domingo, 25 de outubro de 2015

CHICO ALVIM entrevista Zuca Sardan


CA | Zuca, monto rapidamente o altarzinho que deve presidir esta nossa conversa. Lá estão de santinhos: Alice, Père Ubu, Isidore Ducasse, o Barão de Itararé, Max Ernst, O Thesouro da Juventude… Todos de sua devoção. Faça uma oração para eles.

ZS | Alice tem o charme de malícia-vitoriana-feminina  em estado de graça encacheada na inocência infantil  aureolada pelo insubmergível Sol do Império Britânico, convencidos, então, a Rainha e seus súditos, com a mesma inocência de Alice, de sua missão civilizadora e  catequizadora mundial, clima benfazejo que arrebatava Lewis Carrol no erotismo platônico supino em que gozou e escreveu sua Obra Prima. Este mesmo clima involve o saudoso Thesouro da Juventude, e, no Brasil, se refletiu na concepção Luso-Tropical de Gilberto Freyre e no Sítio do Picapau Amarelo de Monteiro Lobato. Também Alfred Jarry, espertíssimo menino contemporâneo de Alice, com seus coleguinhas de Lyceo, escrevendo juntos a peça do Père Ubu, representada no teatrinho de cartolina do Alfredinho, estavam envoltos no mesmo imaginário colonial europeu (o Império francês de então, queria competir com o britânico). Apenas os meninos, com  liberdade mental de infantis peralvilhos, tratavam todos os ideais filosóficos e artísticos da época com alegre molecagem e irreverência. Mas esses mesmos meninos, passada a puberdade e atingida a plena mocidade, perderam a graça infantil. Enquanto os antigos colegas relegaram Ubu pra categoria de meras baboseiras infantis,  Jarry guardou zelosamente o humor espontâneo de pirralho e o transportou pra idade adulta com a peça do Père Ubu praticamente inalterada mas transformada, tão só no conceito, pela sua percepção como Arte. Exclusivamente graças ao gênio de Jarry, assim, Ubu foi o primeiro “Ready-Made”, antecedendo por duas décadas, a famosa Monalisa de bigodes, do Marcel Duchamp. Não creio que o Barão de Itararé tenha lido Jarry, mas, por insondável mystério, recriou espontaneamente a Pataphysica no Brasil: o mesmo humor crítico, voltado não ao ataque frontal do Pressuposto, mas sim à  absorção deste mesmo Pressuposto, em humor-de-segundo-grau.

CA | O Lyceo Phythanga, o Theatro Morpheo, o Circo Pery, a Graffica Gralha… são poderosas instituições sardânicas, pontas de lança de um altaneiro pensamento libertário que espetam tudo que aporrinha e que agacha os homens; e que instalam no espírito daqueles que têm a felicidade de frequentá-las o estado da sonhada revolução permanente. Fale-nos um pouco delas.

ZS | O Lyceo, o Circo, a Graffica.. são instituições pataphysicas que, pelo mesmo processo de humor-de-segundo-grau, se incorporam no Pressuposto Geral, numa possessão às avessas das usuais : em vez de um médium ser possuído por um Santo ou pelo espírito de um falecido, aqui é o Pataphysico que se incorpora no Pressuposto, que passa, possuído, a falar com a voz do Artista, num gozo platônico comparável ao de Lewis Carrol com Alice.

CA | E também da cola e do Gigante Belfedor, intrigantes tema e personagem nascidos de suas vivências escolares.

ZS | (a) Gigante Belfedor é o Burro Poderoso que esbordoa os fregueses da taberna, não paga a conta e come caramujos, mexilhões e bacalhau por sete marujos.Trata-se do Père Ubu do Povão, É ao mesmo tempo temido e admirado pelos fregueses que são atraídos por sua arrogância e porradas, o que garante, ao final, a extraordinária frequência e o sucesso crescente da taberna. 
(b) Cola tem, como genial precursor, Marx Ernst nas suas colagens de 'Une Semaine de Bonté' (1926), série de gravuras que preparou usando exclusivamente tesoura e cola, pra recortar, misturando nacos, antigas gravuras dos 1900s. A colagem dos Cubistas, liderados por Picasso e Braque, é anterior mas apenas  no recurso de utilização em quadro de composição cubista, não indo ao real conceito da Cola que é a reciclagem e transformação duma obra anterior pra criar qualquer coisa de inteiramente diferente.

