terça-feira, 1 de março de 2016

GONÇALO IVO | Anotações sobre a poesia de Lêdo Ivo e Tasmânia


1. A morte de Lêdo Ivo

I | Guadalquivir e o tempo | Lêdo Ivo morreu muito jovem. Iria completar 89 anos. Das muitas vidas que viveu, esta, que ficou para trás, foi mais uma passagem na nebulosa floresta do tempo. Poetas não têm idade ou sequer morrem. São como bichos incômodos, insetos, conchas do mar a abrigar viscosos moluscos ou mesmo víboras, sempre a nos perturbar com sua morfologia misteriosa, ruídos e zumbidos indecifráveis. Herdarão a terra após o fim dos tempos.
Um fato ocorrido no cemitério de San Fernando em Sevilha, no dia 25 de dezembro de 2012, quando cremei o corpo de meu pai, confirmará o que digo. Enquanto transcorria a cerimônia da transformação de seu corpo em cinzas, convidei Leonardo, meu filho, a uma caminhada entre as frias aleias no início de mais uma manhã de inverno. Esta necrópole não está longe de um dos braços do rio Guadalquivir. Cemitérios são projetados e construídos como se fossem cidades. E os muros de San Fernando guardavam naquela manhã, antes do acontecimento da aurora, a silhueta de esguios toureiros contra um céu cada vez mais violáceo, fantasmas de cantantes de flamenco, divas, inúmeros e ilustres personagens locais. Entre as lápides negras adornadas por ferros e volutas retorcidas, esculturas invulgares, flores de plástico e fotografias esmaltadas a estampar faces esmaecidas, se esgueirou um pequeno gato. Vinha de outro reino. Mirava a tudo de forma traiçoeira, como se estivesse a hipnotizar os pequenos pássaros que desavisadamente pousavam na terra à procura de alguns grãos. Disse a Leonardo: “Seu avô reencarnou”. Pois os poetas são o instrumento insubstituível entre este e o outro mundo, aquele em que sonhamos com os olhos bem abertos. O felino, que pouco tempo depois se fartou de nossa companhia, saltou a outros sítios e vidas, desapareceu na manhã solitária rasgada pela imprecação dos primeiros raios de luz. E em mim deixou a dúvida de toda uma existência.
Lembrei-me então dos versos de Matsuo Basho em Sendas de Oku , traduzido por Octavio Paz e a mim por ele ofertado quando estive no México com Lêdo e Leda em 1982:

Los meses y los días son viajeros de la eternidad. El año que se va y el que viene también son viajeros. Para aquellos que dejan flotar sus vidas a bordo de los barcos o envejecen conduciendo caballos, todos los días son viaje y su casa misma es viaje. Entre los antiguos, muchos murieron en plena ruta. A mí mismo, desde hace mucho, como girón de nube arrastrado por el viento, me turbaban pensamientos de vagabundeo.

Logo se fez dia! Sevilha foi ficando cada vez mais distante e se tornando lembrança, enquanto o trem avançava e me levava de volta a Madri. Passei por túneis escuros e brumas entre montanhas recém tocadas pela tempestade. Deixei também para trás o rio Guadalquivir, tão distinto de quando visto do céu, irregular como uma serpente. Sobre este rio, Lêdo Ivo escreveu em Um Brasileiro em Paris, de1953:

Guadalquivir

[…]
À água digo: o tempo não tem futuro,
presente ou passado. Coisa em si mesma
perpétua, é tábua infinita do mundo.
Guadalquivir sente isso: canta em pedra

Entre árvores o dia faz-se tempo,
cal íntegra que as pátinas não mancham,
lavada pela água suja do rio.

Dize-me, Guadalquivir, como pode
alguém viver sem tua companhia?
Passas cantando em mim e é belo o dia.

Lêdo Ivo não se contentou em atravessar comigo neste derradeiro inverno mais uma ponte sobre esse rio. Queria a eternidade de viver, morrer e renascer em sua companhia. É a eterna premonição dos poetas. Saber cantar o que será o novo dia. Transmutar no futuro as lembranças em tinta negra sobre a folha de papel amarelada pelo tempo.

