quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO | Experiências de Duplo e de Além Mundo em Pascoaes


Encontro em Freud, que estou a ler por acaso, um passo que me pode interessar e muito. Está na Autobiografia escrita em 1924, numa altura em que a psicanálise já chegara à idade adulta, ou mesmo madura, e em que era fácil ao autor rememorar em sinopse, sem explicações demoradas e sem recurso à descrição pormenorizada de casos empíricos, tão comuns na fase inicial, os passos do aparecimento e do primeiro desenvolvimento da teoria psicanalítica. Ao tratar do período relativo à colaboração com Breuer, Freud aponta o momento em que formulou a noção de inconsciente psíquico como decisiva para a passagem do método catártico tal como Breuer o praticava a partir da hipnose – libertação dos sintomas patológicos da nevrose através da rememoração verbal deles – ao método analítico.
O que aqui me interessa não é o que pode haver de específico neste, quer dizer, a etiologia sexual das nevroses tal como a análise as detectou, mas muito mais o espaço intervalar entre os dois momentos. No intervalo, como ponte de passagem, encontro a teoria do recalcamento, em que conteúdos manifestos, até aí admitidos na consciência vigilante, são expulsos desta, retraindo-se num segundo compartimento, onde permanecem latentes e sem existência aparente. O facto desses novos conteúdos latentes resistirem ao recalcamento, procurando forçar caminho para se voltarem a manifestar à superfície, levou Freud a formular a ideia duma segunda consciência, interdita à primeira, pelo menos de forma aberta e livremente reconhecida, mas não por isso menos viva, actuante e consciente. A noção de inconsciente psíquico, crucial ao nascimento da psicanálise, foi deduzida desta ideia duma segunda consciência, onde actuam, vivem e se desenvolvem os conteúdos latentes, desconhecidos da primeira consciência.
Retenho pois a ideia duma segunda consciência, que existindo com realidade própria, inexorável, é porém um território defeso e desconhecido à primeira, aquela que tem lembrança e noção de si, pelo menos como se entende de forma vulgar esta noção de si. A ideia duma dupla consciência, desconhecida ao pensamento do dia-a-dia, uma consciência inconsciente para usar a expressão de Freud, interessa-me muito para abordar um livro de Teixeira de Pascoaes dado a lume em edição magra de autor no ano de 1942, Duplo Passeio.
Mas antes de falar do livro talvez valha a pena dizer que em Platão, de resto citado na Autobiografia de 1924 como o primeiro elo de Freud, ou em textos dele, como o Fedro, o composto humano resulta da sobreposição de dois planos distintos, que nunca se fundem por inteiro, corpo e alma, o primeiro pertença absoluta da natureza terrestre e o segundo chegado de paragens distantes ou ignoradas. Em Platão estes dois planos, o da alma e o do corpo, aparecem referidos ao mundo das ideias, luminoso e esplêndido, e ao da caverna escura, onde as coisas materiais surgem como apagadas sombras das ideias. Camões glosou em vários passos esta visão duma alma alienígena aprisionada num vaso de argila que não lhe corresponde. Na glosa camoniana a Terra é uma estação que fabrica vestes materiais ao fogo luminoso que receberá, mas vestes desajustadas, já que opacas, à natureza translúcida da essência imaterial. Daí a noção de exílio que a alma vive na Terra junto do corpo, quer dizer, a incomodidade, a estranheza e a dificuldade que ela sente num meio tóxico e corruptível que não é o seu.
Onde este platonismo me parece ter tido o seu florescimento mais avançado foi num autor como Sohravardi (sec. XII), que no seio da filosofia árabe fundiu Platão com antigas tradições persas. O que daí resultou foi um entendimento distinto da manifestação dos dois planos de conhecimento, o das ideias e o das coisas. Por um lado o corpo, embora permanecendo um vestuário desajustado à alma, capaz apenas de focar um conhecimento sensível, perde algo da oposição tenaz com a alma e que logo se verá o quê e como; por outro lado, a alma, se bem que mantendo a sua natureza de alienígena, adapta-se o seu tanto ao corpo, podendo até perder de todo a memória do lugar de origem. No platonismo de Sohravardi a alma quando chega à Terra para encarnar no corpo que esta lhe fabrica deixa um duplo no lugar de origem. Da relação entre a alma encarnada e o duplo que nunca abandonou o mundo original resultam situações distintas: se o diálogo existe, a memória da pátria original não desaparece, antes se desenvolve, arrastando nesse encontro faculdades próprias ao corpo ou ao que neste há do mundo sensível; se a alma perde o contacto com o duplo, a memória da origem apaga-se e em vez de ser a alma a sublimar o corpo é o corpo a condensar a alma.