CA | Zuca, você seria capaz de descrever para os moços de hoje o ar que respirava ou melhor suspirava nos seus anos de moço da década de cinquenta do século findo; o seu élan vital, em que se mesclavam desejos de arte, vida, amor e aventura, pondo, conforme diz num de seus versos, senão a nu, que seja de pijama seu coração?

ZS | Minha vida de hoje é uma cola e reciclagem inexorável e total de minha infância e juventude. Cacos e destroços, e o osso do coração… Dos cacos montar uma nova infância e uma nova mocidade, agora mentais, pra alegrar e inspirar o bom velhote. Como tenho por natureza e formação a cabeça dividida, pude filtrar e integrar várias metamorfoses pessoais e sociais. De uma infância francesa a uma juventude americana seguindo a mudança do imaginário europeu de antes da Grande Guerra ao imaginário americano que se impôs no pós-guerra. Conheci Paris no final dos 50s, ainda o Vieux Paris, com caixas de correio-pneumático,  o Louvre e Notre-Dame pretos com a pátina dos séculos, e os encardidos prédios de seis andares… a Velha Europa que inspirou Lúcio Costa na criação do gabarito de seis andares pra Brasília… Em 1964, com os Beatles e os Rolling Stones começa a Grande Revolução, que com a Pop Art norte-americana no setor das plásticas, arrasou de vez com o Velho Mundo. Era o começo do Terceiro Milênio que ora pouco ou nada tem a ver com o mundo de nossa mocidade. Só sobraram cacos e destroços.

CA | Indo um pouco mais longe e mais atrás e invocando a anedota  - injuriosa segundo alguns, deliciosa segundo outros - de que no Brasil há três coisas em que não se pode confiar: coragem de gaúcho, dinheiro de paulista e caráter de mineiro; e invocando sobretudo seu insuperável conhecimento da história pátria, só que com enfoque num período que, salvo engano, ainda não foi suficientemente escrutinado em suas magistrais análises e exposições: seus maiores, tanto do lado paterno, quanto, se não estou equivocado, do materno, são do Rio Grande do Sul; maragatos ou pica-paus? Gente como nós, não importa que rio-grandenses ou não, de certo modo, viajou na garupa do Getúlio. Aconteceu com você? Se aconteceu, quais suas impressões de viagem e a imagem que seus olhos de fedelho guardaram do caudilho e daqueles tempos que trazem de mistura os de seus ascendentes? Você acredita que então (e porque não, agora) o gaúcho mandou (manda) e o mineiro interpretou (e segue interpretando)? E o paulista, como fica? E o Brasil?

ZS | Com Getúlio, os gaúchos chegaram de vencedores e amarraram as rédeas dos pangarés no obelisco da entrada da Avenida Rio Branco. Foi-se ao brejo a bacharelesca República Velha paulista-mineira do café com leite e começou a Nova, inspirada por ideais socializantes. E o Modernismo Moleque de 22 transformou-se no Modernismo Caretão dos 30s. Mas com as tensões crescentes na Europa, os fascistas integralistas de um lado e os comunistas bolchevicões do outro , se revoltaram contra o antigo aliado e chefe gaucho Getulio, que aproveitou as deixas e criou o Estado Novo que não era exatamente cara nem coroa, e foi levando a Ditadura numa aliança de conveniência com os Estados-Unidos. Só depois que a Guerra acabou, os Militares puderam enfim derrubar Getúlio. Mas passaram o Governo pro Poder Civil, coisa que acabaram esquecendo de fazer após derrubarem o Governo (gaucho) Jango em 64, com o apoio moral do mineirão Magalhães Pinto. Se a pergunta fosse feita nos 70s, eu diria (à socapa) que nem Gaúchos nem Mineiros, mas sim quem manda mesmo são os Militares. E os Paulistas ?…  Com a subida do Lula, ficaram (politicamente) a ver navios… Mas haja o que houver… os Paulistas serão sempre os Donos do Baú.

CA | Voltando a nosso galho: que tal dissertar um pouco, do alto da cátedra de teoria literária do Lyceo Pythanga, sobre suas últimas invenções formais, os remix, os macarronix, os grafitti, os nacos de melodramas?

