quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO | Sobre uma Frase de Mário Cesariny


A frase encontra-se no texto já citado “Para uma Cronologia do Surrealismo em Português” – escrito e publicado em 1973 e reproduzido hoje no livro As Mãos na Água a Cabeça no Mar (1985) – e é a seguinte: Teixeira de Pascoaes, poeta bem mais importante, quanto a nós, do que Fernando Pessoa. (1985: 261) Servi-me dela, ao lado de três outras, para abrir o livrinho Teixeira de Pascoaes nas Palavras do Surrealismo em Português (2010) e volto agora a pegar nela, desta vez isolada, para a tomar como epígrafe solitária deste que ora entrego ao leitor. Pela importância que lhe tenho dado, pelo que apresenta de tão inaudito e de tão inesperado, ofensivo mesmo, a frase fica a merecer da minha parte um excurso interior de comentário ou um tentame de esclarecimento.
A primeira pergunta a fazer é a seguinte: que quererá Cesariny dizer com ela? A afirmação não tem na aparência sentido obscuro ou dúbio. A resposta é pois imediata – mas não é mansa: Teixeira de Pascoaes é para Cesariny um poeta mais importante do que Fernando Pessoa. Posso deixar de lado o sujeito singular da afirmação, que não a restringe a si, universalizando o sentido: Pascoaes é poeta mais importante do que Pessoa. E posso, sem trair, traduzir a expressão por uma nova, que a alarga e esclarece: Pascoaes é um poeta superior a Pessoa.
A segunda pergunta, tendo em atenção a direcção do significado encontrado, no mínimo surpreendente, não pode deixar de ser: a afirmação é a sério ou a brincar? Nada me leva a questionar a seriedade da frase, nem o que vem antes nem o que vem depois. Não posso esquecer o quadro em que ela aparece, um dos mais sérios em que Cesariny se meteu: um texto que ensaia ser um contributo avantajado à história do surrealismo português, “Para uma Cronologia do Surrealismo em Português”. A afirmação vem no primeiro capítulo, na zona dos precursores, e abre os períodos dedicados a Teixeira de Pascoaes, aqueles que o leitor já conhece e onde se fala dum livrinho rimbaldiano sem Rimbaud e surrealista sem o surrealismo, O Bailado (1921), e dum homem que praticou ao longo de mais de meio-século a poesia como pedra filosofal.
Não parece pois que seja de tomar a brincar a afirmação de Cesariny, como fez Osvaldo Silvestre ao falar do pai tardio de Cesariny. Até se aceita a ideia de relação filial entre Cesariny e Pascoaes, mas sem querer aplicar nela qualquer estratégia de luta edipiana entre Cesariny e Pessoa. A luta edipiana com o pai situa-se no plano chão da primeira consciência e resulta da interdição do incesto; não é mais do que um contra-investimento traumático da líbido, penalizada que esta foi pela impossibilidade do incesto parental. Quando a prática do incesto era corrente, em pleno matriarcado, num período de promiscuidade sexual sem limite, como aquele que se vê em todos os mamíferos, a luta do pai e do filho pela posse da mãe, ou da filha pela posse do pai, não fazia qualquer sentido, já que essa posse estava ao alcance de qualquer um. No plano do surreal ou do sobrenatural, onde se situa por exemplo a cosmologia masdeísta da criação incestuosa do homem, a luta edipiana não existe, pois o conflito psíquico originado pela interdição do incesto nem sequer se apresenta. Ora Cesariny, mesmo sem incesto, que a liberdade dele não chegou aí, e o sonho com Lisboa é em tal ponto revelador, não é homem nem poeta para ser visto no plano comezinho e apertado da primeira consciência, onde vive e escouceia qualquer careta de colarinho branco; ao fazer profissão de fé no surrealismo, ao manter-se-lhe fiel até ao fim da vida, é à (ou para a) segunda consciência que Cesariny se dirige e é à luz dela que o intérprete, se quiser entender algo desta experiência, o há-de ler.
