segunda-feira, 5 de outubro de 2015

LUIS ESTRELA DE MATOS | Sérgio Buarque de Holanda e Raízes do Brasil: a origem de um clássico


Talvez uma das tarefas mais difíceis para o pensamento seja o de tentar explicar as razões que tornam um livro, um quadro, uma escultura, uma peça musical, fundamentais na vida cultural dos povos. Certa vez, Antonio Candido afirmou que um dos trabalhos do crítico, e historiador, Sérgio Buarque de Holanda pertencia a esse gênero específico de produto cultural. Tratava-se, segundo o autor de Literatura e Sociedade, de “um clássico de nascença”. Acredito, que pelo fato de vivermos dentro de uma cultura ainda muito jovem (em termos de Ocidente, História Ocidental etc.), não nos é muito fácil penetrar na dimensão histórico-conceitual de uma palavra (clássico) tão carregada de significado, tão enraizada. Ou melhor, talvez por nossa tradição ibérica de séculos e séculos de Retórica, clássico soe aos nossos ouvidos, de hoje, como algo congelado, aquilo que não se deve tocar, uma espécie de objeto sacrossanto da alta cultura. Não creio que fosse esse o sentido que Antonio Candido tivesse em mente ao fazer tal afirmação, hoje também clássica, sobre Raízes do Brasil.
Existe um ensaio do poeta, e crítico, T. S. Eliot, de 1945, intitulado “o que é um clássico?” que pode nos oferecer uma luz sobre a questão aqui abordada. Embora o autor procure debruçar-se sobre a importância de Virgílio para a Civilização Romana, algumas de suas ponderações têm aqui a sua pertinência.
Em certo trecho do referido ensaio Eliot discorre:

Ocorre que a história de Roma foi tão grande, o caráter da língua latina tão poderoso, que, em determinado momento, um único poeta estritamente clássico tornou-se possível, embora devêssemos nos lembrar de que isso exigiu que tal poeta, e toda uma vida de trabalho da parte do poeta, extraísse a obra clássica a partir da matéria de que dispunha.

Desde que se guarde as devidas proporções, e singularidades históricas, seria interessante compararmos com o contexto aqui em foco. Primeiramente, o amor pela Língua, desde que por esse amor não se entenda a pretensa hegemonia parnasiana e vizinhanças olavobilaquianas. Qualquer leitor que tenha avançado, com atenção, uma única página de Raízes do Brasil percebe, de imediato, que está em presença de um grande estilista. Uma escrita forte, ágil, capaz de situar um grande conjunto de problemas e desdobrá-los em sínteses admiráveis. Vale citar um único fragmento dessa prosa ensaística tão ímpar em nossa cultura historiográfica:

A vida parece ter sido aqui incomparavelmente mais suave, mais acolhedora das dissonâncias sociais, raciais, e morais. Nossos colonizadores eram, antes de tudo, homens que sabiam repetir o que estava feito ou lhes ensinava a rotina. Bem assentes no solo, não tinham exigências mentais muito grandes e o céu parecia-lhes uma realidade excessivamente espiritual, remota, póstuma, para interferir em seus negócios de cada dia.

