terça-feira, 12 de janeiro de 2016

CLAUDIO WILLER | William Blake, poeta e profeta


Quantas boas vias de acesso dos leitores brasileiros à poesia de William Blake. Saiu mais uma tradução de O Casamento do Céu e do Inferno, pela editora Hedra, por Ivo Barroso, que já havia traduzido O Tigre (este poema, classificado como canônico por Harold Bloom, também foi traduzido, entre outros, por José Paulo Paes, Augusto de Campos, Paulo Vizzioli, Alberto Marsicano, e por Mário Alves Coutinho e Leonardo Gonçalves). Voltou à circulação a edição de Blake preparada por Paulo Vizzioli: Poesia e Prosa Selecionadas, agora pela Nova Alexandria. É recente William Blake, O Casamento do Céu e do Inferno e outros escritos, seleção e tradução de Alberto Marsicano, pela L&PM Pocket; versão revista e ampliada de outro Blake por Marsicano, na década de 1980. Continua em circulação O matrimônio do Céu e do Inferno, O livro de Thel, por José Antônio Arantes, da Iluminuras. Outra boa aproximação a Blake, através de Canções da Inocência e da Experiência, por Mário Alves Coutinho e Leonardo Gonçalves, pela Crisálida, de Belo Horizonte.
Há exatos 200 anos, em 1809, Blake, precisando de dinheiro, fez uma exposição de suas gravuras, incluindo textos ilustrados. Apenas um crítico, do Spectator, visitou a mostra: escreveu que Blake devia ser objeto de pena, pois era apenas um pobre louco. Gravações – o modo escolhido por Blake para publicar, através de gravuras em cobre, tratadas uma a uma, com ilustrações e os textos – e originais permaneceram jogados, deteriorando-se, até sua descoberta por Dante Gabriel Rossetti e Swimburne, meio século depois da sua morte (em 1827, aos 70 anos), para terem a primeira edição realmente adequada em 1893, graças aos cuidados de William Butler Yeats.
Dentre essas edições de Blake – listei as mais recomendáveis – aquela de Marsicano merece interesse por trazer amostras do que Alfred Kazin (organizador do The Portable Blake da Penguin Books), chamou de poemas proféticos, e Keines, que preparou a edição de sua obra completa (Blake,Complete Writings, editado por Geoffrey Keynes, Oxford University Press), chamou de poemas simbólicos: entre outros, os extensos e torrenciais Milton e Jerusalem, e o enorme Vala or The Four Zoas (com 120 páginas na edição Keynes), que Blake não chegou a publicar; foi recuperado décadas após sua morte. Esse repertório do Blake mais complexo, ou menos imediatamente sedutor, será ampliado em breve, com a edição por Floriano Martins, pela Nephelibata.
Por algum tempo, houve estranheza diante da diferença, até contradição aparente, entre o Blake tão claro e preciso de O Casamento do Céu e do Inferno, e tão antológico, e não só pelo poema do tigre, das Canções da Inocência e da Experiência, e uma escrita paroxística, transbordante, dos poemas mais extensos. O juízo de valor, em favor das obras mais reduzidas e concisas, contrário aos excessos daquelas mais extensas, foi discutido por Alfred Kazin em The Portable Blake. Da mesma época (década de 1940), o ensaio que inaugurou um novo patamar da crítica blakeana (se não da ensaística literária em geral), Fearful Symmetry – A Study of William Blake de Northrop Frye (Princeton University Press). Mas neste, curiosamente, um viés oposto: empreendendo uma tarefa ciclópica, a interpretação de textos como Vala or The Four Zoas, põe algo de lado O Casamento do Céu e do Inferno. Vê-o como sátira na tradição de Swift e Sterne: O Casamento do Céu e do Inferno pertence à tradição da grande sátira.
Se os poemas longos de Blake contribuíram para consolidar sua reputação de louco, isso não impede sua decifração. Por exemplo, deste trecho de Milton: [1]

