quinta-feira, 29 de outubro de 2015

ANA LÚCIA VASCONCELOS | Leon Hirszman de volta às origens


Entrevistei o cineasta Leon Hirszman em São Paulo (ele nasceu em Vila Isabel, no Rio de Janeiro, em 22 de novembro de 1937), no ano de 1978, às vésperas da estréia da peça Murro em Ponta de Faca, de Augusto Boal que ele estava dirigindo. Leon já estava doente, uma doença rara segundo ele, que os médicos não conseguiam detectar. Vou conservar o texto exatamente como está, com as datas citadas no presente, com algumas ressalvas. Acredito que esta tenha sido uma de suas últimas entrevistas. A matéria foi feita a pedido do editor do (hoje extinto)Folhetim, da Folha de S. Paulo e inexplicavelmente não foi publicada, de forma que ela ficou inédita até o “prezado momento”, como diria Elis Regina. Leon Hirszman morreu no dia 16 de setembro de 1987. [ALV]

Como Eisenstein, seu cineasta preferido, Leon Hirszman também fica com o cinema e o teatro. Seu primeiro filme foi feito especialmente para a peça A mais-valia vai acabar, seu Edgar, de Oduvaldo Vianna Filho, direção de Chico de Assis. Antes disso havia participado dos debates para a montagem de Revolução na América do Sul, de Augusto Boal, no Rio de Janeiro. Agora, 19 anos e 11 filmes depois, num retorno as origens, volta ao teatro, desta vez como diretor de uma peça: Murro em Ponta de Faca, do mesmo Boal, exilado do país há mais de sete anos.
(Na verdade, Augusto Boal foi preso e exilado em 1971 – foi inicialmente para o Uruguai, mas continuou sua carreira em países da América Latina como Peru e Argentina. Em 1976 foi para Portugal acabando por fixar-se em Paris onde permaneceu até sua volta ao Brasil em 1984. Há informações que sua volta teria se dado em 1986.).
O tema da peça é exatamente o exílio e a figura do exilado, personagem incorporada à nossa realidade com certa intensidade, nos últimos catorze anos. Murro em Ponta de Faca tem no elenco: Othon Bastos, Martha Overbeck, Renato Borghi que são também os produtores, além de Francisco Milani, Beth Caruso e Thaia Perez. Os cenários e figurinos são de Gianni Ratto e a música é de Chico Buarque de Hollanda. A estréia foi no dia 16 de setembro de 1978 no TAIB, em São Paulo. Antes de passarmos para a entrevista que tal uma frase do Eisenstein? “Chamados diretores! Deixarão vocês e os ratos de perder tempo com os falsos adereços de cena? Assumam a organização da vida real.”

Há pessoas que recorrem a artifícios variados para aparentar menos idade. Com o carioca Leon Hirszman ocorre o contrário-ele usa barba para mostrar sua verdadeira idade. ”Afinal eu tenho 40 anos. Sem barba, fico muito jovem”. Sorri com a brincadeira e conta o verdadeiro motivo da opção pela barba: tem uma pele extremamente sensível e simplesmente não consegue fazer tal operação sózinho. Por isso há quinze anos tem dois barbeiros, no Rio de Janeiro, onde reside.  E acontece que no preciso momento Leon Hirszman está em São Paulo, para dirigir a peça do Augusto Boal Murro em Ponta de Faca cujo tema é o exílio e exilados, personagens incorporados à nossa realidade, com certa intensidade, nos últimos quatorze anos.
Aliás, por falar em intensidade, o frio também está muito intenso neste primeiro encontro que temos no apartamento do ator e diretor Fernando Peixoto. Talvez por isso a entrevista tenha sido formal, amarrada. O máximo que conseguimos foram comentários sobre o frio, meias, luvas e botas.
Daí que os comentários sobre a barba foram feitos na segunda entrevista, quando Leon me mostrou fotos suas: ele fica de fato muito jovem sem a tal barba, junto com suas filhas de dois casamentos: Maria, uma morena de 12 anos, Irma, clara, de 15 e o garoto, João Pedro também moreno de 4 anos.  “São lindos, não são?” Pergunta Leon afetuoso e saudoso. “É claro que sinto falta deles. Imagine, cada um mora num estado diferente-Irma no Rio, João Pedro em Belo Horizonte e Maria em São Paulo”.
Mas isso não é nada, quero dizer a saudade dos filhos, (coisa que mais tarde experimentei fortemente-aliás, passei grande parte da minha vida com saudades deles), perto dos exames que está fazendo para detectar qualquer coisa na sua vesícula. Consciente Leon sabe que a doença, ou qualquer coisa que seja, é psicossomática.  “Afinal estou saindo do meu terceiro casamento e separação é um negócio difícil, machuca mesmo, quer a gente admita ou não.”
Pergunto se já tentou a macrobiótica. Ele diz que sim , já tentou, acha maravilhosa, adora o sabor da comida que considera mais requintada que a comida chinesa. Mas acha também que só a macrobiótica não resolve. E lembra o exemplo de George Osawa, o introdutor deste tipo de alimentação no Ocidente, que morreu de um vírus resistente a ela. Concordamos que a macrobiótica não é a panacéia universal, damos risadas. Se fosse, estaríamos salvos. Era todo mundo mudar para este “regime” e pronto.