ZS | Lyceo Pitanga e Circo Pery não sossegam. Sempre aprontam novidades sem me perguntar e eu sou levado de roldão num torvelinho, de surpresas em surpresas… sem saber exatamente nem de onde nem porque remix e macarronix surgiram…   a escrita automática surrealista em mim se transformou numa rebelião incontrolável de meus gnomos e fantasmas contra mim, que estou de aduaneiro entre o Mito e o Mundo. Minha cabeça dividida entre o totêmico e o racional. Se tomar partido de um, o outro me mata.
Vou assim levando a minha arte sem fazer perguntas nem cobrar explicações. Lo que será, será … A título de definição urdida a posteriori, diria que o remix é um processo de cola e reciclagem de textos alheios, numa alquimia de fusão de meu pensar com o do  personagem colado de modo a arrancar meu pensamento dos seus próprios moldes, criando, pra mim próprio, uma nova percepção. O macarronix é minha libertação dos gonzos do vernáculo de modo a   forçar este vernáculo a conviver com outros idiomas para re-vi-go-rá-lo com a transfusão de sangue. Não o vernáculo em si, em que convivo mas é de todos brasileiros ; mas sim este mesmo vernáculo na minha cabeça. Os nacos de melodrama são um estratagema para dar palco a meus gnomos, sílfides e orixás, e de com eles conviver. Graffiti, via postal, pra sobrevivência artística. 

CA | Zuca, Surrealismo ou Dada? Surrealismo e Dada?

ZS | Dada tem um lado de poesia espacial que se manifesta no Concretismo; e outro lado de revolta moleque selvagem que se manifesta no Surrealismo. Mas os Surrealistas queriam uma linha, e um engajamento político social. E Dada era uma revolta contra tudo, inclusive contra Dada. Isso permitiu a Dada que sobrevivesse ao fim das ideologias, pelo menos das mais explícitas. O triunfante Capitalismo pra ir levando na maciota, finge que não é ideologia filosófica, seria um mero processo prático de ordenar a Economia Global. Mas se mete maneiro em qualquer espaço ideológico, desde que seja rentável.  Assim, Neo-Dada é uma bem montada máquina de explorar Arte, melhor dizendo Finanz-Markt-Dada. 

CA | Confio em que algumas das passagens desta entrevista hão de trazer para dentro, à guisa de ilustrações, aquilo que até aqui ficou de fora - seu maravilhoso traço, pintor carismático que sois de letras e tinhoso escrevinhador de figuras! Sobretudo egrégio manipulador de tesouras e cola-tudos operosos e diabólicos que subvertem o mundo. Délavigne passou por aqui e como sei do pacto que vocês firmaram sob a égide de Sardanapalo e Delacroix pedi a ele que desferisse a última pergunta.

KAZIMIR DELAVIGNE | Caro Zucca, gostaria de me referir  a seu conselho ao jovem artista, de sempre começar pela escolha do título. Pergunto se o título-estopim não reconduziria  a uma imagem primeva, primitiva paixão do poeta, que se busca rememorar na soleira da caverna de Platão? Ou será "apenas" pretexto aleatório que, paradoxalmente, se converte em componente fundamental para o processo plástico ou poético, como via de acesso às verdades universais reveladas pela arte?

ZS | Meu caro Kazimir Delavigne, magistral teórico da Posteridade Retrospectiva, que nos faz criar, vivos, obras pros defuntos… Estabelecemos assim, sem mesas de Kardek, uma rica troca de ideias com os mortos em diálogos que entretemos, liberados do tempo cronológico,  em livros e museus… A escolha do título deve ser o primeiro conselho aos jovens artistas, especialmente aos plásticos. Vá você a uma exposição, ou consulte um catálogo ilustrado e se topará com uma lastimável obviedade : “Mulher sentada”. título dum quadro de mulher sentada; “Paisagem”, título de um quadro de paisagem ; “Napoleão a cavalo”, titulo de um quadro de Napoleão a cavalo. Efeito d' escolha bestificante. Pra combatê-la, é assim aconselhável começar  pelo título que deve ser imprevisto e original, pra provocar o pintor. E é, assim também, um astucioso processo de abrir uma via de acesso aos mystérios universais bafejados pela Arte.



[Graffica Gralha - 07/07/201.3]






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