Esta é a Natureza do infinito:
Todas as coisas possuem seus próprios Vórtices, e quando um navegante da Eternidade
Passa este Vórtice, percebe que ele turbilhonante gira para trás
E penetra numa esfera que se engloba a si mesma como o sol, a lua, ou como um firmamento de constelada magnitude
Entretanto prossegue em sua maravilhosa trajetória pela terra,
Ou como forma humana, um amigo com o qual pode-se compactuar luminosamente a existência.
O olho humano, seu Vórtice abarcando, vislumbra o leste & o oeste
O norte & o sul, com suas vastas legiões de estrelas
O sol surgente e a lua no fulcro do horizonte
Os seus milharais e vales de quinhentos alqueires
A terra é uma planura infindável, e não como aparece
Ao ignóbil transeunte confinado às sombras da lua.
O céu é um Vórtice já há muito transpassado;
A terra, um Vórtice ainda intocado pelos navegantes da Eternidade. [...]
Toda fração de Tempo menor que um pulsar de artéria
Equivale a Seis Mil Anos.
Pois neste Ciclo é criada a obra do Poeta, e nele os Grandes Eventos do Tempo se iniciam e são concebidos
No fulcro de um instante, Pulsação arterial.
O céu é uma Tenda Eterna erguida pelos Filhos de Los;
E o vasto Espaço que o Homem contempla em sua morada
Na cobertura ou jardim no cimo de uma colina
De vinte e cinco pés de altura, é seu Universo; [...]
Tal é o espaço denominado Terra & tal sua dimensão
Enquanto essa falsa aparência que se apresenta ao racionalista
Como um Globo rolando através da Vacuidade, é uma decepção de Ulro.
E disto nem desconfiam o Telescópio ou o Microscópio;
Alteram os parâmetros dos Órgãos do Espectador, deixando intocados os objetos;
Pois cada Espaço maior que um Glóbulo vermelho de sangue Humano
É visionário e foi pelo martelo de Los criado.
E cada espaço menor que um Glóbulo de sangue estende-se
Ás larguras da Eternidade, da qual esta terra
Vegetal não é senão a mera imagem.
O Glóbulo vermelho é o insondável Sol por Los criado,
Para mensurar o Tempo & o Espaço aos Mortais a cada manhã.
Compare-se com este conciso (e famoso) poema de seu cadernos de notas:
Num grão de areia ver um mundo
Na flor silvestre a celeste amplidão
Segura o infinito em sua mão
E a eternidade num segundo.

