domingo, 25 de outubro de 2015

PEDRO SPREJER | Mistérios de Zuca Sardan


De tão isolado e ausente nos circuitos artísticos, houve quem pensasse que ele não era real. Especulou-se que o enigmático Zuca Sardan, poeta, desenhista, inventor de fábulas e seres imaginários, seria ele mesmo uma invenção desbaratada de outro artista. Durante mais de 40 anos, seus folhetos e livretos artesanais circularam por aí, cada vez mais disputados, mas ele simplesmente não aparecia, não dava as caras. Por onde andaria Zuca Sardan?

Aqueles que forem à Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP), em julho, poderão, enfim, ver o rosto do homem que, por muito tempo, quase não existiu. Vivendo há mais de duas décadas na Alemanha, Zuca voltará ao Brasil para participar de uma mesa ao lado do poeta Nicolas Behr. Além disso, ele lança, no dia 15 de junho, o livo “Ximerix: cinco cadernos de remix rapz kolax” (Cosac Naify). Como o próprio nome diz, trata-se de uma colagem remixando antigas e novas ideias em forma de poesias e ilustrações.
Será uma oportunidade para a obra de Zuca ser, enfim, difundida em maior escala no Brasil:

— Eu sempre quis publicar, mas o tipo de arte que eu fazia não era aceito. As editoras não se interessavam — explica o poeta por telefone, falando de sua casa em Hamburgo. — Acabei virando marginal e assumindo isso. E, como sou teimoso, não parei de fazer as minhas coisas e não parei de fazer à maneira marginal.

Único em sua arte e no modo como a produz, Zuca está completando 80 anos vividos, em grande parte, ao largo do mercado editorial. Publicou poucos livros, mas fez mais de 300 folhetos independentes, distribuídos à mão e enviados por correio para conhecidos. Começou sua produção independente nos anos 50, quando descobriu por acaso o mimeógrafo — um ancestral das impressoras movido à manivela — e suas possibilidades.

— Um belo dia encontrei a ferramenta no escritório do meu pai e comecei a brincar. Fui fazendo folhetos e distribuindo. Tirava de 15 a 20 exemplares de cada, só isso. Quando surgiu o xerox, passei a mandar cópias de desenhos e poesias. Até chegar o e-mail, agora faço uns lampejos de poemas pequenininhos e envio.

No fim dos anos 70, Zuca publicou, por conta própria, três livros, encomendados a uma gráfica de Washington. Fez 100 exemplares de cada.

— Por muito tempo, aqueles foram os best-sellers — brinca, terminando a frase com sua risada contagiante que, em algum ponto, se converte em um suave suspiro.

Vivendo fora do Brasil desde o início da década de 60, quando se tornou diplomata, Zuca Sardan permaneceu distante dos polos culturais do país. Como quase ninguém conhecia aquele obscuro poeta pessoalmente, alguns chegaram a especular que Zuca seria, na verdade, um pseudônimo de outro artista. Os dois suspeitos principais eram o também poeta e diplomata Francisco Alvim e o pintor Wesley Duke Lee, maiores amigos e ferrenhos divulgadores de sua obra na poesia e nas artes plásticas.

— Achavam que eu era o heterônimo de um pintor em São Paulo e de um poeta no Rio. Acho que até o Millôr pensava que eu era o Wesley — conta Zuca. — Levou um tempo até o pessoal me conhecer de fato.

Na década de 70, os folhetos de Zuca distribuídos por Francisco Alvim chegaram às mãos dos chamados poetas marginais. Iconoclastas avessos ao cânone, cheios de entusiasmo e também à margem do mercado editorial, eles fabricavam seus próprios livretos em mimeógrafos. Exatamente como Zuca começara a fazer duas décadas antes. Apesar de nunca aparecer em carne e osso, tornou-se um membro do grupo, “pegou o bonde andando”, como gosta de dizer.

— O Zuca era um livre atirador que mandava aqueles folhetos engraçados lá do exterior — lembra o também poeta Chacal. — Ele utiliza as ilustrações para fazer algo único. O trabalho dele é o oposto da poesia besta que aspira ao sublime.