Maré

Na praia de papel
respiro o ar do mundo.
Letras.

Na ortografia vive
todo o meu mistério.
Tinta.

O mar azul vomita
algas e medusas.
Signos.

 A sujeira do mar
 é meu patrimônio.
 Canto.

 Um brasileiro em Paris, 1953.

 II | O Vento de Maceió | Há algo no ar, o cheiro do peixe, do sal, do sargaço, trazidos a terra pelo vento do mar, emblema natal e marca indelével nos recortes suavemente arredondados da costa verdejante, espécie de geometria, arquitetura de contenção a proteger coqueirais, mangues, lagoas, canaviais, memórias…
Neste horizonte, o poeta regressa todos os dias em navios, cargueiros avariados, carcomidos pela ferrugem que procuram o lugar certo para morrer.
Ainda em minha juventude, instado por meu pai, resolvi passar as férias de verão em Maceió, sua cidade natal. Havia sempre a carinhosa acolhida de tios e primos que até então desconhecia, e mesmo de "parentes" que ostentavam uma consanguinidade difusa, coisa comum neste canto do Brasil. Estas foram as minhas temporadas nordestinas, inesquecíveis, entre Maceió, Recife, João Pessoa, Caruaru, Areias, Deodoro, Penedo, Neópolis… Na minha primeira e verdadeira travessia do Rio São Francisco, a bordo de uma pequena piroga, me dei conta da imensidão de suas águas, que de tão excessivas guardavam em seu estuário as sombras terrosas de infinitas nuvens brancas, como se fossem borrões sendo levados para o mar, e em suas profundezas lodosas e traiçoeiras ocultavam jacarés, tartarugas, carapebas e piranhas. Nas margens desse rio/mar, em Neópolis, lavadeiras entoavam cantos, enquanto quaravam e secavam seus tecidos coloridos sob o sol.

III | A Cidade e os Dias | A paisagem urbana encarnará eternamente na poesia de Lêdo Ivo. E não só a bucólica, violenta e atemporal Maceió, deitada na lembrança do afeto, mas também a metrópole contemporânea em qualquer dos quatro cantos do mundo, a ostentar suas contradições, casa dos homens sem pátria ou sem brasão natal, onde a matéria da poesia pode vir do som da turbina do jato, dos gemidos dos amantes ou do ruído de um liquidificador – o humano, banal e comum…
Verifico que, após o autoexílio europeu – com base em Paris entre os anos de 1952 a 1954 – e posteriormente na temporada de inverno na América do Norte em 1963, a poesia de Lêdo Ivo sofre mutações.
Em 23 de novembro de 1963, John Fitzgerald Kennedy foi assassinado em Dallas, Texas. Lêdo Ivo, que na mesma época a convite deste governo visitava a América conhecendo universidades, escritores, pintores, cientistas, absorvendo o que então esta nação hegemônica tinha de melhor a oferecer do ponto de vista da cultura, assimilou, como poucos, o que seus sentidos alcançavam. De forma diferente do que fizeram os modernistas paulistas dos anos 1920, esse banquete que lhe é oferecido acrescenta mais do que empobrece ou torna caricatura. Sua escrita fica mais coloquial e terrena. Antes mesmo do golpe militar no Brasil, em 1° de abril de 1964, no seu livro Estação Central, com capa do jovem artista Rubens Gerchman, entoa em A Cartilha, no poema de abertura do livro:

Primeira Lição

Na escola primária
Ivo viu a uva
e aprendeu a ler.

Ao ficar rapaz
Ivo viu Eva
E aprendeu a amar.

E sendo homem feito
Ivo viu o mundo
Seus comes e bebes.

Um dia num muro
Ivo soletrou
a lição da plebe.

E aprendeu a ver.
Ivo viu a ave?
Ivo viu o ovo?

Na nova cartilha
Ivo viu a greve
Ivo viu o povo.