Em uma condensação, Blake proclamaria, em O Casamento do Céu e do Inferno, que Um pensamento abarca a imensidão. A frase equivale a outra, epígrafe dos beats e de experiências com alucinógenos depois de inspirar o título de Huxley, As Portas da PercepçãoSe as portas da percepção se desvelassem, cada coisa apareceria ao homem como é, infinita. Pois o homem se enclausurou a tal ponto que apenas consegue enxergar através das estreitas frestas de sua gruta.
Nada a estranhar na extensão temporal contida em um glóbulo de sangue, nos patamares de tempo e espaço dos trechos aqui citados de Milton. Alguém capaz de ver um mundo no grão de areia, para quem a eternidade podia caber em um segundo, relatou, em obras como Milton e Jerusalém, como eram o infinito e a eternidade.
O paradigma para avaliar os poemas mais complexos de Blake deve ser outro. A propósito dos apócrifos, dos textos apocalípticos dos primeiros séculos a.C. e d.C, Serge Hutin, em Les Gnostiques (Presses Universitaires de France, coleção Qui sais’je?), comenta os motivos pelos quais esse tipo de produção, especialmente aquela dos gnósticos, por muito tempo foi visto com desconfiança ou posto à margem por historiadores positivistas e teólogos racionalistas: Muitos historiadores ainda consideram o gnosticismo como um monumento de sonhos e devaneios bizarros, de incoerências, de mitos estranhos, de fantasmagorias desprovidas de todo interesse filosófico, e que não são, em definitivo, que um ramo particularmente degenerado do inquietante sincretismo religioso do primeiro e segundo século da nossa era.
Tais características – ser bizarro, esdrúxulo, um desafio ao racionalismo – também se ajustam a uma sensibilidade moderna: dela fazem parte a valorização do grotesco por românticos, ou do surreal e transgressivo hoje. A qualificação como monumento de sonhos e devaneios bizarros vale para especulações gnósticas e para Jerusalém e Milton de Blake, Aurélia de Nerval, Iluminações de Rimbaud ou Os Cantos de Maldoror de Lautréamont, entre outros que passaram de malditos a cultuados.
Foi por perceber isso que André Breton saudou a descoberta das “escrituras” gnósticas de Nag Hammadi em um texto de 1949, Flagrant délit. Declarando-se continuador de uma tradição esotérica na poesia cuja origem estaria no gnosticismo, o surrealista indagou como foi possível a tradição gnóstica conservar-se. Observou que isso não decorria necessariamente da transmissão direta: Será preciso admitir que os poetas sorvem, sem o saber, em um fundo comum a todos os homens, singular pântano cheio de vida onde fermentam e se recompõem sem parar os destroços e os restos das cosmogonias antigas, sem que os progressos da ciência lhes provoquem uma mudança apreciável? E sugeriu [...] um poder de absorção de ordem osmótica e para-sonambúlica dessas concepções tidas, ao olhar racional, por aberrantes. [...] Nessa floresta virgem do espírito, que margeia por todos os lados a região onde o homem conseguiu erguer seus marcos indicadores, continuam a rondar os animais e os monstros, pouco menos inquietantes do que em seu papel apocalíptico. Ao mencionar os animais e os monstros, apenas menos inquietantes do que em seu papel apocalíptico, encontrados entre os destroços e os restos das cosmogonias antigas, Breton lhes atribui valor oposto àquele conferido pelos racionalistas e positivistas. Pelas mesmas razões, já na década de 1930, Georges Bataille, o pensador da transgressão, já havia destacado o caráter perturbador, pelo baixo materialismo, por trazer os fermentos mais impuros, do gnosticismo.
A mitologia pessoal de Blake poderia ser interpretada como um sistema de metáforas para referir-se à opressão e à desigualdade; para atacar o sombrio panorama oferecido por uma primeira fase da industrialização, da implantação do mundo burguês, na Inglaterra. Seu monismo panteísta, declarado em O Casamento do Céu e do Inferno, também seria metáfora, porém da superação do status quo e da realização da utopia: outra face, o reverso da moeda. Corroboram essa interpretação as frases em tom triunfal do epílogo de O Casamento do Céu e do Inferno, intitulado Uma Canção de LiberdadeO IMPÉRIO CAIU! E AGORA O LEÃO & O LOBO TERÃO FIM! E seu notório envolvimento com acontecimentos de seu tempo, evidente em poemas como The French Revolution e América. Durante a Revolução Francesa, provocador, ostentava o barrete vermelho dos revolucionários.
Mas não basta interpretá-lo como crítico que usava categorias teológicas e formulou mitologias na falta daquelas propriamente políticas. Conhecia o repertório político corrente em sua época. As estranhas divindades e cosmogonias não estão em sua poesia apenas pelo valor como alegorias. Expunha mitos enquanto tais, como realidades reveladas. É o que fica claro através de uma passagem como esta, de um de seus derradeiros textos, A Vision of the Last JudgementO Juízo Final não é Fábula ou Alegoria, porém Visão. Fábula ou Alegoria são uma modalidade totalmente distinta e inferior de Poesia. Visão ou Imaginação é uma Representação do que Eternamente Existe, Real e Insubstituível. [...] Fábula é alegoria, mas o que os Críticos chamam de A Fábula é a própria visão. A Bíblia Hebraica e o Evangelho de Jesus não são Alegoria, porém Eterna Visão ou Imaginação de Tudo que Existe.(em Complete Writings de Blake, na edição Keynes – nas citações dessa edição, a tradução é minha).
Poetas preferem ser tomados por seu valor de face, em vez de serem racionalizados. Aquilo de que Blake falou – Urizen, Orc, o vale de Thel, Rintrah, os Zoas, Golgonooza, Palamobrom – era dado como real. Exigiu que o levassem a sério, que o lessem como profeta visionário e não como pensador abstrato.
Torna-se inevitável projetar na leitura de Blake sua teoria de opostos, a afirmação de que os contrários movem o mundo: portanto, movem a criação poética. E juízos de valor como este, de O Casamento do Céu e do InfernoO homem que jamais muda sua opinião é como água estagnada & engendra os répteis da mente. Entender e aceitar seus desafios ao princípio lógico da identidade e não-contradição possibilita examiná-lo como místico, visionário e sonhador, ou poeta do sonho.
Há divergências na classificação de Blake como místico. Frye inicia a nota final de Fearful Symmetry com uma advertência: A palavra “místico” nunca trouxe nada senão confusão para o estudo de Blake. Já um especialista em misticismo, Gershom Scholem, deu uma resposta inequívoca: Blake representou o misticismo sem laços com qualquer autoridade religiosa, em companhia de Rimbaud e Whitman, também heréticos luciferianos; pois sua imaginação era estimulada por imagens tradicionais, ou da igreja católica oficial (Rimbaud) ou de origem hermética e espiritualista, subterrânea e esotérica (Blake). [2]
Scholem ainda distingue – a propósito de Blake, Rimbaud e Whitman – duas atitudes dos místicos, uma conservadora e outra revolucionária: uma atitude revolucionária é inevitável uma vez que o místico invalida o sentido literal das escrituras sagradas. Místico revolucionário: por isso, um contendor das religiões institucionais, do clero, frontalmente atacado ao longo de toda a sua obra, como nesta passagem de O Casamento do Céu e do Inferno:

Os poetas da Antiguidade animaram todos os objetos sensíveis com Deuses ou Gênios, nomeando-os e adornando-os com as propriedades dos bosques, lagos. cidades, nações e tudo o que seus dilatados sentidos podiam perceber.
Particularmente, estudaram o Gênio de cada cidade & país, colocando-o sob a égide de sua deidade mental.
Até que se formou um sistema, do qual alguns se aproveitaram e escravizaram o vulgo, interpretando e abstraindo as deidades mentais de seus respectivos objetos. Então surgiu o Clero;
Elegendo formas de culto dos mitos poéticos.
E proclamando, por fim, que assim haviam ordenado os Deuses.
Os homens então esqueceram que Todas as deidades residem em seus corações.

Vê-lo como místico, e mais, como visionário, encontra respaldo entre outros estudiosos de Blake; e em seu próprio testemunho. É um resumo de sua poética esta passagem de O Casamento do Céu e do Inferno:

Os profetas Isaías e Ezequiel jantavam comigo. Perguntei-lhes como se atreviam a afirmar que Deus falava com eles; e se não achavam que isto os tornava malditos & passíveis de perseguição. Isaías respondeu: “Jamais pude ver ou ouvir Deus dentro de uma percepção orgânica e finita; Meus sentidos descobriam o infinito em cada coisa, e como desde então estivesse convicto & recebesse o sinal que a voz da indignação sincera é a voz de Deus, alheio às consequências, escrevi.

