quinta-feira, 29 de outubro de 2015

ANTONIO NAUD JR | Roman Polanski: talento diabólico


cenário é cinematográfico: no alto de uma colina, uma paradisíaca residência protegida por pinheiros e com vistas para o mar Mediterrâneo. A decoração luxuosa tem toques orientais e mexicanos. Polanski, de 71 anos, fuma um grosso charuto cubano na varanda. Sua mulher há mais de uma década, a atriz francesa Emmanuelle Seigner, está deitada no branco sofá lendo um best-seller, indiferente à entrevista. A filha Morgane brinca na piscina e o mais novo, Elvis, é protegido por uma babá. Não há nenhum sinal de um homem que cultua o diabólico, como a mídia faz crer. Tudo é agradável e bastante familiar.
Nascido casualmente em Paris, o polaco Roman Polanski é autor de vários filmes fundamentais, desde a aplaudida estreia com Faca na Água(1962). Depois de duas décadas ingratas, ganhou a Palma de Ouro do Festival de Cannes e o Oscar de direção por O Pianista (2002). Sua vida intensa e extraordinária é marcada por cruéis experiências: a mãe morreu em um campo de concentração nazista, passou a infância no gueto judeu de Cracóvia, teve a esposa Sharon Tate e o filho a ponto de nascer assassinados por um fanático religioso, foi acusado de manter relações sexuais com uma menor na casa de Jack Nicholson, expulso dos Estados Unidos e outros turbulentos acontecimentos.
De sunga minúscula, camiseta azul, descalço, olhos pequenos e irônicos, baixinho, enxuto e simpático, o talentoso autor do asfixiante O Bebê de Rosemary (1968) deixa cair por terra o mito do homem enigmático, libertino e perverso. Durante duas horas fala sobre sua vida e sua carreira, amavelmente revelando-se sem artifícios. [ANJ]

ANJ | Sua esposa, Emmanuelle Seigner, teve papéis destacados em vários filmes seus. Qual a importância dela para a sua vida e o seu trabalho?

RP | Ela chegou num momento decisivo de minha vida, trazendo harmonia e paz. Apesar de sua juventude, descobri que possuía um instinto enorme em relação as pessoas e uma visão muito justa diante das coisas da vida. É uma mulher realista que com a idade vem adquirindo uma particular sabedoria. Nós nos conhecemos muito bem e fizemos um pacto de esquecer nossa relação amorosa durante o trabalho. Profissionalmente dissimulamos a intimidade para evitar interferências na nossa criação.

ANJ | Antes trabalhou com gente do calibre de Mia Farrow, Catherine Deneuve, Isabelle Adjani e Ben Kingsley. Como funciona o seu relacionamento com os atores?

RP | Tive vários relacionamentos profundos com atrizes, casei com algumas delas. Respeito os atores, sou um deles. O que não entendo são os que mudam de comportamento quando atingem a fama. Acho um absurdo quando um ator se crê um ser superior, com direitos especiais, exigindo as coisas mais extravagantes. Aprecio os atores inteligentes e sensatos, que vivem uma vida comum. Gosto de trabalhar com atores bons, desses que interpretam qualquer tipo de papel, como Jack Nicholson ou Meryl Streep.

ANJ | Também é conhecido – e louvável – o seu interesse por antigos atores, muitos deles praticamente aposentados.

RP | É um prazer trabalhar com velhas glórias. Em O Inquilino dei um papel forte para Shelley Winters. Trabalhei com Ruth Gordon, Melvyn Douglas e Ralph Bellamy em O Bebê de Rosemary. Eles são grandes atores da grande época de Hollywood. E um bom ator não tem idade.

ANJ | Todos sabemos de sua infância sofrida e dos inúmeros problemas futuros. O Pianista deu-lhe a oportunidade de examinar suas angústias e medos pessoais?

RP | Passei minha infância num gueto e consegui escapar. Eu queria fazer um filme sobre essa época usando material de minha vida, porém não queria contar minha história. Quando comecei a ler o livro, soube que O Pianista seria meu próximo filme. É uma história que, apesar do horror, tem um lado positivo. É um homem que se salva por sua arte, é a sobrevivência de um artista. O livro é objetivo, me impressionou, pois não queria fazer um filme sentimental estilo Hollywood.

ANJ | Fala de A Lista de Schindler, de Spielberg?

RP | Falo de muitos filmes. A Lista de Schindler é um grande trabalho. Fui convidado por Spielberg para dirigi-lo e recusei. A história é muito próxima da minha própria história. Conheci intimamente a muitos dos personagens dela, e alguns ainda estão vivos, são meus amigos. Eu não faria um bom filme nessa situação. Jamais exploraria a minha vida ou a de meus amigos para vender ingressos. O filme sem distanciamento não é arte, é autobiografia.

ANJ | Foi duro recriar um momento indigno da nossa história moderna e que faz parte do seu passado?

RP | Na realidade, não. Filmar não foi difícil. Meus fantasmas eram massacrados diariamente num set de filmagens com centenas de pessoas. Tinha que estar com a mente voltada para questões técnicas. Acompanhar o processo de criação do roteiro de Ronald Harwood foi mais doloroso.

ANJ | Esta obra resgatou-o de vários insucessos e calou a boca dos que diziam que estava criativamente acabado. Concorda?

RP | É um filme realmente importante para mim. Dirigi-o pensando num resultado simples, direto, procurando mostrar as coisas tal como as recordava. Fiz todo tipo de filme e tenho a impressão de que tudo que fiz antes era uma preparação para O Pianista. Pode ser que seja como um último chamado, afinal eu sempre soube que faria um filme na Polônia sobre a Segunda Guerra Mundial ou sobre o período pós-guerra.