Em 28 de agosto de 1963, somente alguns meses antes da chegada de meu pai aos Estados Unidos, houve a famosa caminhada sobre Washington, em que aproximadamente 250 mil pessoas ouviram o pastor negro Martin Luther King dizer em voz firme "I have a dream". Um ano antes, Bob Dylan, um dos melhores poetas e músicos de sua geração, entoaria o canto Blowing in the wind. Poemas de cunho social que fazem parte de Estação Central são para mim uma redescoberta. O livro é uma espécie de divisor de águas na produção literária de Lêdo Ivo. Não há mudanças estruturais na essência da escritura. É e sempre será a “mesma língua”, imagética, rica em significados e ambiguidades, oriunda do surrealismo descoberto na juventude, quando ainda menino folheava as páginas de um pequeno livro de cor amarela, adquirido no Recife com poemas de Rimbaud. O que muda e mudará a partir desse encontro com a América é o mundo, seu tamanho, e a parte habitada pelo poeta.

IV | Vargem Grande | E de súbito, em 1973, Maceió migra para outra geografia. No novo campo de cultivo e experimento poético, estrelas-do-mar, luzes e reflexos de navios ascendem e incrustam-se no negror do firmamento, desabando em seguida como tempestade sobre horizontes, vales, florestas e rios. É Vargem Grande, a parcela de terra escolhida para professar a nova cartilha. Canta o poeta no livro A Noite Misteriosa, Poesia, 1973 a 1982:                                                               
Vargem Grande

 Afinal aprendi a ler a terra.
Este chão completa o céu: brancor de nuvens e constelações
onde pássaros pousam, banhados de sol…

Há um ar bucólico nos poemas de A Noite Misteriosa. Este mundo rural, incomum, nunca experimentado pelo poeta, agora com quase 50 anos de idade, é sentido como nova descoberta, possibilitando práxis inéditas.
Sucedem-se nesses poemas a referência a essa fração de paisagem agrária, metáfora do mundo e sua cosmogonia. Lenhadores, ferradores de cavalo, galpões abandonados, jumentos, ratos do mato, predadores, tempestades, florestas e astros em plena atividade são a seiva dessa sinfonia pastoral.

Advertência a um gavião

O gavião sobrevoa
a plantação de tomate.
Meu irmão gavião,
eu não aceito a morte.
Na partilha do mundo
não estarei ao teu lado.
Jamais admitirei
a usurpação do dia.
Só sei enfileirar-me
No cortejo da vida.
Meu caminho me leva
à floresta onde fluem
as fontes escondidas.
Mesmo longe adivinho
uma árvore que tenha
frescor de fruto ou ninho.
Gavião! Gavião!
embaixador do não,
o céu não pode ser
sepultura de pássaros.

[A Noite Misteriosa, 1973/1982]

V | Lêdo Ivo o rei da Europa

O lugar sem chave

Quem guarda durante a noite
a chave do necrotério?
Necrotério não tem chave.
Ele sempre fica aberto
seja de noite ou de dia
numa incessante porfia
no vai e vem interminável
do entra e sai dos cadáveres.
Na fetidez do serão
há sempre alguém de plantão
a mão cansada de abrir
o gelado gavetão.
E cesse toda esperança:
a mortalha não tem bolso
para guardar a poupança.
Saibam todos os viventes:
semente do inexistente,
a vida sempre é de morte.
O derradeiro mistério
acaba no cemitério.
Para o defunto ilusório
que estima o logro do fogo
termina no crematório
na trituração dos ossos
na fumaça que se esgarça
e como um vômito alcança
o céu da desesperança
no céu sem céu e sem pássaros.

[Relâmpago (livro póstumo)]

Numa visita ao Museo del Prado, Lêdo puxa meu braço ao nos depararmos com Dos viejos comiendo, de Francisco de Goya. E, como quem se prepara para contar um segredo, sussurra: “Esta pequena pintura guarda toda poesia, miséria e mistério da vida e do mundo”. Não é só a identificação alinhada à estética do pintor aragonês. Próximo ao final de sua vida, em suas inumeráveis viagens, o poeta parecia caçar pelo mundo a razão ou função de existirmos. Queria tudo entender e tudo a que tivesse direito. Do transitório ao perene. Se seu mundo físico e fronteiras dilatavam-se, sua preocupação como artista fazia o caminho inverso. Seus últimos poemas estão imprecados de indagações existenciais, pensamentos filosóficos, tempos metafísicos e humanidade. Sua poesia alcança o derradeiro clarão do relâmpago. Como Goya e seu intangível Perro semihundido a mirar o nada.