Logo a seguir, outra frase reveladora, em um dito atribuído a Ezequiel: A filosofia do Oriente ensinou os princípios básicos da percepção humana.
Que percepção e que visões e audições são essas? Fica evidente pelo trecho citado que, para Blake, equivaliam-se a percepção de algo como experiência subjetiva ou como fato objetivo, exterior ao sujeito. Podem contribuir para a compreensão da poética visionária de Blake algumas observações de Breton publicadas em Le méssage automatique. Nesse texto de 1933, deixando de associar a escrita automática apenas ao inconsciente freudiano, o surrealista citou Myers, o psicólogo experimentalista que pesquisou imagens eidéticas, como os pós-efeitos visuais (quando olhamos fixamente para uma fonte de luz, e esta, alterada, permanece ao fecharmos os olhos). E concluiu com uma afirmação ousada: Toda a experimentação em curso seria de natureza a demonstrar que a percepção e a representação – que para o adulto ordinário parecem opor-se de uma maneira tão radical – não devem ser tidos senão como produtos da dissociação de uma faculdade única, original, da qual a imagem eidética dá conta e da qual se reencontram traços entre os primitivos e as crianças.
Aceita essa argumentação, visões e alucinações ganham o estatuto de percepções plenas: o visionário efetivamente vê; ou, no automatismo verbal, de fato ouve. Breton exemplificou com Santa Tereza d’Ávila, ao ver sua cruz de madeira transformar-se em crucifixo de pedras preciosas, e considerar essa visão ao mesmo tempo imaginada e sensorial. O exemplo o levou a uma tirada irônica: Tereza d’Ávila pode passar como alguém que comanda essa linha na qual se situam os médiuns e os poetas. Infelizmente, ainda não passa de uma santa.
Felizmente – adotando os critérios de Breton – Blake não foi apenas um santo, porém um poeta. E alguém que teria endossado a afirmação bretoniana de que percepção e representação são a mesma coisa, com o mesmo estatuto de realidade ou o mesmo valor de verdade. Suas visões dos profetas, do irmão falecido, e do restante, correspondiam à faculdade única, original a que se referiria Breton: a superação da dicotomia entre o mundo subjetivo e objetivo, comum aos médiuns e os poetas, e aos místicos. E coerente, se interpretada desse modo, com o monismo de Breton e com o Blake monista: não era o outro lado que se enxergava, pois a separação entre natural e sobrenatural fora superada.
Ao sustentar a realidade de suas visões, Blake formulou uma poética do delírio. Considerá-lo louco equivale a depreciá-lo, e seria injusto, por ignorar que Blake concluiu Jerusalém e The Everlasting Gospel no mesmo ano de 1820: um poema exorbitante em matéria de simbolismo, que pode ser classificado como delirante, e outro bem linear, pura argumentação, sem nenhum personagem de sua mitologia particular. Em The Everlasting Gospel, voltou a proclamar sua anti-ortodoxia; por isso, a relativização dos ensinamentos evangélicos:

A Visão do Cristo que tu vês
É a maior inimiga da minha visão.
A tua tem um grande nariz adunco como o teu,
A minha tem um nariz redondo como o meu.
A tua é a do Amigo da Humanidade;
A minha fala em parábolas aos cegos:
A tua ama o mesmo mundo que a minha odeia;
As portas do teu céu são os portões do meu inferno.
Sócrates ensinava o que Meletus
Detestava como a mais amarga Maldição de uma Nação,
E Caifás era em sua própria Opinião
Um benfeitor da Humanidade:
Ambos lemos a Bíblia noite e dia,
Mas tu lês negro onde eu leio branco.
Cada parte do poema começa com uma pergunta:
Foi Jesus gentil, ou deu ele
Algum sinal de Gentileza? [...]
Foi Jesus Humilde? ou deu ele
Quaisquer provas de Humildade? [...]
Foi Jesus Casto? ou deu ele
Quaisquer Lições de Castidade? [...]
Ensinou Jesus a dúvida? [...]
Foi Jesus Nascido de uma Virgem Pura
De Alma estreita & aparência recatada? [3]