E estilo, naqueles anos, parece ter sido uma constante de grande parte dos escritores, principalmente aqueles mais ligados a Semana de 22. Além de Sérgio Buarque de Holanda, lembro de Oswald de Andrade, Murilo Mendes, Mário de Andrade, entre outros. Cito os artistas pois o autor aqui estudado esteve diretamente envolvido nessa revolução artístico-cultural que foram aqueles anos agitados. Inclusive trabalhando na famosa revista Klaxon, e fundador da Estética, juntamente com Prudente de Moraes Neto.
Outro aspecto importante, decisivo para seu ofício de historiador, foi sua viagem à Alemanha, nos anos negros de 1929-31, como correspondente de O jornal, de Assis Chateaubriand. Através de um distanciamento positivo, S.B. de Holanda teve a possibilidade de analisar a história do Brasil de maneira mais totalizante, mais, por assim dizer, compreensiva, típica do olhar de um grande historiador. Na verdade, todo um esforço de uma teoria sobre a América, que desembocaria, em parte, em Raízes. Lembro-me aqui de Tocqueville, historiador que, através de uma curta viagem por terras americanas (1831-32), escreveu páginas inesquecíveis, porque ainda atuais, em sua obra, A democracia na América.
Em nosso país os anos 20 e 30 repercutem, enquanto momento privilegiado, pela alta voltagem de uma prosa ensaística da melhor qualidade. Além de Raízes do Brasil, não podemos deixar de citar outra obra clássica, Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre. Alguns anos antes a inquietante obra de Paulo Prado,Retrato do Brasil, publicada em 1928. Esses três trabalhos, cada um mantendo suas especificidades próprias, abriam novas e fecundas perspectivas para os estudos sobre o Brasil. São clássicos também no exato sentido de que não podemos entender nossa história, nossa cultura, sem tocarmos em algum aspecto por eles levantado. Há sempre um ineditismo na leitura de um clássico, o leitor sempre poderá experimentar algo inédito no já visto.
Lembro-me aqui do toque preciso de Ítalo Calvino na obra Por que ler os clássicos, lançada em 1991 na Itália:

Os clássicos são livros que, quanto mais pensamos conhecer por ouvir dizer, quando são lidos de fato mais se revelam novos, inesperados, inéditos.

Antes mesmo de entrar um pouco mais no cenário específico que envolveu esses autores da cultura brasileira, retomemos as palavras de Eliot. Assim como o poeta Virgílio, Sérgio Buarque de Holanda conseguiu extrair da “matéria de que dispunha” (nas palavras do autor de Four quartets) o clássico Raízes do Brasil. O autor paulista reuniu, soube amalgamar, toda uma tradição historiográfica, todo um passado colonial e uma recente experiência republicana nas páginas de Raízes. Há nesta obra um verdadeiro salto, um momento de auto-consciência historiográfica indiscutível. Livro que abre novos horizontes teóricos, novos alcances metodológicos. Obra de rara e excepcional fusão entre uma sociologia compreensiva (ninguém havia lido Weber de maneira tão clara e pessoal) e história cultural (um pouco no gênero da Escola dos Annales). Erudição a serviço da produção de sentido, se assim posso me expressar. Há uma plasticidade no pensamento de S. B. de Holanda que torna suas ideias muito mais fecundas por aquilo que apontam, que desenham, do que propriamente pelo que está escrito.O espírito de ensaio permeando a construção da obra. Lembra, em certo sentido, Michelet ao se debruçar sobre a Idade Média. O autor de Monções é um historiador de grande poder de imagens. E pelas imagens consegue-se vivenciar o tempo naquilo que ele tem de eterno, de perene. Em Raízes do Brasil muitas vezes somos transportados ao nosso velho e praticamente desconhecido passado colonial. Uma história viva aliada a um sentido de erudição muito raro entre nós.
Nas palavras de Antonio Candido:

De todos os livros de Sérgio, Raízes do Brasil é o único do qual se pode dizer meio “alemão”, contrastando com os estudos históricos seguintes,Monções e Caminhos e Fronteiras.

E hoje, mais do que nunca, o distanciamento histórico nos confirma que se tratava mesmo de uma obra clássica. Clássica porque fonte, aquilo que jorra, que ilumina tanto o passado que acaba por dar pistas para se entender o presente. É claro que o autor, S. B. de Holanda, desconhecia tal ordem de acontecimento. Ainda que sua genialidade e força argumentativa se revelassem desde idade precoce, seus primeiros passos foram no jornalismo. De qualquer forma, Raízes ultrapassava, em muito, os resultados esperados.
Voltando a Eliot, em seu famoso ensaio, o poeta faz a seguinte observação:

E, naturalmente, Virgílio não pode saber que aquilo [a obra clássica] era o que ele estava fazendo. Ele foi, se algum poeta chegou a sê-lo um dia, agudamente consciente do que estava tentando fazer; a única coisa que não pôde almejar, ou não sabia que estava fazendo, foi escrever uma obra clássica, pois é somente graças a uma compreensão tardia (grifo nosso), e em perspectiva histórica, que um clássico pode ser reconhecido como tal.