“O que me despertou para o cinema? diz, repetindo a minha pergunta. “Foi a movimentação que ocorreu em 1954 para a liberação do filme Rio 40 Graus”. Acompanhei toda a luta de Nelson Rodrigues dos Santos, participei das reuniões na Associação Brasileira de Imprensa. Foi isso que me despertou para o cinema.”Aliás, a luta parece ser uma constante na vida deste carioca da Boca do Mato, subúrbio do Rio de Janeiro, filho de judeus poloneses que emigraram para o Brasil em 1933.  “Eu já me sentia participar com cinco,  seis anos ”.
Atribui a influencia paterna- a família do pai morreu inteira nos campos de concentração nazista- seu engajamento contra as posições intolerantes, obscurantistas, racistas. Mas esclarece que quando se fala em formação, herança é preciso falar também em autonomia já que acredita que na verdade as pessoas se formam e são formadas. Não temos apenas uma parte do pai e da mãe, mas de todas as pessoas de quem gostamos. “Ocorre que em geral as pessoas não assumem as relações de parentesco.” Ou melhor, muitas vezes, ele pensa, assumimos apenas uma parte, nos entregamos a determinada figura, não realizando outras.
“O machismo não é outra coisa senão a não realização da figura feminina que todo homem tem dentro de si. A relação deve ser dialética porque todos nós temos pai e mãe. O machismo, o chauvinismo, o estar com a verdade pronta, acabada, é não estar disposto a viver o processo. E quando se tem a verdade pronta, pode-se escolher qualquer bode expiatório. É esta espécie de autoritarismo interno que deve ser combatido.”
“São as relações familiares de dominação que, formando um quadro onde não se podem exercer as liberdades individuais ou de classe, as que mais oprimem os homens”, acredita Leon.  Ele exemplifica citanda a ausência de humor hoje no Brasil, conseqüência desta perda de “liberdades individuais e de classe”. O medo, segundo ele, oprimiu tanto a sociedade que o humor brasileiro, tão famoso, só agora está ressurgindo. 
“Só de uns tempos para cá se voltou a fazer humor político na televisão.” Os “sábios”, ironiza, “tratam as pessoas como crianças incompetentes para dirigir seus destinos. Mas parece que este povo, especialmente dos grandes centros urbanos, está retomando seu direito de fazer humor, de fazer greve, enfim, está retomando sua imaginação criadora.”.