A resposta é sempre negativa: apoiando-se nos evangelhos, mostra que Jesus Cristo não foi gentil, nem humilde, nem casto, nem nascido de uma virgem. Mas o que sobraria do ensinamento evangélico? Para Blake, apenas o perdão: Não há uma Virtude Moral que Jesus Pregasse que Platão & Cícero não houvessem Pregado antes dele; o que então Jesus Pregou? Perdão dos Pecados.
Mas esse perdão, argumentou Blake, sendo uma supressão ou esquecimento, equivale à revogação da Lei mosaica e da ideia de pecado: Pois Virtudes Morais todas começam/ Na Acusação de Pecado.Declarou o pecado contingente a um código, e não ao Pecado Original. Em consequência dessa interpretação de Jesus Cristo como supressor da repressão, o moralismo é diabólico: Pois o que é Anticristo senão aqueles/ que contra Pecadores fecham o Céu/ Com grades de Ferro.
Se tais textos corrigem a ideia do Blake possesso, em surto, a recíproca, normalizá-lo, também é redutora. Loucura e criação não são incompatíveis: Hölderlin escreveu poemas importantes depois de enlouquecer; e Gérard de Nerval teve crises e surtos que resultaram não só nas experiências de efusão do sonho na vida real relatadas em Aurélia, mas em sonetos de As Quimeras. O romântico francês comentou, ironicamente: Recobrando o que os homens chamam de razão, não deveria eu lamentar tê-la perdido?
Interessa a noção de efusão ou transbordamento do sonho de Nerval. Evidentemente, uma coisa é a transcrição de um sonho, ou então o relato de um delírio, e outra sua efusão, que pode resultar em uma epopeia como Vala or The Four Zoas, com suas 120 páginas na edição Keynes, à qual Blake deu o seguinte subtítulo: um SONHO de Nove Noites, intitulando ainda cada uma das suas nove partes como Noite a primeiraNoite a segunda, etc.– reproduzindo a valorização romântica do sonho, tão precursora do surrealismo.
Não só essa epopeia, como os demais poemas extensos de Blake requerem leitura e interpretação através do que se sabe sobre a “lógica” do sonho. Especialmente sobre um dos mecanismos da formação de símbolos, o deslocamento. No sonho, seria possível um enredo no qual Jesus Cristo comparece, em sua condição de salvador, para tornar-se Lúcifer, e este transformar-se em Jeová, que por sua vez é alguém que conhecemos, e logo é um autor que lemos, e ainda algum personagem inteiramente novo, enquanto também vão mudando a cena e as situações nas quais isso ocorre. Há instabilidade dos símbolos: o mesmo símbolo pode significar muitas coisas distintas, assim como vários símbolos significam a mesma coisa. A instabilidade não é “ilógica”: tanto é que Frye, em Fearful Symmetry, foi capaz de construir um diagrama, em forma de matriz, dando conta dessas mutações em Vala or The Four Zoas. Mas isso não permite dizer que esse poema não fosse delirante: delírios têm lógica; mas é uma lógica própria. Nessa e em outras das obras de Blake, há, não só polissemia, mas um universo que, desconhecendo os princípios lógicos da identidade e não-contradição, é multidimensional. Assim como no sonho, os símbolos flutuam em sua relação com o que significam. É seu infinito.
Nesse infinito, apenas a imaginação seria estável. Matriz da criação, equivale à existência do Adam Cadmon, o homem pleno. Conforme a fala dos Sete Anjos a Satã, em Milton:

A Imaginação não é um Estado: é a própria Existência Humana.
Afeição ou Amor tornam-se um Estado quando divididos da Imaginação.
A Memória é um Estado sempre, & a Razão é um Estado
Criado para ser Aniquilado e uma nova razão ser Criada.
Tudo o que pode ser Criado pode ser Aniquilado: Formas não podem:
O Carvalho é abatido pelo Machado, o Cordeiro cai pela Faca,
Mas suas Formas Eternas Existem Para-sempre. Amem. Aleluia!

Ou, em Jerusalem:

Não sei de nenhuma outra Cristandade e de nenhum outro Evangelho a não ser a liberdade de ambos, corpo & mente, para exercer as Divinas Artes da Imaginação, Imaginação, o Mundo real & eterno do qual este Universo Vegetal não passa de uma sombra fugidia, & no qual viveremos em nossos Corpos Eternos ou Imaginativos quando estes Corpos Mortais Vegetais não mais existirem. Os Apóstolos não conheciam nenhum outro Evangelho.