Fica pois afastada a possibilidade analítica de ler a frase em causa como uma estratégia da luta edipiana entre Cesariny e Pessoa. E já agora pai tardio porquê? Haja mais atenção, senhores! Cesariny leu um livro marcante de Pascoaes aos vinte e seis aninhos, no princípio das suas lides, e foi tocado por ele; disso até registo ficou em carta de António Maria Lisboa, que na segunda metade do ano de 1953 já cá não estava. E tudo fez na época em que o seu grupo surrealista estava activo, e bem, com peixinhos de vinte anos, para conhecer cara a cara o Poeta, não hesitando mesmo em se deslocar a Amarante e em subir a Gatão, à Casa de Pascoaes. Pascoaes, pai de Cesariny? Aceite-se! Serôdio? Nunca, nem por sombras. Bem temporão foi ele; basta ver com um pouco de atenção a questão.
Passado este cabo, faça-se a terceira e última pergunta: que significado tem para Cesariny Pascoaes ser um poeta superior a Pessoa? É a pergunta decisiva, aquela de cuja resposta depende o descascar a frase, dando a provar o interior do seu miolo. As hipóteses são tão variadas que os caminhos, se bem que cheios de piada, com tanta silva, se fazem labirinto. Pascoaes é superior a Pessoa porque fumava tabaco de enrolar e Pessoa cigarros de pacote? Pessoa é inferior a Pascoaes porque bebia no Vale do Rio e Pascoaes na pipa de Gatão? Pascoaes é superior a Pessoa porque comia castanha pilada e Pessoa se ficava pela batata de Caneças? E por aí fora, até ao Tâmega e ao Tejo, dois rios que começam pela mesma letra, chegam do mesmo país e vão dar ao mesmo mar. Pessoa inferior a Pascoaes porque não tem onda em Cascais para surfar com tanta altura como Pascoaes tem em Matosinhos? Pascoaes superior a Pessoa por causa da asa delta do Marão? Os trilhos são infinitos e quase sem enfado de tão piadéticos.
Uma coisa é segura para mim na frase de Cesariny: tenho de afastar a leitura mais vulgar e imediata em que qualquer leitor cairá quando a lê. Qual é ela? Pascoaes é superior a Pessoa porque tem mais talento literário do que ele. Não! Concedo desde já que não era esse o significado que Cesariny emprestou à frase e que não é nesse sentido que a uso. Concedo até mais: no plano da literatura o inverso parece-me mais certo; Pessoa é mais talentoso que Pascoaes. A habilidade linguística, a capacidade de manobrar palavras, o virtuosismo do instrumento literário é em Pessoa imbatível e sem paralelo à altura. No estrito plano da literatura Pessoa bate qualquer outro.
Sobrevive pois por resolver a questão: de que modo e onde Pascoaes é superior a Pessoa? Note-se que Cesariny não diz que Pascoaes é um literato ou mesmo um letrado superior a Pessoa; diz antes que é um poeta. É pois no campo da poesia que Pascoaes é superior a Pessoa. A poesia não é apenas feita de palavras e de emoções vividas; a poesia para ser inteira e ter largo alcance precisa de algo mais. Não lhe basta ser virtuosa no plano da literatura ou da vida (deste mundo). Uma poesia feita apenas de palavras e de emoções não chega a ser uma arte real; não vai além, no melhor dos casos, duma gramática. Esse algo em falta é a imaginação. Só com esta faculdade a poesia se faz criação da segunda instância e trilho de acesso ao supra-real; só com ela se pode falar de automatismo psíquico e de criação simbólica ao nível do poético. Em última visão, uma poesia constituída apenas por palavras e por emoções está ao nível dos conteúdos da primeira consciência, ou das ambições do Eu social, e não chega sequer a entrar em contacto com o mundo da alma.
