segunda-feira, 5 de outubro de 2015

CLAUDIO WILLER | Paulo Mendes Campos, um poeta da poesia


A crônica é tida como gênero menor. No entanto, sendo o principal ponto de encontro entre literatura e jornalismo, o espaço mais propriamente literário na imprensa periódica, ensinou muita gente a ler, e certamente estimulou alguns a escrever. Tivemos poetas que também foram cronistas, a exemplo de Drummond, e, reciprocamente, cronistas poéticos, como Paulo Mendes Campos. Sua coletânea O amor acaba - Crônicas líricas e existenciais (Civilização Brasileira, 1999 e reedições) começa com uma exuberante prosa poética e termina com epigramas irônicos. No prefácio, seu organizador, Flávio Pinheiro, promete mais edições de sua obra; subentende-se, assim, que na sequência viria também sua poesia propriamente dita. Enquanto esta não chega, retomo algo que escrevi em 1991, logo depois de sua morte (no caderno Ideias do Jornal do Brasil). Lá, observava que, já no primeiro dos poemas de O domingo azul do mar (obra incluída em Poemas de Paulo Mendes Campos, Civilização Brasileira/INL, 1979), intitulado Os domingos, encontramos argumentos em favor da sua qualificação como poeta importante. São imagens de uma poesia visual, descrições de paisagens fantásticas onde as pétalas caíam no dorso das campinas, e nos deparamos com os vidros fáceis das horas preguiçosas, enquanto, entre outros paradoxos, a noite aclarava sofrimentos.
Imagens como essas lembram Pierre Reverdy, o primeiro Paul Eluard, surrealista lírico, ou um Murilo Mendes menos agônico. São recorrentes em Paulo Mendes Campos, assim como o domingo de seu poema-título, especialmente em Os dias da semana:

Só o domingo não é um dia da semana,
Só o domingo é
Alto e anterior ao calendário,
Só o domingo pertence
Ao que é invisível ao homem,
Só o domingo se põe como um cavalo vermelho
Sobre as nuvens do Rio de Janeiro.

