e que comporta discussões mais detidas, embora as peças envolvidas estejam sempre a mercê de um falso equilíbrio entre balança de pagamento e percentuais do ibope.
Mas por onde terá andado Graccho até aqui? De onde surgiu esse artista maduro? Em termos curriculares, nunca esteve de todo ausente, e as menções destacam aspectos como a autoria de Noturno, gravada por Raimundo Fagner e que serviu de tema de abertura de telenovela de Janete Clair, cujo nome seria dado justamente por um verso seu: Coração alado (TV Globo). Outra canção, Espelho, foi igualmente tema de abertura da minissérie Joanna (TV Manchete). Entre as canções gravadas maior consistência encontraria na parceria com Belchior, em cujos discos mais recentes esteve presente.
Houve um determinado momento em que a canção vinda do Nordeste do Brasil causava um impacto, não somente pela diversidade hoje deformada mas sobretudo pela consistência de novas propostas estéticas. As estranhas vozes de Zé Ramalho e Raimundo Fagner eram claros contrapontos a um desgaste do acasalamento entre Concretismo e Tropicália. Quando menos apontavam para um Nordeste mais amplo do que o presumível. Na mesma ocasião um Belchior ironizava toda forma de regionalismo e bem se poderia ter ali, naquele momento, um saudável diálogo em torno de novas perspectivas da canção popular brasileira. Ao contrário, todos se renderam às artimanhas faceiras do mercado, aspecto que agrada ao bolso mas que põe uma cultura inteira em desalinho. Este resumo algo simplista sugiro como tópico para uma discussão mais abrangente, em outra desejável oportunidade.
Graccho foi, juntamente com outros nomes de sua geração – e o Lenine seria aqui um bom exemplo, o mesmo que o Vítor Ramil – como que atropelados por essa fraude estética administrada por uma fanfarra de mercado. Este é um tema delicado. Os que estão envolvidos não tocam no assunto. Os que estão de fora acreditam mesmo que estão de fora. O grande artista, a todo momento, com toda a sua arte, diz o seguinte: com ela estou todo aqui. É o que se pede de uma plateia: que esteja toda ali. É o que se pede da humanidade: que esteja toda ali. Do mais comum dos mortais: que esteja todo ali. Em tese: que em momento algum, sob quaisquer circunstâncias, sejamos hipócritas.
Tais observações salientam uma escolha vertical da parte de Graccho no que diz respeito a essa estreia em plena maturidade. Alguns aspectos aqui sugestivos no tocante a Kizumba-Mass já dão por conta de uma consistência estética. No entanto, caberia mencionar particularidades. Algo que me parece fundamental na gênese de uma obra de arte escuto de Graccho quando me fala de seu trabalho: "a ideia é colocar o cara que cria, que se vê com os dilemas da criação, frente a frente com a esfinge da mídia, do caos, da super-oferta de apelos, à beira de se perder". A ideia de por o artista em confronto com seu tempo é quando menos inusitada, porque caberia supostamente ao artista ser peça determinante e não determinada. Quando não houver mais cultura alguma a ser referida como tal no Brasil, não caberá saudade. Conseguimos assimilar uma multiplicidade de aspectos culturais, o que nos permitiu estalos vigorosos, não apenas em relação à música. No entanto, nos comportamos como se desprezássemos uma história, ainda que breve mas sólida, e nos metemos a incorporar instâncias visivelmente precárias ou recorrentes, e todos ficam felizes porque assim uma verdadeira feira de vaidade celebra o extermínio de uma cultura.
Tudo isso tem a ver com outra observação de Graccho, a de que vivemos como "gigantes com pés de barro", ou seja, "todo o avanço da ciência sob o risco de uma queda na bolsa..." Tenho dito em várias circunstâncias que a humanidade se anula em uma simples frase que ouvimos com abusiva freqüência: "não é comigo". Nesse alheamento perene nada nos será de real valor ou serventia, uma vez perdida a noção de humanidade. Graccho entende que essas questões estão muito presentes em seu trabalho ("a solidão do um, do ser vivente, da existência como condição inquestionavelmente solitária") 