Um dos artigos mais notáveis deste platonismo é a forma como ele concebe o diálogo entre a alma e o seu duplo. E talvez mais do que diálogo seja adequado falar aqui em conhecimento, já que a alma ao encarnar conhece o corpo e perde parte do conhecimento que antes tinha; essa parte perdida é o duplo que não a acompanha no momento da encarnação. Para reconquistar o que perdeu, para voltar ao convívio daquilo de que se separou, a alma humana precisa de desenvolver um modo próprio de conhecimento. Se os sentidos corporais conhecem o mundo empírico da realidade material e o intelecto racionaliza em leis esse primeiro e imediato conhecimento, a imaginação é o órgão da alma encarnada capaz de activar o contacto com o duplo. É pela imaginação que a alma encarnada pode regressar ao contacto com o mundo original donde veio. Se não quiser perder a ligação estabelecida, se quiser aprofundar as relações com o duplo, a alma precisa de valorizar a imaginação, tornando-a cada vez mais activa e presente. 
Isto quer dizer que o lugar de origem das almas tem um estatuto análogo ao da imagem ou é ele mesmo uma imagem. E por ser nem mais nem menos do que uma imagem é que o duplo se deixa apreender ou conhecer pela imaginação. A imagem não se confunde com a ideia mas está dela muito mais próxima do que a realidade sensível. Na gnoseologia de Platão há o exterior da caverna com o oceano de luz das ideias e há o seu interior com as pálidas e apagadas sombras que são as coisas. A ponte entre estes dois mundos é quase inexistente; só a reminiscência, a memória residual que toda a sombra tem no fundo de si da luz exterior de que é afinal a última projecção, cria uma ténue linha, que não chega a ser passagem, entre as ideias e as sombras, o interior e o exterior da caverna. Em Sohravardi em vez de duas realidades antagónicas, há pelo menos três realidades em jogo: as ideias, as imagens e as coisas. A alma não chega directamente do mundo das ideias, do extra-mundo se assim posso dizer, mas do mundo das imagens, que está intimamente referido ao das ideias mas dele se distingue por uma corporeidade subtil. É um plano intermédio, um entre-mundos, por contraponto ao extra-mundo das ideias e ao intra-mundo da matéria, um plano que tanto participa pela encarnação na realidade sensível das coisas como pelo duplo, que nunca abandona o plano subtil das imagens, na realidade luminosa das ideias.
Regresso agora ao livro de Teixeira de Pascoaes. Logo no título encontro a ideia de duplo ou de desdobramento, que tanto me traz à lembrança, até por dentro da obra de Pascoaes, em primeiro lugar essas sombras do livro de 1907, que abro agora e onde deparo ao acaso com estes versos, quarta estrofe do poema “A Sombra do Passado”: Sou como vós, ó árvores! A sonhar,/ Desço aos seios da Noite, a ver se encontro/ Algum veio de luz, onde matar/ Esta sede infinita em que me abraso!/ (...)/ Ai, tendes fome e sedes! Assim eu/ Tenho sede de luz. E depois, ainda ao acaso, com estes, no poema “Além-Mundo”: (...) além desta carne contingente,/ Que nos cobre estes ossos de miséria,/ Outra existe, mais bela e transcendente,/ Para onde foge e emigra a nossa alma. Nestes quatro versos deparo com o desdobramento da realidade material tal como o encontro em Platão e nas glosas platónicas que se lhe seguiram; é aquilo que o sujeito chama de outra carne, nem contingente nem miserável, e que por sua vez não anda longe da segunda consciência elaborada por Freud. Uma nota: esta outra carne diz respeito à totalidade do mundo natural, a tudo o que existe em matéria, da pedra ao homem, da bactéria à mulher, da formiga à criança, e não apenas à esfera humana. O antropomorfismo não tem aqui lugar; seria irrisório ver sob este aspecto o homem separado da natureza. Por isso o sujeito destes versos pode gritar que é árvore. E por isso num poema desta mesma época, publicado em Vida Etérea (1906), “A Uma Ovelha”, o sujeito foi capaz de ver num animal de rebanho um ser faminto dessa relva que enverdece/ Os outeiros e os vales do Outro Mundo. Essa ovelha mostra que todo o corpo corruptível e denso recebe um sopro alienígena, uma alma incorpórea; qualquer corpo material, do mais ínfimo ao maior, é uma sombra projectada por uma ideia. Tudo na Terra reflecte o seu arqueu ordenador; tudo na Terra se projecta no infinito; tudo na Terra tem uma alma e aspira a entrar em contacto com a parte dela que não encarnou. A anima mundi é terrena e não apenas humana.