2. Tasmânia

É quase sempre verão na cidade do Rio. É a estação onde tudo se move lentamente na travessia espessa dos dias. E em uma dessas manhãs de fevereiro ou março quando o sol tropical irradia uma luz amarela intensa e constantemente percebemos o rumor de pássaros e cigarras, pude então voltar à minha infância e nela reencontrar as primeiras lembranças de meu pai.
Era como um ritual - todos os sábados saíamos para passeios. Possivelmente era o ano de 1965. Eu tinha uns seis anos de idade - a cidade do Rio de Janeiro sofria grandes transformações urbanísticas. Vivíamos no Brasil o primeiro ano de uma ditadura militar. Havia o recém inaugurado parque do Flamengo, projeto modernista tardio onde na beira do mar costumava correr com a minha bicicleta. Esta área, bem em frente ao Pão de Açúcar e as águas tranquilas da Baía de Guanabara haviam sido usurpadas do mar que em outros tempos batia bem mais próximo da cidade. Como todos os sábados Leda minha mãe trabalhava o dia todo na universidade como professora, cabia então, a meu pai, o encargo deste momento eterno de evasão.
Às vezes saíamos bem cedo em direção ao centro da cidade do Rio. Na velha Lapa, bairro boêmio, onde viveu o poeta Manuel Bandeira que conheci quando menino, ficavam as várias redações dos principais jornais da época. Lêdo colaborava em muitos deles. Não eram raras as ocasiões em que visitava não só as redações - como o Correio da Manhã na rua Gomes Freire e a Tribuna da Imprensa na rua do Lavradio, mas também as oficinas de impressão com seus enormes galpões com clarabóias contra um céu muito azul e suas rotativas e odor de tinta e chumbo dos linotipos.
Porém um pouco longe do mar, o passeio que mais me agradava fazer com meu pai era a caminhada a pé até a cratera recém aberta do túnel Rebouças no bairro do Cosme Velho. Na volta para casa sempre parávamos em algum terreno baldio ou construção demolida. Contemplávamos o cenário da renovação urbana. O passado não muito distante com seus casarios de fins do séc. XIX ia sendo rapidamente apagado por ruidosos tratores. Os escombros destas casas senhoriais com jardins, árvores frutíferas, fontes, estátuas, pedras de cantaria a emoldurar janelas, servidas em outras épocas para mirar e perceber a passagem lenta do tempo eram o sítio onde debaixo de uma frondosa árvore, mangueira ou jaqueira eu viajava com meu caminhão de madeira por estradas imaginárias, ruas, abismos, e mesmo absorto no meu pequeno mundo, reduzido a pedra, erva, madeira e areia, certa vez não me escapou o exato momento em que percebi meu pai com a cabeça levantada e o olhar fixo num ponto qualquer do firmamento falando sozinho…
Perguntei-lhe do que falava. Me respondeu de forma lacônica - estou a recitar Camões…
Só décadas mais tarde pude perceber a amplitude e o significado desta pequena revelação.
Lêdo Ivo se dizia um animal literário. E a este reino se incorporou de forma precoce. Para entendermos o quão profunda foi esta vocação ou dom sou obrigado a recorrer a uma passagem do seu livro "Confissões de um Poeta", publicado em 1979. Nela Lêdo se refere à descoberta das palavras. As encontrou primeiro em casa paterna, nos retalhos de um velho atlas, em dicionários, como também na coleção que Floriano, meu avô, tinha da National Geographic Magazine ou as ouvia em qualquer lugar…
Diz o poeta Lêdo Ivo:

- Tasmânia.
 Achava-lhe um sabor oceânico de distância, era como se ela fosse a casca acinzentada e veludosa de certa fruta - um sapoti, por exemplo. Não sabia o que havia dentro dessa palavra, ignorava o gosto, a consistência e a cor da polpa, ou a confirmação do caroço oculto. Cansava-me dela, desistia de penetrar no cerne de seu mistério, agarrava-me a outras…. Guatemala! Flórida! Insulíndia! Eram palavras azuis como o anil das lavadeiras. Eram navios brancos, iguais às nuvens que boiavam acima dos negros anuns em revoada.