E por falar em imaginação criadora, a de Leon pôde se expandir à vontade naqueles velhos tempos, quando, adolescente, curtia as chanchadas de Oscarito, Grande Otelo, os musicais da Atlântica e se dedicava de corpo e alma à atividade de cineclubes no Rio de Janeiro. Era uma época de efervescência cultural, de debates de idéias. No Brasil inteiro surgiam movimentos que buscavam, através do teatro, da música, do cinema mapear a realidade social do país. Eis que, certa noite, em 1957, Leon e um amigo: Dejean Magno Pellegrino, a caminho do teatro para assistir à Ópera de Pequim, refletiam sobre a possibilidade de ampliar a atividade dos cineclubes.
 A idéia era que o cineclube não devia ser um lugar onde as pessoas fossem apenas para ver cinema, ciclos de Bergman e outros cineastas de prestígio, naquele momento. Antes de tudo, eles deviam ser um lugar onde se pudesse estudar a arte do cinema. E mais: que fosse a linha de frente na luta contra os chamados trustes que dominavam o mercado de distribuição e também fosse o ponto de ligação das pessoas que se preocupavam com o cinema voltado para a realidade nacional.
Havia o exemplo de São Paulo, onde Paulo Emilio Salles Gomes fazia avançar a Cinemateca. Por que não fazer coisa parecida no Rio? Foi assim que surgiu o Museu de Arte Cinematográfica do Rio de Janeiro e na seqüência a Federação de Cineclubes do Rio de Janeiro e o Cineclube da Escola Nacional de Engenharia. Mas toda esta movimentação não foi tão importante como acompanhar a montagem da peça Revolução da América do Sul de Augusto Boal e participar dos Seminários de Dramaturgia no Teatro de Arena no Rio, em 1959.
Leon Hirszman considera que estes dois acontecimentos foram mesmo decisivos para que ele ficasse definitivamente desperto para as questões do ator e da dramaturgia. Foram estas duas experiências marcantes que permitiram que ele se apropriasse do instrumento necessário para desenvolver mais tarde suas atividades no cinema e no teatro. “Acompanhar atores como Vianinha, Vera Gertel, Flávio Migliaccio, Chico de Assis, Giamfrancesco Guarnieri, Nelson Xavier e tantos outros foi uma experiência demais enriquecedora para uma pessoa como eu que estava iniciando no teatro e no cinema.”
Aliás, registre-se que, este começo marcaria para sempre seu trabalho: o cinema e o teatro sempre andaram juntos na carreira deste diretor. Basta lembrar que seu primeiro documentário foi feito para a peça A Mais Valia Vai Acabar, seu Edgar, de Oduvaldo Vianna Filho. Era o cinema no teatro: o documentário usado como recurso para as montagens experimentais ao estilo de Piscator-encenador alemão, que antes de Brecht, usou esta técnica para seu teatro político.
E agora, novamente, Léon prova que o teatro é sua grande paixão: seu filme Eles Não usam Black Tie baseado na peça homônima de Guarnieri, que também faz parte do elenco juntamente com Fernanda Montenegro, Carlos Alberto Ricelli, Beth Mendes, Lélia Abramo, Milton Gonçalves, Rafael de Carvalho, Anselmo Vasconcelos, Francisco Milani, Fernando Ramos, vai ser sucesso obtendo da critica nacional e internacional, vários prêmios importantes em 1981: o Leão de Ouro no Festival de Veneza, o Grande Prêmio Coral Negro no 3º Festival Internacional do Novo Cinema Latino-Americano; Grande Prêmio do Festival dos Três Continentes; Espiga de Ouro do Festival Internacional de Vallodolid. E em 1982 obteria o Prêmio Air France.