Este poema está em uma das partes de O domingo azul do mar intitulada O tempo da palavra, assim mostrando que o dia não-útil da semana é uma metáfora do "outro tempo", dos instantes privilegiados da poesia, bem distantes do prosaico dos dias úteis, embora neles a poesia também se faça presente: Quinta, quinta há de ter insetos na serra, pois Os dias da semana são crivados de enigmas.
Como poeta, e como personagem e protagonista de sua própria obra, vivendo o que escrevia e escrevendo sobre sua vida, Paulo Mendes Campos quis que os domingos invadissem o restante da semana, impregnando-a com seus temas e obsessões: a morte, o amor, a memória, a experiência do poético, a leitura da poesia.
Ainda a observar, neste poema inicial, outras das suas qualidades literárias, o modo como terminava poemas, com uma frase curta a interromper o fluxo das imagens, sintetizando-as e fechando-as: Eu, prisioneiro, lia poemas nos parques,/ Procurando palavras que espelhassem os domingos./ E uma esperança que não tenho. Ou no lírico Poema de dezembro: Nós adoramos a praia e ficamos eternos. Esse talento para fechar poemas, talvez o houvesse adquirido na leitura de Paul Eluard. Não há mais como esclarecer isso, mas quando ele termina Sentimento do tempo afirmando que O tempo é meu disfarce, lembra um pouco Capitale de la douleur, onde Eluard encerra com Le temps se sert des mots comme l'amour.
Ele nos dá muitos outros exemplos de poetização do calendário. No Poema de dezembro há um jogo ou confronto entre uma referência temporal, o mês do título, e a anulação do tempo através da experiência poética. Dela faz parte a presença do mar, recorrente neste que talvez tenha sido o mais carioca dos escritores mineiros, não só por sua participação na vida literária do Rio de Janeiro, mas também pelo modo como, em crônicas e poemas, celebrou sua paisagem, suas cenas urbanas, seus crepúsculos à beira-mar. Há nele um Rio de Janeiro até implícito, pois seu O bêbado certamente vagava por Copacabana, enquanto via que já vomita no mar a lua pálida.
Virando a página dessa esgotada e inencontrável edição de O domingo azul do mar, vemos, coexistindo no mesmo espaço, dois poemas bem distintos. Um deles, o soneto Autorretrato, além de curto, é conciso. O outro, longo, em prosa, é o importante Poema das aproximações, com seu turbilhão de imagens afins ao surreal, e com mais paradoxos: Dos deuses movia-me o pensamento a crueldade nativa. Há, aqui, um manifesto romântico em favor da imaginação, da plena liberdade de criação: Deixai que eu fale. Permiti-me a ventura. O verbo copia a alma. Tudo o que a alegria consente é bom. Deixai que eu fale. Calai a palpitação da máquina.
Os dois poemas, Autorretrato e Poema das aproximações, lado a lado, na mesma sequência, evidenciam outra qualidade da poesia de Paulo Mendes Campos, sua natureza plural. Como poucos, até mais que seu amigo Vinícius de Moraes, foi capaz de trafegar dos mais delirantes poemas em prosa, passando pela dicção coloquial, até belos sonetos, formalmente impecáveis, como Amor condusse noi ad una morte, Tempo-Eternidade e o denso O Visionário.
Disponível no mercado, encontrável em livrarias, existe a coletânea Os melhores poemas de Paulo Mendes Campos (Editora Global, 1990) avalizada por Guilhermino César, que a preparou e prefaciou. Pode ser um viés de apreciador, querendo que o impossível, que tudo conste de uma antologia, mas é uma pena que nela não esteja incluído o Poema das aproximações, nem estejam a Elegia 1947, também com ecos surreais, e Sentimento do Tempo, especialmente interessante pelo modo como, em seu interior, acomoda-se a pluralidade, passando da forma aberta à metrificada e rimada, sem quebrar o equilíbrio.
Esse caráter plural da obra de Paulo Mendes Campos - fonte de muitas vozes, no dizer de Fábio Lucas - talvez explique porque ele foi tão conhecido como cronista, e por fazer parte de uma confraria mitológica de mineiros radicados no Rio, todos excepcionais cronistas (Fernando Sabino, Otto Lara Resende e Hélio Pellegrino, acrescidos ainda do capixaba Rubem Braga), e relativamente pouco reconhecido como poeta, com uma crítica ainda reduzida, aquém de sua qualidade. Estudiosos e comentaristas de literatura gostam de classificar e catalogar, transformando a história da poesia em uma série temporal de movimentos e tendências. E Paulo Mendes Campos é difícil de ser classificado e catalogado. Pode, ou não, ser tido como integrante da Geração de 45. De um lado, há sua poesia metrificada, coerente com a restauração tradicionalista de 45 em seu sentido mais estrito, especialmente nos sonetos. De outro, o que sua obra tem de desarrumado e anárquico. E não apenas pelas imagens afins ao surrealismo. Há, ainda, ressonâncias do primeiro modernismo, de 22, e uma propositada confusão entre poesia e crônica, evidente nos textos em prosa que inseria em seus livros de poesia, sobretudo em O tempo da palavra. Reciprocamente, muito do que ele publicava na revista Manchete e em outros lugares em que colaborou, e que está nessa edição da Record, era poesia em um espaço para crônicas.
Enfim, pode ter sido tudo, menos um poeta sectário, preso a uma só matriz ou ideário. Isso fica mais evidente ainda pela amplidão de suas escolhas de traduções e paixões literárias, bem documentadas na interessantíssima coletânea Diário da Tarde (Civilização Brasileira/Massao Ohno, 1981), também merecedora de releitura e reedição, na qual, sempre no modo coloquial, vai do futebol e dos roteiros de bares a Christian Morgenstern e Borges, passando por Dante, Cummings, Eluard, Montale, Auden e tantos outros.