Talvez a palavra para o poeta seja como a cor para o pintor. A cor nem sempre é ela mesma. Existe dentro de um colorido , conversam umas com as outras, possuem intensidades, brilhos, tonalidades… É como a palavra dentro do poema. O lápis lázuli ou o ouro ou a terra de umbria quando dispersados, espalhados sobre o plano dos retábulos antigos deixa de ser mineral ou metal. Geram espaços santificados pelas mãos de Giotto, Duccio, Fra Angélico, os irmãos Cioni, e muitos outros. Desde a infância o poeta Lêdo Ivo se agarrou às belas palavras como as crianças às caixas de lápis de cor. Pois o sortilégio das palavras na página branca é como a cor que vai manchando o papel.
Confissões de um Poeta é, segundo muitos críticos, escritores, estudiosos e até mesmo psicanalistas como Hélio Pelegrino, um livro único na literatura. Poliforme, caleidoscópico, assimétrico. Segundo o poeta brasileiro Ivan Junqueira, "se trata de uma mistura heterodoxa e arbitrária de memorialismo, poesia, prosa e pensamento aforísmico."
Mas a arbitrariedade não é o cerne e a seiva do que se compõe e se nutre a poesia? não é ela que nos guia nesta vida mesmo quando sonhamos? Lêdo Ivo nos diz ainda no mesmo livro " e a noite nasce poliédrica ". Lêdo Ivo se espantava com a grande perplexidade de estar no mundo com tantas perguntas sem resposta que iam se acumulando: "nem sequer sei se existo, no sentido de ter uma existência nítida, com fronteiras definidas, talvez meu mundo seja o mundo da ambiguidade…".
Ou, para ser mais preciso no que digo, o poema O Dia Inacabado, do livro Mormaço, publicado em 2011:

Como todos os homens, sou inacabado.
Jamais termino de ser.
Após a noite breve um longo amanhecer
me detém no umbral do dia.
Perco o que ganho no sonho e no desejo
quando a mim mesmo me acrescento.
Toda vez que somo, subtraio-me,
uma porção levada pelo vento.
Incompleto no dia inacabado,
livre de ser ainda como e quando,
sigo a marcha das plantas e das estrelas.
E o que me falta e sobra é o meu contentamento.

À morte de Leda, minha mãe, em 2004, após 59 anos de casamento, o poeta responde com um Réquiem, longo poema sobre as coisas daqui e caminhadas entre estreitas estradas e tortuosas sendas na densa e desconhecida floresta. Triste, metafísico, profundo, poliédrico como se estivéssemos a ouvir Tomas Luis Vitoria.
Mas aos poucos, com o passar do tempo, neste "longo caminho entre dois nadas", o poeta se revigora e passa a escrever mais e mais. Talvez sua produção dos últimos dez anos seja das mais abundantes, vivas e precisas. Está na cimeira de sua arte. É o senhor que volta a encantar todas as belíssimas palavras da sua infância - Tasmânia, Insulíndia, Guatemala…
Mas a beleza também está incrustada nos horrores, banalidades, alegrias e futilidades dos nossos longos dias mais prosaicos.
Lêdo Ivo, o poeta dos pobres na estação rodoviária também canta de forma irônica os afortunados usuários das latrinas do hotel Ritz de Madri.

Soneto das estrelas

Sentado na latrina do Hotel Ritz
penso nos pobres e nos desvalidos.
Como é cruel o mundo, dividido
entre os que nada têm e os que têm tudo.

Fulgor de cinco estrelas - e a mortiça
vida de merda sem estrela alguma.
Dói em mim o mistério da injustiça,
Uma ferida que não cicatriza.

Imagino uma aurora repentina,
a ruidosa descarga de água pura
que restaura a brancura das latrinas.

Que rebente no mundo uma alvorada
- formigueiro de luz, nuvem vermelha -
e corrija a injustiça das estrelas.