Dos contatos com Glauber Rocha, Paulo César Sarraceni, Joaquim Pedro, surgiram as discussões em torno do que deveria ser a atividade deles: não apenas discutir arte cinematográfica com uma postura crítica, mas partirem para  a criação . E cada um deles tinha um projeto de filme, ou vários. O primeiro a ser realizado foi Couro de Gato de Joaquim Pedro de Andrade.
Simultaneamente ao filme acontecia a fundação do Centro Popular de Cultura, o famoso CPC que ficou sendo o órgão cultural da União Nacional dos Estudantes que Leon Hirszman ajudou a criar, juntamente com Oduvaldo Vianna Filho, Chico de Assis, Flávio Migliaccio, Armando Costa, João das Neves, Cécil Thirê (teatro); Cacá Diegues, Marcos Farias, Eduardo Coutinho, Miguel Borges (cinema); Carlos Castilho, Carlos Lyra, Sérgio Ricardo, Geraldo Vandré, o conjunto MPB 4 (musica )  e que foi um dos grupos culturais mais importantes que floresceu no Brasil de 1960 a 1964
“Nós tínhamos uma atividade intensa, mas ninguém ficava com estafa. A gente se colocava inteiro naquilo tudo.” Neste período surgem em vários pontos do Brasil especialmente Rio, São Paulo, Bahia, outros movimentos: no Recife surge o Movimento de Cultura Popular, mais ligado à alfabetização que foi criado no governo de Miguel Arraes.
E a postura do Centro Popular de Cultura afinal como era? Era, diz Leon, de uma arte comprometida não apenas com idéias, teorias que servissem à mudança, mas uma arte comprometida na prática. Quer dizer, eles consideravam que as obras deviam estar ligadas a este povo de maneira íntima. O povo não deveria apenas vê-la, mas participar da sua criação.
Talvez esta característica afinal fizesse a diferença entre o Centro Popular de Cultura e o Teatro de Arena, considerado na época por Leon e seus companheiros apenas um teatro inconformado. Para eles do CPC, um teatro popular deveria estar vinculado à própria transformação política da sociedade. Devia servir à luta do povo como instrumento de sua conscientização e meio de organização.
Mas nem tudo corria as mil maravilhas no CPC. Hoje, olhando de longe, Leon Hirszman critica as posições assumidas pelo movimento, detectando dois erros principais: o dogmatismo e o espontaneísmo. O primeiro, idealista, porque superestimava a função social da arte, do artista, que pontificava dizendo o que devia e o que não devia ser feito. Esta postura segundo ele, acabava por cair numa abstração política, não levando em conta movimentos culturais e realidades diferentes.  “Para ter esta missão de conscientizar a todo custo, nós não partíamos da consciência real, mas da consciência necessária, o que acabava por desembocar numa visão metafísica do mundo.”
O segundo erro para Leon, foi o espontaneísmo, o liberalismo, oposto ao dogmatismo, mas igualmente importante. Para os partidários desta corrente, não havia necessidade de conhecimento, de superação de nível. Eles consideravam que o povo, na sua “santidade’”, já tinha uma consciência em si, como se não houvesse leis universais.
“O fascismo precisa da separação do ‘culto’ e do ‘popular’. A postura de dar ao povo apenas folclore, esta tendência que acredita que a consciência do povo já está contida na expressão da sua cultura é paternalismo. O conhecimento das formas de exploração, de acumulação, do processo de lucro, são dados do culto e do popular. Na medida em que se mantém estas duas coisas separadas  se mantém uma situação de tutela. E manter o povo na tutela é mantê-lo inativo , sem armas que possibilitam o conhecimento da própria sociedade e sua transformação.”
Por esta razão, Leon acredita na necessidade de se combater estas duas tendências: só desta forma a prática política não será uma resposta teórica às discussões de gabinete. A resposta segundo ele deve vir da prática política. E então chegamos à questão democrática. “Sem condições de liberdade política é muito difícil estabelecer uma vontade política nacional e popular.”