E já que a perspectiva histórica nos auxilia rumo a uma leitura mais verticalizada sobre uma obra, devemos recordar certos acontecimentos que se entrelaçam com o próprio surgimento desse clássico chamado Raízes do Brasil. A Revolução de 30 que, em tese, trazia novas possibilidades ao necrosado processo político-partidário da República mais-que-velha mostrou, logo nos primeiros anos da década, sua verdadeira face. Em função de uma crescente descrença na força do liberalismo tradicional que pretensamente se instalava, posições políticas se polarizam (integralismo X comunismo) e o quadro social se apresenta em toda a sua dramaticidade. Raízes vive todo esse endurecimento da vida brasileira, ainda que superficialmente a obra se mostrasse um tanto quanto distante dos problemas mais imediatos dos homens naqueles anos. Mas a força teórica vinha para se impor, e o ensaio trazia à tona a possibilidade de se ler o presente (positivismo, caudilhismo, militarismo etc.) através da busca criteriosa das experiências e vícios do mundo colonial.
Assim como Virgílio, quero crer que Sérgio B. de Holanda tinha aguda consciência do que estava ambicionando realizar e não é por acaso que ao adentrarmos nos dois últimos capítulos de Raízes (novos tempos e nossa revolução) uma espécie de instantâneo fotográfico dos tempos modernos se revele com todos os tons da própria vida. Ali temos um todo: oligarquias, ditaduras, bacharelismos e tantos outros males de origem (parafraseando Bomfim). E ainda faltava algum tempo para as experiências não menos traumáticas no tecido histórico como o populismo mais arraigado, o golpe de 64, o tecnocracismo enquanto capítulo atualizado de um Positivismo mal digerido e toda a militarização da vida civil mais recente. Enfim... a terra do pau-brasil em todo o seu esplendor. Daí o lugar, em meu entender, inquestionável de um Oswald de Andrade. Nesse sentido há que antropofagizar a experiência brasileira. Caso contrário, os bispos sardinhas colonialistas ou pós-modernos nos massacrarão com seus rosários e catecismos, sua Eloquência e Retórica francamente ibéricas.
Em relação aos positivistas as linhas de Sérgio Buarque de Holanda talvez tornem o meu texto um pouco mais claro:

Mas os positivistas foram apenas os exemplares mais característicos de uma raça humana que prosperou consideravelmente em nosso país, logo que este começou a ter consciência de si. De todas as formas de evasão da realidade, a crença mágica no poder das ideias pareceu-nos a mais dignificante em nossa difícil adolescência política e social. Trouxemos de terras estranhas um sistema complexo e acabado de preceitos, sem saber até que ponto se ajustam às condições da vida brasileira e sem cogitar das mudanças que tais condições lhe imporiam.