Em 1976, Zuca teve seus poemas publicados na coletânea “26 poetas hoje”, organizada por Heloísa Buarque de Hollanda — uma seleção com os nomes mais representativos daquele momento, que incluía também Chacal e Francisco Alvim. Foi o primeiro reconhecimento por parte da crítica especializada. Entrou para valer no bonde dos marginais, tornando-se um “fantasma por trás das cortinas”. Porém, apesar do humor e do despojamento da forma, enxerga diferenças entre sua obra e a de outros poetas que pertenciam ao grupo:

— Eles me adotaram e fiquei sendo também um marginal, mas a poesia deles era, geralmente, algo pessoal, com muitos sentimentos, influenciada pelo romantismo. Na minha poesia é o contrário, não existe o eu. É o poeta olhando o mundo, enquanto dez mil personagens vão aparecendo e dialogando.

Zuca nasceu Carlos Felipe Alves Saldanha, em 1933, filho único do arquiteto e pintor Firmino Saldanha, colega de Oscar Niemeyer e Lúcio Costa nos primeiros traçados da arquitetura modernista. Menino desajeitado e “canhotão” — um dos adjetivos que criou para se definir — começou a desenhar e pintar cedo. Queria fazer arte figurativa, o que, na década de 40, significava remar contra todas as correntes artísticas:

— Quando comecei a pintar, já fui jogado fora. Eu estava fora de todos os contextos. Não havia espaço para o figurativo. Já fiquei marginal logo de saída e continuei assim desde então.

Um dia, aos 21 anos, cansado de “levar chumbo” nos salões de pintura, simplesmente bateu na mesa e decidiu que seria poeta.

— Comecei do zero absoluto, fui autodidata. Eu imitava o Baudelaire, misturando com os tangos argentinos. Era uma coisa muito naïf.

Do pai, herdou o gosto pelo desenho e pelo pensamento espacial. Tornou-se arquiteto, mas logo viu que era melhor construindo versos. Ficou à deriva por alguns anos, mas encontrou uma tábua de salvação abraçada por outros artistas: o Itamaraty.

— Minha cabeça passou a ter dois lados. Em um está o poeta que vive a fantasia e o inconsciente como realidade. No outro, quem manda é o Conselheiro Saldanha, o diplomata, que funciona mais no esquema racional científico.

Por influência da prima, a pintora e escultora Ione Saldanha, descobriu o iconoclasta francês Alfred Jarry e sua célebre peça “Ubu Rei”, iniciada com a palavra merde. Um encontro marcante:

— No início, fiquei escandalizado. Poesia para mim era uma arte séria. Mas, aos poucos, o humor foi ganhando espaço na minha arte até se tornar um eixo central. Não o humor cômico-satírico de fazer piada, ridicularizar, mas o verdadeiro humor, que faz você repensar a realidade a partir de novos pontos de vista — explica Zuca.

Com as portas da percepção abertas, incorporou múltiplas influências, que vão dos surrealistas aos mitos pagãos e à música eletrônica, sempre passando pelos mestres Apollinaire e Mallarmé. Assistiu, estupefato e maravilhado, a uma série de personagens fantásticos — como os “ratos carrapatos”, “cataplasmas scaravelhos” e “morcegos sparadrapos” do poema “Rádio Fanho” — invadirem os seus poemas e desenhos.

— Esses seres simplesmente aparecem. Eles existem em mim, são sentimentos, tendências minhas que assumem figuras de personagens. Eles vêm, fazem suas confusões, mas sou eu quem monto o espetáculo.

Após o reconhecimento na década de 70, seus poemas e ilustrações continuaram restritos a um circuito pequeno de admiradores, chegando por telegramas, de mão em mão, nas páginas de revistas de poesia, como “Bric-a-Brac” e “Inimigo Rumor”, no Brasil, e em publicações estrangeiras. Fiel ao modo marginal de produzir e distribuir sua obra, Zuca segue entusiasmado, desenhando, escrevendo, sentindo-se um poeta “mocinho”, sempre em formação:

— Fiquei muito isolado e meu mundo interior se valorizou muito. É um mundo muito divertido, é um humor muito grande lá no meu circo. Humor e teimosia são as coisas que me levaram através de todo esse tempo e vão continuar a me levar.






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