Hoje, Leon vê o processo da arte de outra forma: acredita que é preciso conviver com o pluralismo na produção artística, ou seja, com a riqueza das múltiplas experiências. Só este modo de ver as coisas vai promover o abandono do velho maniqueísmo da separação entre popular e artístico. Isso porque acredita que tanto o popular é artístico, como o artístico deve ser popular. 
“Ocorre que a gente não considera a criatividade brasileira. Há forças incríveis que ainda não foram mobilizadas. A resistência pode se dar em vários níveis: da religião popular, e da literatura, por exemplo. A literatura mapeando, e a outra fazendo com que a felicidade não seja vislumbrada só depois, no paraíso, mas aqui e agora. Hoje no Brasil, já se começa um processo de ligação dessas coisas todas”.
Mas isso tudo, Leon Hirszman enfatiza, quer dizer, a produção artística não vai poder avançar muito sem uma nova Constituinte, sem que as liberdades políticas sejam recuperadas pelo povo. Aliás, a Anistia, ele considera, antes de tudo uma demonstração de sinceridade de propostas. Lembra que na Alemanha nazista, os expulsos por Hitler puderam voltar em menos tempo que os nossos exilados. Então, o que fazer? Como sair dessa?
“Para recuperar a criação, sair desta catinga,” ele acredita, “ vai ser preciso estudar o problema do monopólio dos veículos de comunicação de massa como o rádio e a televisão. O controle sobre estas concessões públicas deve ser exercido pelo Estado democrático e não pelos atuais esquemas de publicidade e venda associados ao autoritarismo vigentes.”
Aliás, Leon Hirszman reforça este ponto: a necessidade de se recuperar o humor. “Esta discussão que nós, do chamado Cinema Novo, tínhamos já naquele tempo. De repente todo mundo ficou sério demais. O humor e o sexo precisam ser recuperados pelas fôrças progressistas porque eles fazem parte da sua visão de mundo. Hoje se vê essa perda de humor, essa falsa solenidade. E esta recuperação poderia começar a ser feita pela própria televisão que começaria por olhar o adulto como adulto. Escapes do tipo falsa pornografia não terão mais mercado.”

Em dezesseis anos de carreira, Leon Hirszman considera que fez poucos filmes e recorda que Pedreira de São Diogo, episódio do filme Cinco Vezes Favela feito em 1962, e Maioria Absoluta que mostra a situação social, política e econômica dos analfabetos, realizado em 1963, até aquela altura não haviam sido exibidos no Brasil ainda que tenham participado de vários festivais no exterior. A Falecida, baseado na peça de Nelson Rodrigues feito em 1964 acabou sendo um fracasso de bilheteria ainda que sucesso de crítica.
E foi justamente a partir deste filme que Leon resolveu tentar uma produtora própria e fundou junto com Marcos Farias, a Saga Filmes, sendo desta fase os filmes: Garota de Ipanema (1967), Sexta Feira da Paixão, Sábado de Aleluia episódio de América do Sexo (1969) o documentário Nelson Cavaquinho (1969).
 A Saga Filmes produziu ainda a Vingança dos Doze, de Marcos de Farias, Faustão, de Eduardo Coutinho, além de ter sido sócia dos filmes, Capitu, de Paulo César Sarraceni, O Bravo Guerreiro, de Gustavo Dahal, Babel, A Garota Propaganda, de Maurício Capovilla. E finalmente São Bernardo, de 1972, foi seu último filme feito pela Saga Filmes.
A produtora faliu e Leon ficou, segundo ele, “interditado comercialmente” por seis longos anos. Neste período ele produziu comerciais para a televisão e vários documentários: Megalópolis, Ecologia, com verbas do Instituto Nacional do Cinema; Cantos do Trabalho no Campo, realizado em 1975, que mostra um mutirão de construção de uma casa de pau a pique, que foi subvencionado pelo Departamento de Assistência Cultural do MEC.
Mas foi um dos seus mais recentes filmes Brasil: da Nação, do Povo, feito em 1977, um documentário sobre a cultura brasileira em co-produção com a Televisão Italiana que permitiu a Leon fazer a sua autocrítica e compreender a questão democrática de forma mais conseqüente. Para este filme Leon entrevistou cinco professores brasileiros sobre temas importantes: Fernando Novais responsável pelo tema: Crise no Antigo Sistema Colonial; Sergio Buarque de Hollanda por Império; Fernando Henrique Cardoso-República e Situação Política Atual; Maria Conceição Tavares: Modelo Econômico nos Últimos Dez Anos e Impasse Atual e Alfredo Bosi sobre a História da Cultura Brasileira em particular da Literatura Brasileira.  Brasil: da Nação, do Povo, o filme, tem duas horas de duração e Leon (àquela altura) esperava poder exibi-lo no Brasil.

