domingo, 25 de outubro de 2015

SEVERINO FRANCISCO | Zuca Sardan, o bardo da poesia patafísica


Durante muito tempo, o vate Zuca Sardan se tornou uma figura tão enigmática que alguns desconfiavam de que ele era um pseudônimo ou heterônimo do também poeta Francisco Alvim. Na verdade, Chico sempre teve a carteirinha número 1 do fã clube de Zuca, que, desde os anos 1950, fazia os seus livrinhos mimeografados, contendo fábulas hilariantes, irreverentes e anárquicas. Chico repassou os pasquins poéticos de Zuca aos integrantes da chamada geração da Poesia Marginal, que, imediatamente, o identificaram como um precursor. Zuca está lançando Ximerix (CosacNaify), livro que mantém a estética de fanzine, mas com um toque de requinte gráfico.
É difícil imaginar que o autor de todas essas diatribes e diabruras seja o diplomata de carreira Carlos Felipe Saldanha. Felipe é filho do arquiteto e pintor Firmino Saldanha, parceiro de Oscar Niemeyer e Lucio Costa nos primeiros esboços da arquitetura moderna no Brasil. Na poesia brasileira não lhe restou outro caminho senão o de ser original. Assimilou Oswald de Andrade, Lewis Carrol e Alfred Jarry para fazer uma poesia patafísica, surreal, dadaísta e delirante. A patafísica, inventada pelo francês Alfred Jarry, é a ciência das soluções imaginárias.
Na passagem dos 80 anos, Zuca não se tornou um poeta grave. Pelo contrário: o avanço da idade lhe acirrou o humor e o ânimo anárquico, como se pode ver nesta entrevista, transformada em ato poético e surrealista.

SF | Existe uma versão de que Zuca Sardan é um dos heterônimos de Francisco Alvim. O senhor confirma ou desmente?

ZS | Eu sou suspeito pra desmentir tão grave questão. Caberia ao Chico confirmar. Se ele insistir em ser um novo Fernando Pessoa, em versão luso-tropical, sofrerá imediata ordem de prisão inquisitorial do Cardeal Sacamuelas. Aconselharei o Chico a, diplomaticamente, convidar o Cardeal pruma ceia e no meio da conversa revelar que ele não é o sulfuroso Doutor Sardan, de quem, aliás, desaprova alguns palavrões e muita molecagem irresponsável inserida em seus poemas. Cá pra nós, é possível que sussurre o Cardeal: “Cheira a comunismo”. Oportunidade pro Chico observar á meia-voz: “Ora, jamais Lênin aceitou entrar no Circo Pery, e Stalin usou um folheto do Zuca pr'acender o cachimbo. Trotzky, mais tolerante com artistas decadentes, revelou, com uma risota pra Frida Kahlo, que esse caráter pretensamente subversivo do Zuca é mera camuflagem de sua irredenta admiração pelas musculosas campônias soviéticas.”

SF | Em que momento você imaginou que poderia ser poeta? Como nasceu o poeta?

ZS | O poeta nasceu por Decreto Divino em 1955, num súbito lampejo que quase me fulminou, quando eu bebericava uma cerveja sentado numa mesa do Bar Vermelhinho. Vários boêmios acudiram pensando que eu houvesse de estalo morrido. Mas vaso marajoara, mesmo falsificado, não quebra assim tão fácil… Eu andava então mortalmente deprimido por minha coleção de fracassos nas minhas carreiras de pintor e desenhista. Costumava pegar telas descartadas por meu pai, consagrado pintor, revirá-las de cabeça pra baixo, e reciclá-las, transformando naturezas mortas cubistas em belas sereias de peitões colossais, cantando manhosamente reclinadas sobre rochedos ao crepúsculo… Até o dia em que meu pai, aconselhado por minha mãe, decidiu não mais me fornecer telas descartadas, que estavam sendo utilizadas pra estimular minha preguiça imemorial.

SF | O senhor vem fazendo uma trilha à margem da margem da literatura brasileira. Como é que se deu a sua formação de poeta? Ser marginal foi uma opção estética ou um destino?