Há uma evidente resposta ao dualismo nessa passagem: a liberdade é de amboscorpo & mente. Talvez se referisse às doutrinas platônicas ao falar em sombra fugidia neste Universo Vegetal, caído. Mas no centro não está mais o logos impessoal, porém a imaginação, entendida do mesmo modo como a celebravam Coleridge e Wordsworth, bem como Novalis e Baudelaire, que a chamou de rainha das faculdades: uma faculdade evidentemente humana, mas também divina; ou então, correspondente ao divino no humano, que em Blake é o plenamente humano. Para os profetas gnósticos e apocalípticos da Antiguidade tardia, o conhecimento, identificado à salvação, era intransitivo, absoluto; mas a liberdade era transitiva: liberdade para sair do mundo e deixar de existir como indivíduo. Para Blake, o conhecimento era intransitivo, total, e também o era a liberdade.
Tanto em sua poesia “simbólica” quanto em O Casamento do Céu e do Inferno, o Paraíso é aqui: pode estar no grão de areia; porém apenas homens e mulheres livres saberão enxergá-lo. E a salvação não é a saída do mundo, mas sua restauração: o novo mundo, anunciado no final de Vala or The Four Zoas:

Onde está o Espectro da Profecia? onde o ilusório Fantasma?
Partiram: & Urthona se ergue dos arruinados Muros
Em toda a sua força antiga para formar a dourada armadura da Ciência
Para a Guerra intelectual. A guerra das espadas agora partiu,
As escuras Religiões partiram & a doce Ciência reina.

Novo mundo; e um mundo arcaico, primordial, no qual, como disse em O Casamento do Céu e do InfernoA altivez do pavão é a glória de Deus. /A lascívia do bode é a dádiva de Deus. / A fúria do leão é a sabedoria de Deus. / A nudez da mulher é a obra de Deus. Pois tudo o que vive é Sagrado. Ou melhor, tudo o que fosse espontâneo, livre do controle pela razão. Daí outra máxima famosa: O caminho do excesso leva ao palácio da sabedoria. Em seu universalismo místico e poético, Todos os homens são iguais, embora infinitamente vários, Assim (e com a mesma infinita variedade) todos são iguais no Gênio poético. No centro do universo de Blake, no lugar de Deus está o homem. Não o homem mundano, porém o Antropos, equivalente ao universo. Suas epopeias são relatos da perda e reconquista da plenitude. Não buscou o conhecimento abstrato, porém a vida. Não aspirava à salvação, porém à liberdade, entendendo-a como liberdade de criar, e não só como a libertação do mundo dos santos e místicos.

NOTAS
1. Na tradução de Alberto Marsicano, assim como as demais citações deste poema.
2. Scholem, Gershom G, On the Kabbalah and its Symbolism, Schockem Books, New York, 1965, pg. 16.
3. Também de Blake, Complete Writings, assim como as citações seguintes.

Claudio Willer (Brasil, 1940). Poeta, ensaísta, tradutor. Contato: cjwiller@uol.com.br. Agulha Revista de Cultura # 67. Janeiro de 2009. Página ilustrada com obras de William Blake (Inglaterra), artista convidado desta edição.



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PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009) | 05 de 10
Organização a cargo de Floriano Martins © 2016 ARC Edições
Artista convidado | William Blake
Imagens © Acervo Resto do Mundo
Esta edição integra o projeto de séries especiais da Agulha Revista de Cultura, assim estruturado:

1 PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)
2 VIAGENS DO SURREALISMO
3 O RIO DA MEMÓRIA

A Agulha Revista de Cultura teve em sua primeira fase a coordenação editorial de Floriano Martins e Claudio Willer, tendo sido hospedada no portal Jornal de Poesia. No biênio 2010-2011 restringiu seu ambiente ao mundo de língua espanhola, sob o título de Agulha Hispânica, sob a coordenação editorial apenas de Floriano Martins. Desde 2012 retoma seu projeto original, desta vez sob a coordenação editorial de Floriano Martins e Márcio Simões.

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