Voltando ao roteiro por sua poesia, sempre acompanhando a sequência de O domingo azul do mar, chegamos à Ode a Federico García Lorca, importante para que se entenda a própria poética de Paulo Mendes Campos. Essa homenagem a Lorca é quase toda uma montagem de citações de seus poemas, articulados em um fluxo, em algo contínuo. É interessante como ele deu preferência a passagens do Poeta em Nova York, obra mais anárquica do andaluz, e a mais pautada por um confronto entre vida e morte (inicialmente, Lorca quis chamá-la de Introdução à Morte). Ao valorizar o Poeta em Nova York, antecipou-se a estudiosos e comentaristas modernos como Ian Gibson, que a consideram sua obra mais importante, matriz para a compreensão do restante. Diferiu da visão, corrente nos anos 40, quando escreveu esse texto, que deixava de lado o aspecto mais radical e cosmopolita de Lorca, em favor da imagem de poeta regional e apolíneo.
Nessa Ode, Paulo Mendes Campos mostra que a criação poética é uma leitura e um diálogo, mesmo frustrado por ser impossível, pela ausência do interlocutor: Devolvo-te meu canto imperfeito no espanto de um menino que lançasse uma pedra no fundo de um poço e em vão esperasse o baque final tão cheio de paz. Poeta da intertextualidade, da leitura da poesia, insiste nisso na Loa literária do desengano, onde comenta e santifica personagens de seu amplo leque de preferências, que abrangeu de Dante Alighieri até Colette, mais as irmãs Brontë, Baudelaire. Ibsen… E no autobiográfico Fragmentos em prosa, que se inicia informando que: Nasci a 28 de fevereiro de 1922, em Belo Horizonte,/ No ano de Ulisses e de The Waste Land,/ Oito meses depois da morte de Marcel Proust,/ Um século depois de Shelley afogar-se no golfo de Spezzia. Assim, outros escritores constituem um calendário, são marcos que conferem sentido à passagem do tempo e à vida.
Referências como essas justificam lembrar a ênfase de Octavio Paz, em seus ensaios, na afinidade ou nas analogias entre leitura, tradução e criação na poesia moderna. Por exemplo, em Los hijos del limo, ao dizer que o poeta não é o "autor" no sentido tradicional da palavra, porém um momento de convergência das distintas vozes que confluem em seu texto. E em seus ensaios sobre tradução, ao insistir que tradução e criação são operações gêmeas. Paulo Mendes Campos tinha consciência da relação íntima entre essas três operações, como fica evidente no já mencionado Diário da Tarde, pelo modo como alternou, dentro de cada capítulo, artigos, crônicas, traduções e epigramas. Sob esse aspecto, procedeu corretamente Guilhermino César, em Os melhores poemas, ao incluir algumas dessas traduções. Além disso, utilizou como epígrafe da antologia a seguinte frase do poeta-cronista-tradutor: Não entendo a poesia; a poesia é que me entende. Não há como deixar de associar uma frase dessas ao que Octavio Paz havia dito, em Los hijos del limo, a propósito da soberania do texto sobre seu autor-leitor e seus sucessivos leitores, e, em El arco y la lira, na famosa afirmação de que o poeta não se serve das palavras: é o seu servidor. Possivelmente, algo do que Paulo Mendes Campos teve de retraído, avesso ao exibicionismo, relacionava-se a essa concepção do autor como veículo, servidor da poesia.
Apesar de reduzida em suas dimensões, a obra poética de Paulo Mendes Campos, por ser tão plural, ainda deixa muito a ser comentado. É claro que a presente leitura é algo enviesada, destacando a imagética, as associações livres mais presentes em sua obra de juventude. Esses são, contudo, traços de sua poesia indispensáveis para a compreensão do restante, para se enxergar o quanto a simplicidade e o tom coloquial de alguns textos de maturidade são o resultado de uma depuração, uma espécie de ascese literária. Um ensaio mais extenso também deveria tratar de sua dimensão memorialística, da recuperação do passado no período final de sua criação literária. E, ainda, do modo como a memória individual vai se confundindo com a tentativa de reconstituição de uma memória coletiva, nacional, especialmente em Testamento do Brasil.
É preciso examinar, sem transformar um ensaio em réquiem, o tratamento dado por ele ao tema da morte, especialmente no poema-crônica Em face dos últimos mortos. Ou em Os lados, onde dizia: Há um lado em mim que já morreu./ Às vezes penso se esse lado não sou eu. E, mais ainda, em A morte, ao proclamar: Vai comigo a morte, vou comigo à morte, concluindo: Morte, tens em mim tua vitória. Mas Paulo Mendes Campos não foi um poeta fúnebre ou mórbido, um Augusto dos Anjos moderno, nem um corroído por um novo mal du siècle. Esses trechos coexistem com outros de poderosa afirmação, como o Hino à vida.
A propósito da complementaridade vida/morte, pode-se voltar a citar Octavio Paz, ainda em Los hijos del limo: Viver no agora é viver cara a cara com a morte. O homem inventou as eternidades e o futuro para escapar da morte, porém cada um desses inventos foi uma armadilha mortal. O agora nos reconcilia com nossa realidade: somos mortais. Só diante da morte nossa vida é realmente vida. No agora nossa morte não está separada da nossa vida: são a mesma realidade, o mesmo fruto.
Sem qualquer intenção de sacralizá-lo, reconhecendo que sua obra poética tinha algo de inconcluso, desigual e às vezes circunstancial, mesmo assim cabe insistir que uma edição completa de sua poesia, além de satisfazer leitores, provavelmente viria a estimular críticos e estudiosos.



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Agulha Revista de Cultura # 20. Janeiro de 2002. Página ilustrada com obras de Otto Apuy (Costa Rica), artista convidado desta edição.






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