ZS | Sou marginal por força do destino. Meu mental é totêmico. Preciso disfarçar… Melhor pensarem que sou desligadão, do que propriamente louco. Mas, se eu pensar que sou louco, estarei certo de que louco não sou. Porque o verdadeiro louco não sabe que é louco, acha-se normal e considera que os outros sim, é que são os verdadeiros loucos. Ultimamente, a Posteridade já vem querendo me resgatar, mas eu lhe disse: “Sossega; Teteca, aguenta, deixa-me ainda gozar um pouco de meu doce Farniente”… Cosí c'é la vita… A Glória, loira doidivana, de cachos doirados, me esnoba…. Mas a Posteridade, severa morena, de garboso bundão, insistente, segue me telefonando.
Me telefonando…

SF | O que lhe impactou, provocou e abriu perspectivas para o seu trabalho de poeta? Oswald de Andrade? Alfred Jarry? Alice no País das Maravilhas? A Geração de 1945? Como se situou em relação às vertentes da poesia brasileira moderna?

ZS | Alfred Jarry é o genial Grão-Mestre da Patafísica, a quintaessência do humor oculto… Que pouco tem a a ver com o humor explícito folgazão de que o fim último é fazer rir a elite e o povão, com graças, ora mais finas… Ora grossas. O humor oculto tem alguns partidários involuntários que desconhecem suas próprias virtudes transcendentais. Ou, às vezes, fingem não saber. São gênios desconhecidos deles próprios, ou então artistas primitivos, tal o duaneiro Henri Rousseau, e outros vários no mundo inteiro e, especialmente no Brasil, onde foram bem estudados por Lélia Coelho Frota. Mas há artistas não selvagens que cultivam esse humor que eu prefiro chamar totêmico porque seus ancestrais ideológicos são os artistas pré-históricos que criaram capolavoros nas cafundas tenebrosas das cavernas. A razão de suas obras não era estética, mas pairava na intercessão do mágico com o racional, e tiveram seus sucessores na alquimia e astrologia; de que as percepções psíquicas foram enfatizadas na psicologia por Gustav Jung: e nas artes, pela patafísica, pelo futurismo, pelo dadaísmo e pelo surrealismo.

SF | E Oswald de Andrade e Lewis Carrol?

ZS | Oswald nos trouxe da Europa, no início da década de 1920, as ideias revolucionárias do futurismo e Dada, de fundamental importância pra formação do modernismo brasileiro. Lewis Carroll é um mestre absoluto do humor. Amável, mas com secreta profundidade no mundo do outro lado do espelho. Alice e seus fabulosos contra-partes em delirantes diálogos e algumas recitações de poesias paródico-cômicas de que evola inexplicável melancolia. A esses três gênios, preciso acrescentar, na minha galeria de mestres formadores, Salvador Dalí, De Chirico, Marx Ernst, e os gênios familiares, Barão de Itararé, meu pai Firmino Saldanha, prima Ione Saldanha, e meus fraternais amigos Wesley Duke Lee e Chico Alvim.

SF | A sua linguagem se assemelha ao despojamento e à irreverência da chamada geração da Poesia Marginal. Existem diferenças entre a sua linguagem e a deles?

ZS | Eu preparava folhetos de poesia em mimeógrafo desde 1952, fora dos circuitos de editoras e livrarias… E distribuía, em remessa postal. No início dos anos 1970, surgiu a máquina xerox de fotocópia na loja da esquina, o que permitiu que a produção de minha Gráfica Gralha obtivesse uma extraordinária melhora técnica na sua produção, aumentando aceleradamente seu círculo de leitores, do Camelódromo da Rua Senhor dos Passos até Tóquio. Assim, nos anos 1970, graças ao Chico Alvim, fui descoberto pelos poetas marginais, que utilizavam o mimeógrafo, a xerox, e distribuíam seus folhetos, pessoalmente, aos leitores. Fui assim, automaticamente, incluído no movimento, o que se confirmou com minha inclusão na famosa antologia de Heloísa Buarque de Hollanda, 26 poetas hoje, em 1976. Realmente, minha linguagem de despojamento e irreverência é a mesma utilizada pelos demais poetas marginais. A diferença é que, contrariamente à vertente intimista, marcante nas obras dos poetas do movimento, a poesia do Zuca sempre seguiu extremamente impessoal, substituindo-se o “eu” por personagens recorrentes, propiciados pelas contradições existentes na minha cuca dividida, numa dialogação teatralizada.