O tópico do sujeito como árvore, com raízes, leva-me à primeira citação, na qual muito me toca a acção aí referida, sonhar. Dito doutro modo, o sujeito é como uma árvore mas só quando sonha, pois sonhar é fazer da noite um húmus onde se bebe a luz. Se levar adiante o raciocínio obtenho: o dia, sem sonho, traz o corpo material e a noite, com o sonho, traz a alma ou a segunda consciência de que fala Freud. O veio de luz que o ser a sonhar procura é o extra-mundo platónico. Convém perguntar: mas por quê a sonhar? Com certeza porque o sonho faz parte daquele órgão da alma encarnada que a põe em contacto com o lugar de origem. Isto traz à colação, quer dizer, cola, o que atrás se disse sobre o papel da imaginação em Sohravardi. A imaginação tem natureza análoga a partes próximas do extra-mundo; por esse motivo pela imaginação a alma encarnada pode regressar ao lugar de origem. O sonho é pois parcela importante da imaginação e não apenas pelo tempo que ocupa na vida de cada um mas pela natureza contínua e real das imagens em que o sonhador mergulha. Não admira pois que seja a sonhar que o sujeito do poema de 1907 procure o veio de luz do extra-mundo.
Recordo que a propósito de Sohravardi alertei para a necessidade de valorizar a imaginação. Sem isso o contacto com o além mundo perde-se ou quebra-se. Isto quer dizer que a alma necessita de tornar cada vez mais real, cada vez mais presente, cada vez mais sentido o mundo das imagens que lhe é aberto pela imaginação. O que se vê em imaginação não pode ser degradado pelo intelecto, ou desvalorizado por ele, como em geral hoje acontece. A civilização da imagem é um sofisma, uma impostura descarada, porque ninguém acredita hoje na imagem, nem os que a fazem nem os que a vêem, nem os que a vendem nem os que a compram. A imagem está na civilização da mercadoria ao nível duma simples brincadeira inconsequente, duma imbecilidade triste. É a Disneylândia do espírito, sem espessura de realidade, a não ser a facturação da indústria cultural ou da do entretenimento.
Mesmo uma criança, para quem a imaginação parece ser a única força actuante do espírito, porventura porque a alma acabou de encarnar no vaso, fica apática ante a cinemática de Hollywood; nem uma beliscadura, nem um grito, apenas a ruminação interessada, o estalar na boca da pipoca com a calda de açúcar refinado. Quão longe vão os tempos, sem cinema, sem animação de bonecos, sem electricidade, em que as meras histórias da carochinha, contadas boca a boca, entre analfabetos, ou transpostas por actores anónimos, providos de máscaras, para um simples tablado de madeira carunchosa, podiam produzir no ouvinte ou no espectador, fosse pequeno ou grande, homem ou mulher, um suor lívido de terror ou mesmo um grito de pavor.
Nos antípodas da desvalorização da imagem está a experiência do autor que escreveu As Sombras. Leia-se a realidade que ele empresta ao sonho, fruto de muito convívio tomado a sério com ele: O Sonho e o amor/ são tão reais que, às vezes, nos parecem/ tangíveis e palpáveis; podem ver-se! (em “A Sombra da Vida”, décima estrofe) As imagens no caso dele tocam-se; são tão sensíveis e tão verdadeiras como a realidade material. Não são um simples passatempo, para entreter tempos mortos, que só por ironia se chamam também livres, como sucede na Disneylândia moderna, mas um mundo real no qual o ser se pode instalar com todas as bagagens para viver e para se transformar.


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Capítulo integrante do livro Notas para a compreensão do Surrealismo em Portugal, gentilmente cedido pelo autor.Para conhecer melhor vida e obra de António Cândido Franco, visite: http://literaturaliteraturaliteratura.blogspot.com.br/2014/02/conhecer-antonio-candido-franco-vida-e.html. Página ilustrada com fotografias de Teresa Sá Couto.





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