segunda-feira, 5 de outubro de 2015

CONTADOR BORGES | Sobre a santa nudez


Leio em Charron que se os homens nascessem vestidos, como os animais, não teriam nenhuma razão para se despirem, levando-se em conta os riscos de saúde e a vergonha de se exporem sem o manto natural.
E os santos? A santidade é nua em essência.
Santo Agostinho temia a carne das palavras mas amava seu clarão. O problema era a volúpia em seus olhos: o corpo quer o lugar do espírito no reino dos sentidos. Agostinho provou das brasas da carne e suas aflições. Frequentou sarjetas e dormiu à sombra dos bordéis antes de aventurar-se pelos meandros da fé.
São Francisco odiava as vaidades de vestuário. Por que não ser como os pássaros e as flores? A nudez é livre como o ar.
Talvez o desnudamento tenha se tornado erótico a partir do momento em que o homem percebeu a oscilação simbólica entre natureza e artifício. O indivíduo deve ter tomado um choque ao sentir-se arrebatado pelas forças obscuras de si mesmo. Sua cobra em riste e, na falta dela, a gruta úmida e aconchegante, oferecendo pouso, eram signos por demais ostensivos para não desviar a atenção das pobres criaturas do trabalho. O homem então cobriu-se com a pele dos animais: a roupa feita do despojo alheio, este suplemento, a morte "prêt à porter". Com isso o ato de despir passou a dar ênfase ao corpo e a valorizá-lo (por temê-lo) oculto sob as vestes.
O homem das cavernas, em algum momento, viu-se enrolado como um Laocoonte em serpentes ensandecidas. A forma desta besta sinuosa não é no imaginário universal um dos emblemas mais antigos da volúpia? Daí, volta e meia, os motivos "pele-de-cobra" serem evocados pela indústria da moda ou reeditados de suas sobras pelo kitsch em meio às cinzas deste Fênix incorrigível chamado capital. Estampam adereços e peças de roupa, só deixando o circuito para retornarem em outra temporada com guizos ainda mais vibrantes.
Há muito tempo a roupa tornou-se signo do próprio homem, não precisando dele para designá-lo. Os homens se despem para o bem e para o mal, inocente ou maliciosamente, apaixonados ou resignados. Mas e os santos, qual a sua relação com a roupa?
O que ocorre no santo desnudar-se não é o despir "para baixo" (em direção aos genitais) do strip-tease, mas "para cima", no sentido anagógico do termo:elevação. Assim, a Santa Escritura eleva o espírito aos objetos celestes e divinos da vida eterna que os santos gozam no céu. Despir-se é rasgar aos olhos de Deus um véu inexistente. Não é o corpo que se despe, mas seus atos: o sujeito se humilha para expiar-se de seu lado bestial. Nada se revela porque nada se esconde: pele é véu e véu é pele. Não foi lambendo o sexo que os homens se santificaram, mas feridas, as seculares flores do sofrimento humano. São João da Cruz dá testemunho disso, assim como Flaubert em São Juliano, o hospitaleiro. As práticas ascetas viram o erotismo de cabeça para baixo.
"Estou na lareira do meu corpo", dizem os libertinos de Sade. Os santos não, se voltam para o outro. Amar ao próximo é no fundo morrer melhor de si mesmo. O corpo nu da santidade é um corpo sem Eros. Sobre ele reluzem os frisos da Ética, sua moldura e auréola. Amar o outro em excesso leva o santo ao delírio. Nesse ponto, o corpo é um estorvo. E já que seu corpo o impede de chegar a Deus, ele deve ser castigado, abolido. A negação de si mesmo torna o outro a escada ideal para o encontro celeste com formas mais grandiosas. É um salto do espírito por sobre os peçonhentos pélagos humanos, suas surpreendentes e incômodas "partes baixas".
A santa nudez veste-se de amor ao próximo. Este despojamento é um sacrifício. O corpo não é livre para gozar, mas para sofrer. A nudez é o estado mais próximo da iminência do prego em Cristo, cordeiro insinuando-se para a faca. O corpo que não goza é feito para servir. E isso Sade demonstra como ninguém. As vítimas não foram feitas para gozar, mas para servir ao gozo supremo dos devassos. As vítimas só gozam na dor, como os santos. Há, pois, algo de "Imaculada Conceição" em cada heroína virtuosa de Sade, suas vítimas preferenciais. Sujeita aos infortúnios da virtude, Justine é a mais séria candidata à canonização dentre as grandes personagens da literatura universal. Mas que orgias não fariam os devassos da terra em dia de Santa Justine!
Os libertinos almejam um gozo imenso que a imaginação promete, gozo infinito, mas impossível de se conceber sem a ideia de Deus. É condenando o divino, execrando suas ações e negando sua existência que Sade vai buscar na natureza humana uma compensação extrema. Há, pois, que hiperbolizar algo já grandioso em si mesmo: o orgasmo. Este depende do martírio do próximo. Tal gozo se multiplica na subtração do outro.
Nas igrejas, os cantos do medievo suprimem todos os instrumentos. Agostinho, Ambrósio e Gregório preferiam as cordas vocais. Só o aparelho humano (e não seus artefatos sonoros) é digno de devoção ao criador. O canto em uníssono neutralizava os enlevos do corpo. Os homens tornavam-se um gigantesco fole de fé ressonante.
Quanto aos desvios corporais, havia que se precaver contra a imaginação. Tomás de Aquino alerta contra este perigo denominado delectatio morosa, quando a alma se dirige voluntariamente às imagens proibidas retardando-se na sua contemplação. Na Idade Média os pintores relegaram o erotismo ao inferno. Mas, como se sabe, em se tratando do olhar e sua relação com as imagens, a sensualidade espontânea, feliz ou sinistra, brota onde menos se espera.