Ora Pessoa, pela extraordinária habilidade linguística que tinha, fez uma poesia de palavras e de emoções – mesmo que estas muitas vezes mentais. A sua capacidade imaginativa é medíocre ou só sofrível; está muito longe de atingir a luminosidade lapidar, a cristalização mágica, que se encontra em Pascoaes ou até em Sá-Carneiro. Ele próprio confessa em certos momentos a pouca apetência que tinha pelo imaginar, que lhe parecia forma de expressão confusa, incómoda, embrulhada. Quando se quer exprimir, ele prefere de longe o raciocínio do intelecto à imagem da imaginação, que se lhe apresenta sempre um grau abaixo do juízo lógico. É a raciocinar que ele se encontra à-vontade e não a imaginar, e isto até quando escreve versos. Tome-se como exemplo Alberto Caeiro. É a secura raciocinante em exaustão, levada ao extremo, recusando através da tautologia em bruto um mínimo residual que seja de imagem metafórica ou de aproximação analógica. Uma tal poesia obtém-se, como revelou o seu criador, virando do avesso Pascoaes; é pôr em acção um anti-Pascoaes através duma anti-imaginação.
O antídoto da escaldante imaginação pascoaesiana é pois o intelecto descarnado do raciocínio pessoano. E o pouco que há em Pessoa de imaginação deve-se mais à possibilidade de intelectualizar a imagem do que em imaginar esta em estado virgem. O intelecto de Pessoa é tão poderoso, foi tão musculado momento a momento, praticou tanto e de tão variados modos, que o seu possuidor tenta mesmo suprir com ele as falhas que percebe nas faculdades sensitivas e psíquicas. Pessoa faz por isso de conta que imagina, organizando e esclarecendo com o intelecto algumas imagens que vai buscar por via erudita aos poetas imaginativos. Parecem-me raras e pobres as imagens que se coam na poesia de Pessoa por contacto directo da alma.
Faz agora mais sentido a frase em causa. Vede. Pessoa interessa menos Cesariny do que Pascoaes, já que a força da expressão não reside nele na imagem mas no raciocínio; Pascoaes interessa mais do que Pessoa, já que a esfera da imaginação se sobrepõe nele ao mundo empírico dos sentidos e ao universo abstracto do intelecto. O bailado simbólico da imaginação de Pascoaes, mesmo sem o talento literário-sintáctico de Pessoa, importa mais do que tudo o resto; um tal bailado equivale ao automatismo psíquico que um poeta surrealista deve exigir da poesia. Ao invés o talento literário de Pessoa, mas sem o génio imaginativo de Pascoaes, tem irrisório valor, pois não chega sequer para ou a descolar da realidade empírica dos sentidos ou da abstracção do intelecto. Para um poeta surrealista a poesia sem o automatismo psíquico, a poesia sem contacto directo com o mundo da alma, a poesia feita apenas de palavras ou de emoções, a poesia amassada com a terra da primeira consciência, é apenas literatura e esta tem uma importância tão nula como qualquer outro material do Eu social.
Pascoaes, como batedor da imagem, como vedor dos veios interiores que levam ao perdido continente alma, é pois um poeta para Cesariny mais importante do que Pessoa. Entende-se. A inferioridade dum em relação a outro é apenas a diferença de grau que para um poeta surrealista existe entre a imagem fulgurante, a ferver, que põe o ser em contacto com o Eu interior, o daemon do mundo da alma, e o raciocínio frio, que um ser de invulgar inteligência sabe brilhantemente, sem mais, ordenar em palavras. A literatura é esta letra dura que não descola do mundo, a palavra sensível ou abstracta, mas sem rasgo de supra-real, enquanto a poesia é aquela imagem que voa num lugar livre do entre mundo, onde a palavra fogo não é apenas a palavra fogo mas o arquétipo, a labareda que queima a boca.


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Capítulo integrante do livro Notas para a compreensão do Surrealismo em Portugal, gentilmente cedido pelo autor. Para conhecer melhor vida e obra de António Cândido Franco, visite: http://literaturaliteraturaliteratura.blogspot.com.br/2014/02/conhecer-antonio-candido-franco-vida-e.html. Página ilustrada com fotografias de Teresa Sá Couto.





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