SF | Qual a distância entre a piada e o humor, a partir de sua experiência na poesia?

ZS | A piada busca utilizar o cômico pra propiciar a boa gargalhada no circo. Propõe-se como um bom relaxante propício a nos fazer esquecer por uns momentos os cavacos do ofício, e as eternas aporrinhações do cotidiano. Além de benéficos efeitos pro fígado, o cômico, quando mais refinado, pode atingir grande valor artístico. O cômico italiano Totó é um belo exemplo de um cômico sublime. Já o humor tende a uma meditação mais profunda sobre os enigmas e mistérios do mundo, como a morte, o amor, a arte, e outros temas insolúveis e obsessivos, com que se debatem os poetas, e, também, os filósofos.

SF | O Conde Lotrak, o Capitão Busto, o Anjo Turbolev, o Cardeal Sacamuelas, os cataplasmas scaravelhos e os morcegos esparadrapos. A sua poesia parece ser palco de uma permanente e furiosa metamorfose de seres e palavras-seres. De onde vem esse teatro frenético?

ZS | O teatro frenético do Zuca provém de uma percepção instintiva do processo de espiralação expansiva do cosmos que vem se acelerando e provocando uma transformação de vertiginosa rapidez de nosso mundo atual, tanto no meio ambiente quanto na humanidade de que o progresso técnico-científico não pode mais ser acompanhado nem controlado por ninguém.
Não há tempo sequer pra se pensar no que está acontecendo, porque quando acabarmos de pensar sobre tal coisa, tal coisa já se transformou completamente e sumiu. Isso é um problema para cultura, que está acostumada a se formar sobre um conjunto de dados. Se estes dados rapidamente se transformam ou desaparecem, substituídos por novos dados, onde vamos assentar nossos conhecimentos ? Estamos sentados num barril rolante, cheio talvez de pólvora, num mundo em permanente e furiosa metamorfose, que se reflete na minha poesia… Com a aceleração, as sucessivas etapas do tempo tendem a se confundir num Presente Contínuo, o Plistoceno, Roma de Nero, Napoleáo, a Segunda Grande Guerra vão sendo comprimidos juntos, de modo que o Conde Lotrak, o Capitão Busto, a Deusa Ishtar, o Anjo Turbolev convivem no mesmo palco de circo.

SF | Afinal de contas, o senhor é desenhista, poeta, trapezista ou diretor de circo?

ZS | Acho que eu não saberia exatamente responder… Em todo o caso, a mim me parece que o desenhista é trapezista, e o poeta é diretor de circo. Dada a fulminante velocidade de transformação do mundo contemporâneo, uma única voz não pode mais dar conta do recado. O poeta tem de se multiplicar em vários personagens e criar um circo de que ele é um diretor que tem de lidar com uma trupe sumamente rebelde e imprevista, seus atores-personagens são capazes de mudar o enredo a qualquer momento, sem darem maiores explicações. O circo da vida não faz outra coisa. E entra assim o enredo e a narrativa na poesia. Mas a prosa tem uma narrativa explícita e direcionada, ao passo que a narrativa poética é implícita e, por vezes, caótica. Mais chegada ao circo, com sua orquestra aprontando música de fundo, às vezes, com o apoio do órgão de Baco. A rainha toca pratos, e o Rei assovia …

SF | A era da comunicação virtual é hostil ou pode favorecer à poesia?

ZS | A era da comunicação virtual é decididamente a favor da poesia. A própria linguagem geral da correspondência eletrônica tende, pela sua radical abreviação sintática e velocidade de respostas, a uma escrita poética.
Enquanto a prosa se derrama em circunlóquios, a poesia, utilizando qualidades de sonoridade da palavra, e espacialidade do texto impresso, tende à brevidade, o que a viabiliza ampla difusão pela web, numa folha virtual, ou também, com fácil inclusão num texto mínimo de correspondência. Coisa impossível de se fazer com um romance, com suas centenas de páginas. A poesia ganha assim, com destinações imprevistas, intermináveis ciclos de difusão.




[Correio Braziliense. Brasília, sábado, 12 de outubro de 2013.]








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