Versos e versos dão conta do que falo, mas sobretudo é preciso entender essa relação com um universo múltiplo que a música permite, todas as instâncias sensoriais ali presentes. Graccho me fala de suas relações poéticas com o cordel, o fantástico advindo da tradição cordelista e a mescla com o que ele chama de uma poesia baseada em novas expressões. Bem sei que sua predileção pela inserção de neologismos não se vincula a um vício pela novidade. O disco está além do que se possa chamar de riqueza de imagens ou desprendimento no recurso a linguagens várias. Não é a diversidade o que conta, mas antes o aspecto ontológico (essencial) de quem sabe fazer os ligamentos entre portos distintos.
Graccho fala em "canções inspiradas em filmes e material foto-jornalístico", mas sabe que a grande vertigem criadora de Kizumba-Mass está ligada a outra instância ("tom sobre tom é paixão de pintor"). Assim é que soube muito bem extrair do contexto usual alguns instrumentos, a exemplo da maneira como insere o acordeon em várias canções ("com exceção do baião Voa voa sabiá, canção que exalta a tradição, o acordeon faz apenas o apoio, incorporando-se dentro da base para formar uma massa sonora singular, sem fazer solos"). Outro ponto: a introdução de um instrumento novo, a que denominou quadricórnio, rústica variação do que conhecemos como guitarra havaiana, pela maneira de ser tocada com slide. Graccho modificou a escala, até então definida pela presença de tons inteiros, mesclando-a com uma combinação de cordas "para alcançar esse som entre a cítara e o antigo saltério nordestino, que tem origem medieval".
Naturalmente Kizumba-Mass não se define por essas particularidades em isolado. O diálogo com Graccho, quando me falava de cada canção, bem poderia ter maior valor expressivo aqui. O mergulho intenso em uma teia de influências, convivências, interferências, essa maneira da matéria artística se misturar com o mundo e ser algo, ganhar o corpo substancioso de uma força que nos leva adiante, ah isso é possível sentir na audição do CD. É também plenamente possível discuti-lo aqui, graças a uma condição irreverente de sua prova estética. Possível ainda tê-lo por aí, alcançando repercussão essencial, se conseguir vencer a patética ruralidade do curso musical de uma mídia sem mais opções do que ser nada.
Quando ouvimos a música que vem daquela vertigem sincera de uma expressão humana, compreendemos que o divertimento a que fomos reduzidos – nós, clientes, consumidores, párias de qualquer requinte cultural – possui uma pegada que nos leva a pensar sobre a química de nossa identificação. Por que não discutir seriamente em torno da instalação de uma mediocridade em nossa cultura a partir da música popular? E mais: por que não tornar esse diálogo fundamental para a compreensão de cerceamentos, descasos, exercícios de corrupção e aceitabilidade, conivência de uma elite que optou pelos bolsos fartos em relação a qualquer confirmação de postulados estéticos?
Claro que o CD de Graccho não responde a tais abismos senão com a expressão de uma música que aprendeu a dialogar com toda uma tradição e dela saber extrair suas joias consistentes. A consciência com que somou maracatu, baião, raggae, guarânia, funk, despreocupado com rótulos, essencialmente buscando a tessitura de um painel onde claramente se depreende que a fundamentação estética não está vinculada a modismos. Com Kizumba-Mass Graccho lança um problema: diversidade é concentração e não o alheamento, a devassidão com fins lucrativos. Kizumba-Mass traz implícito um desafio: não há riqueza alguma se antes não é tocada por seu revés.



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Agulha Revista de Cultura # 13/14. Junho de 2001. Página ilustrada com obras de Sérgio Lucena (Brasil), artista convidado desta edição especial de ARC.

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Organização a cargo de Floriano Martins © 2016 ARC Edições
Artista convidado | Sérgio Lucena
Agradecimentos a Isa Fonseca
Imagens © Acervo Resto do Mundo
Esta edição integra o projeto de séries especiais da Agulha Revista de Cultura, assim estruturado:

S1 | PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)
S2 | VIAGENS DO SURREALISMO
S3 | O RIO DA MEMÓRIA

A Agulha Revista de Cultura teve em sua primeira fase a coordenação editorial de Floriano Martins e Claudio Willer, tendo sido hospedada no portal Jornal de Poesia. No biênio 2010-2011 restringiu seu ambiente ao mundo de língua espanhola, sob o título de Agulha Hispânica, sob a coordenação editorial apenas de Floriano Martins. Desde 2012 retoma seu projeto original, desta vez sob a coordenação editorial de Floriano Martins e Márcio Simões.

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