Não podemos falar de glória literária, pois esta não existe para quem não mais está. A glória sim, é ter vivido a longa vida e visto o mundo como nunca ninguém o viu. É cantar com a voz pessoal e se espantar com o cão que bebe a água da chuva, com o voo das tanajuras em pleno verão ou com o jumento na ribanceira, " que contempla o dia trêmulo de tanta claridade e emite um relincho, seu tributo à beleza do universo." Lêdo Ivo não parava de repetir que o poeta canta pelos que não tem voz.
A poesia sempre está no limiar da aurora. Desnecessária no nosso mundo pragmático, porém ainda presente nos nossos sonhos, esta forma antiga de linguagem se agrega ao nosso inconsciente coletivo. Vive de seu eterno presente. Está sempre lá, em alguém, em algum lugar. É uma das formas do homem dizer, falar, ser algo, uma geografia, uma coisa, uma presença ou ausência, uma mirada, um sentimento, um cheiro, uma paisagem, qualquer coisa que seja pressentimento e rastro de vida.
Depois da morte de minha mãe Lêdo me elegeu amigo próximo e confidente. Em Paris, onde moro, passávamos as madrugadas conversando sobre literatura, pintura, música… Eu que sempre fui uma criatura do dia e da luz do sol me rendia a este encanto de inteligência, memória, ironia, complexidade - simplicidade e humanidade pura. Atravessávamos as noites de inverno na cozinha de casa entre a verdade e a ficção absoluta, e várias garrafas de vinho…
Estas foram noites e madrugadas inesquecíveis para mim.
Ledo quis estar comigo, Denise, Antonia e Leonardo para o Natal de 2012 em Sevilha. Atravessamos juntos pela última vez o oceano Atlântico na noite de sábado, 14 de dezembro. Meu pai queria encontrar alguns amigos de Madri como os poetas Juan Carlos Mestre e Martín López-Vega.
Na véspera de partirmos a Sevilha, nos encontramos com Martín López-Vega. Caminhamos a noite pela calle Serrano, entramos em um café. Lêdo nos contou do novo livro de poesia que estava escrevendo e que tinha como título provisório de "O Navio Ancorado na Laguna". Falou de outros possíveis títulos como "Novos Poemas" ou "A Hora do Relâmpago". Foi então que por sugestão minha acatou o simples título "Relâmpago", mais direto como Plenilúnio, Mormaço e Aurora.
Porém guardava um segredo maior. Tinha vontade de voltar a cruzar o rio Guadalquivir. Se atormentava pois mesmo tendo uma memória prodigiosa confessava o esquecimento deste feito em uma viagem a Espanha com minha mãe em 1952. Contou-nos também que numa das várias praças sevilhanas uma cigana leu a mão de Leda e disse que ela ainda teria um filho varão e que um dia Lêdo Ivo usaria um uniforme. Visitamos a imponente catedral mas foi no Alcazar, entre arcadas e jardins luxuriantes mesmo no inverno com suas laranjeiras carregadas de frutos dourados que segurou meu braço e apontando para a sebe falou: olhe o paraíso.
No dia seguinte cumpriu sua promessa de bom peregrino. Atravessou a pé a ponte sobre o Guadalquivir. Estava feliz. Queria comer peixe, frutos do mar e tomar o vinho Albarinho bem fresco. Escolheu a popular Marisquerías Emilio no bairro de Triana. Talvez o cheiro de tanto mar lhe recordasse a Maceió da vida toda.
Cremamos o corpo de meu pai às sete horas da manhã do dia 25 de dezembro no cemitério San Fernando em Sevilha. Enquanto aguardávamos a cerimônia resolvemos passear pelas frias aleias desertas desta necrópole. Foi então que um pequeno gato astuto que caçava pássaros inadvertidos veio a nós se juntar. Disse então ao meu filho "acho que seu avô reencarnou…"



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Gonçalo Ivo é artista plástico, dos mais notáveis em nossa contemporaneidade. Página ilustrada com obras de Wega Nery (Brasil), artista convidada desta edição de ARC.






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