ANJ | Como assim “último chamado”? Me soa misterioso, quase sobrenatural.

RP | Não acredito no sobrenatural. Não sou uma pessoa religiosa, portanto não sou supersticioso. Não tenho interesse na metafísica nem no esoterismo. O sobrenatural é apenas um elemento que usei em alguns filmes. O sombrio está dentro de nós, não é preciso procurá-lo muito longe.

ANJ | Porém o macabro está presente em muitos dos seus filmes. É uma atração incontrolável?

RP | Como já disse, não creio no sobrenatural. Rodei muitos filmes que não tratam do diabólico, e sempre sou lembrado como o Polanski com seus infernos, com seus demônios. Dizem o mesmo em todo o mundo. Participei de uma coletiva de imprensa recentemente e todos os jornalistas falaram sobre tal assunto. O louco é que querem que eu aceite um clichê, como se não fosse dono de minha própria vida. Eu nunca vi o diabo e não creio nele da forma que é vendido. Não participo de rituais ou bruxarias como dizem por aí.

ANJ | Nada pergunto sobre o diabólico banalizado, religioso, nada insinuo nesse sentido. Gostaria de saber o que tem a dizer sobre o mal presente na sua obra. Não há como negar, é um fato.

RP | A verdade é que a metáfora do mal me interessa, a ideia do homem enfrentando forças extremas que não controlam. Gosto muito do macabro como espetáculo. O medo também pode ser divertido. Uso o mal nas telas como diversão. Por que não? Ele está presente em O Bebê de Rosemary e O Nono portal.

ANJ | E em O InquilinoMacbethA Dança dos VampirosLua de Fel

RP | Possivelmente goste desse tema. Também me diverte de alguma forma. Porém, pode acreditar, sou um sujeito comum e na minha vida não é isso o que me interessa. O engraçado é que até Emmanuelle, minha mulher, disse-me certa vez: “O que faz de melhor são as histórias de vampiros e de diabos”. Ou seja, minha própria mulher colabora com essa etiqueta imposta. Portanto, nada posso fazer, só resta dar risadas.

ANJ | 16 filmes em mais de 40 anos de carreira. Por que filma tão pouco?

RP | Os filmes são caros, os riscos são grandes e é difícil desenvolver um projeto, que pode durar anos para converter-se em realidade. É preciso escolher um tema, trabalhar no roteiro, organizar a produção, montar o financiamento, encontrar os atores. Nos anos sessenta era mais fácil, agora os interesses são outros e nem sempre vale a pena correr o risco. Quando se é jovem, quando não se é conhecido, podemos arriscar sem problemas e filmar da forma que for possível. Depois de uma certa experiência é melhor esperar um pouco mais, estar convencido de que será uma obra significante.

ANJ | Fez muitas adaptações literárias. É um grande leitor?

RP | Eu amo profundamente os livros, seu aroma e tato, tudo o que faz parte deles. Amo a cadência das palavras, a forma como o autor se apodera dela. Gosto muito de Faulkner, Truman Capote e Scott Fitzgerald. Leio livros policiais, Raymond Chandler, a série noir francesa. A literatura norte-americana é a minha favorita, é a melhor. Porém prefiro a leitura de livros científicos e técnicos. Infelizmente creio que um livro é uma espécie em extinção.

ANJ | Sabemos que além de dirigir filmes, teatro e ópera, e escrever roteiros, também atua. É importante para a sua carreira? Woody Allen diz que só atua nos seus filmes quando não encontra o ator ideal para o papel.

RP | Levo a sério minha carreira como ator. Gosto muito de atuar. Sou daqueles que incorpora realmente o que interpreta, vive o seu papel com entrega. Creio que tive um dos meus melhores momentos nessa área em “Uma Simples Formalidade”, de Giuseppe Tornattore, dividindo cena com Gérard Depardieu. É mais fácil atuar do que dirigir. Um ator faz o seu trabalho de preparação, atua, dá algumas entrevistas e continua a sua vida. Um diretor pode passar anos envolvido no mesmo projeto.

ANJ | Algum cineasta foi importante para a sua formação?

RP | Luis Buñuel. Fiquei impressionado com Los Olvidados, que vi na Escola de Cine de Lodz. Nunca tinha visto algo parecido. Sua originalidade, seu estilo nada convencional, suas interpretações realistas, me comoveram. O cinema de Buñuel é fascinante, me interessa. Expressa certas ideias, pensamentos, de forma muito bem utilizada.

ANJ | Por que passa os verões em Ibiza? Ajuda-o a elaborar os seus projetos?

RP | Estive na Espanha pela primeira vez no final dos anos cinquenta. Acompanhava minha futura primeira mulher, Barbara Lass, que apresentava um filme no festival de San Sebastián. Terminei gostando da Espanha, seu idioma e costumes. Passei a frequentar Ibiza no final dos setenta e comprei esta casa uma década depois. É uma ilha tranquila e com bom clima. Aqui penso, falo, leio, estudo propostas. No meio dessa tranquilidade, estou sempre com a mente inquieta preparando-me para o próximo filme.

ANJ | E o que vem por aí?

RP | Poderia dizer que quero continuar filmando, continuar alimentando o meu experiente e particular olhar em direção ao homem e suas paixões, obsessões e demônios. Trabalho atualmente na adaptação do livro “Oliver Twist”, de Charles Dickens.


Antonio Naud Jr (Brasil, 1970). Escritor. Autor de livros como O aprendiz do amor (1993), Caprichos (1998) e Artepalavra - Conversas no velho mundo (2003). Contato: antonio_junior2@yahoo.com. Página ilustrada com obras de Luis Caballero (Colombia), artista convidado desta edição de ARC. Agulha Revista de Cultura # 41. Outubro de 2004.







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