Vale observar que essa ideia de transplante de “um sistema complexo e acabado de preceitos” já havia sido detectado quando de suas primeiras resenhas, nos anos 20, na Revista do Brasil. No artigo intitulado “Ariel”, Buarque de Holanda afirmava:
No Brasil o hábito de macaquear tudo quanto é estrangeiro é, pode-se dizer, o único que não tomamos de nenhuma outra nação. É, pois, o único traço característico que já se pode perceber nessa sociedade em formação que se chama o povo brasileiro.
É claro que a análise feroz e o posicionamento abertamente crítico de um rapaz de 18 anos chamou logo a atenção de nosso acanhado meio intelectual, principalmente por ser um meio extremamente dependente, naqueles anos, do fluxo de ideias emprestadas das capitais europeias. Vale lembrar aqui também a obra Triste fim de Policarpo Quaresma (1915) onde Lima Barreto, através de um major nacionalista, protagoniza uma situação que era corrente naqueles difíceis anos, qual seja: onde estão as ideias próprias e genuínas de uma cultura que se dizia brasileira? Indo além de uma leitura superficial da defesa do tupi-guarani por parte do velho Quaresma, não seria possível estabelecer aqui uma teia de relações com as questões de fundo de um momento histórico que vivenciávamos? Para onde levávamos o nosso país? O que queríamos do Brasil? Até que ponto não éramos apenas macaqueadores de ideias mal, e rapidamente, engolidas? Penso que de alguma forma existe um terreno comum aos campos histórico e literário que merece ser melhor investigado. E, mais do que isso, penso que a experiência estética do fazer literário dos modernistas ajudou na desenvoltura e no teor estético, explicitamente estilístico, que permeia a grande obra Raízes do Brasil. E isso independentemente do estado de espírito em que se encontrava S. B de Holanda nos anos 30 com os caminhos e descaminhos da cultura e da história brasileira. De qualquer forma, e Antonio Candido afirma isso claramente, as conquistas dos surrealistas (inconsciente, escrita automática, entre outras) tiveram repercussão tanto em Prudente Moraes Neto quanto no próprio autor de Visão do paraíso.
Mas voltando ao trecho citado do próprio Sérgio B. de Holanda, qual seria, então, a saída para a nossa menoridade intelectual e histórica? Para onde deveria seguir o destino histórico, se assim posso me exprimir, de um país (não haveria aqui uma filosofia da história sutilmente esboçada no pensamento dele?) ainda severamente amarrado por suas mazelas coloniais? Raízes do Brasil é uma tentativa lúcida e fecunda de responder essas e outras perguntas; perguntas que o autor se fazia lá pelos anos 20 e que atingem um ponto crucial em seu percurso intelectual quando os ventos “libertários” de 30 desenhavam, ainda que na superfície, novas possibilidades histórico-sociais para o povo brasileiro. Outras tentativas de resposta também se fizeram sentir naqueles anos, como já pontuamos anteriormente. Gilberto Freyre e Paulo Prado, ambos tentando levantar hipóteses plausíveis, ou não, sobre os primórdios de uma colonização feroz e múltipla que se configurava em espasmos e torções de pequenos ajuntamentos humanos, que um dia alcançariam o título de cidades e capitais.
Uma das possíveis respostas, bastante original por sinal, que Raízes do Brasil trazia para nosso momento histórico-social se apresentava em linhas bastante radicais. Numa fase de nosso pensamento, marcado ainda por teorias que remetiam aos velhos problemas de raça/cultura, Sérgio B. de Holanda apontava novas fronteiras conceituais, mais maleáveis, porém bem mais eficazes na tentativa de explicar o Brasil. Rompimento definitivo, diga-se aqui com todas as letras, com qualquer forma de evolucionismo e defesa consciente da psicologia social e da história da cultura, campos de força bem mais instigantes para as formulações de ordem interpretativa que o autor procurava. Eis uma chave: interpretação contra dogma, história para acrescentar possibilidade de se ler o real e não esquemas totalizantes e asfixiadores, tão comuns na prática dos historiadores. Seguindo o próprio Antonio Candido, Raízes é a dissolução última de nossas raízes ibéricas, como forma de se começar e afirmar algo de novo em nosso difícil e conturbado processo histórico. Urbanismo e cosmopolitismo seriam as coordenadas abertas aos avanços das classes médias, principalmente aquelas oriundas dos segmentos da imigração não-ibérica. Todos esses fatores compunham o arcabouço de esperanças que o pensamento de Sérgio B. de Holanda depositava nas páginas de Raízes do Brasil.  



***

Agulha Revista de Cultura # 61. Janeiro de 2008. Página ilustrada com obras de Otto Apuy (Costa Rica), artista convidado desta edição.






Nenhum comentário:

Postar um comentário