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No Batismo de Cristo, de Verrocchio, o filho de Deus encontra-se em trajes de banho, toalha listrada à cintura tipo "tomara-que-caia". Caminha em um riacho entre as pedras, os tornozelos beijados pela água. Nenhum erotismo se insinua.
Em Cristo e os pecadores penitentes, de Rubens, uma prostituta inclina-se envergonhada diante de Jesus, disfarçando os seios com as mãos. O pintor ilumina seus movimentos realçando a figura em contornos dourados, na mesma cor dos cabelos. A mulher quer redimir a carne. Jesus representa a nudez triunfante, o peito escudando as setas íntimas dos desejos espúrios.
Morales mostra Jesus menino manuseando o seio esquerdo da Virgem, mas sem qualquer malícia. No casaco, ligeiramente entreaberto, reluz uma nesga do seio divino que dará de beber ao pequeno Deus esguichando-lhe na boca gotas peroladas do leite magnífico.
Um anjo puxa a roupa da Santa Inês de Ribera, desnudando-lhe parte da perna; a soberba perna se apoia em um pé coruscante que dedilha o ar, ele mesmo quase etéreo, irreal. Seus dedos, finíssimos, têm forma de harpa equilibrando o corpo. O movimento da santa é música. Mas não qualquer uma. É música que ninguém pode ouvir por ser música da forma. Música só para os olhos. No entanto, para olhares mais ousados, mesmo que o manto caísse por terra, toda nudez seria salva pela imensidão dos cabelos, jamais cortados, uma floresta negra indevassável.
E os maneiristas? Não distorciam em analogia aos volteios da chama? Não prendiam o ar (o sagrado) da pintura com espirais de fé, sinuosíssimas? Anamorfose caprichosa: ótica do espírito, atalho para Deus.
Há um halo de erotismo na Madonna del collo lungo. Mas trata-se de um Parmigianino, um apaixonado pelo estilo e mestre da distorção. O braço da santa acolhe o infante que nele gira, o rosto e seu sentido mergulhando serenos na inocência protetora do sono. As coxas ínfimas do menino, entreabertas, exibem um minúsculo pênis, tão inofensivo quanto santo. Dir-se-ia que o pintor apenas roçou na tela o pincel visando leveza. Pensou na perfeição dos detalhes, mas esqueceu de completar o contorno, deixando o sexo indefinido: uma interrogação rosada entre as pernas.
Por fervor, a arte religiosa maneirista retorcia os corpos em forma de chama (furia della figura), para assim expandirem em direção a Deus. Tal procedimento também é conhecido como serpentinata, por lembrar uma cobra viva em movimento, mas em convulsão benigna, sem qualquer alusão ao sexo demoníaco. O Cristo morto com anjos, de Rosso, participa deste paradigma. Suas longas, luminosas e bem torneadas coxas formam uma chama milagrosamente forte, imponente. O cristo está nu, a zona pubiana ligeiramente à vista, mas o pênis guardado na sombra. De novo, um erotismo sombrio, contrastando com a exuberância do corpo iluminado, poderoso e viril, apesar de morto.
Em suma: a nudez mais santa é a mesma da chama ou serpente que estremece no ar em fúria e golpeia a carne como um chicote.



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Agulha Revista de Cultura # 10. Março de 2001. Página ilustrada com obras de Otto Apuy (Costa Rica), convidado especial desta edição.





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