“Para a gente que faz cinema, a situação do conflito com o imperialismo, a ocupação de nossas telas, nos dá a tônica de um nacionalismo muito forte que acaba por fazer que se compreenda mal a questão do povo, a questão democrática, do estado autoritário e do estado democrático. Isso porque em nome de uma luta de mercado, muitas vezes subestimamos a luta pelas liberdades democráticas. É preciso compreender que não haverá luta conseqüente pela independência nacional, pela descolonização cultural, sem uma efetiva participação popular, sem a defesa dos assalariados.”
Esta postura não significa que não se deva continuar lutando pela ocupação das telas. Por esta razão Leon Hirszman é vice-presidente da Associação Brasileira de Cineastas que luta contra o “dumping” de percentuais e preços dos filmes estrangeiros oferecidos em dois terços do mercado brasileiro, que , poucos sabem, impedem que a produção cinematográfica brasileira tenha uma vida superior a cinco anos. Depois deste prazo, o filme brasileiro não cumpre mais a lei e ao mesmo tempo não tem condições de competir com a imensa massa de filmes estrangeiros que inundam o mercado, oferecidos a preços diferenciados, chegando até a preços inferiores a mil cruzeiros.
A ABRACI encaminha ainda outros projetos como a reformulação da Lei de Direitos Autorais que prevê que se pague direitos autorais só depois do filme ter alcançado uma renda dez vezes maior que seu custo, coisas que, segundo Leon nunca nenhum filme brasileiro conseguiu. Além disso, a entidade participa junto à Comissão Permanente de Luta pela Liberdade de Expressão que visa o fim da censura. Leon tem vários projetos para um futuro próximo: realizar junto com Chico Buarque de Hollanda um filme baseado na peça Gota D’Água, e adaptar Memórias do Cárcere, de Graciliano Ramos.
Infelizmente estes projetos não foram realizados por ele. Memórias do Cárcere foi feito, por outro cineasta: Nelson Pereira dos Santos, em 1984 sendo que Graciliano foi interpretado por Carlos Vereza, e sua mulher Heloísa (que lhe faz algumas visitas na prisão) por Glória Pires. Mas infelizmente no cinema, Gota D’Água, ainda não conseguiu um outro aventureiro que o fizesse.

Dez anos após sua morte Leon ganhou uma biografia, assinada pela jornalista e escritora Helena Salem, que restitui em toda a sua integridade a figura do cineasta e batalhador das causas culturais e políticas. Segundo os editores da Rocco, responsável pela edição, o livro é o resultado de um meticuloso trabalho de pesquisa de Helena Salem, autora de dois outros trabalhados na área do cinema: Nelson Pereira dos Santos: O sonho possível do cinema brasileiro, já em segunda edição, e de 90 anos de cinema: uma aventura brasileira. Consideram que Helena Salem a partir desses dois trabalhos “se deu conta da necessidade de fazer o mesmo percurso interdisciplinar do seu biografado”.
Daí que, além de consultar o vasto material de imprensa da época, a bibliografia pertinente e os filmes do diretor, entrevistou dezenas de interlocutores de Leon Hirszman: diretores de cinema (Walter Lima Junior, Nelson Pereira dos Santos, Cacá Diegues, Eduardo Escorel, Bernardo Bertolucci, entre outros), atores (Fernanda Montenegro, Othon Bastos), músicos (Caetano Veloso, Edu Lobo), fotógrafos (Lauro Escorel, Luís Carlos Saldanha), economistas (Maria da Conceição Tavares), filósofos (Leandro Konder), psicanalistas (Joel Birman), psiquiatras (Nise da Silveira), além de familiares e amigos.
“Os testemunhos dessas pessoas permitiram à autora matizar a personalidade e o pensamento desse artista que deixou uma obra extensa, variada e fascinante. Obra que é estudada com apurado senso crítico por Helena Salem - o que enriquece extraordinariamente o seu livro e o torna indispensável para se conhecer um período importante da cinematografia nacional.”
O resultado desse trabalho é uma biografia com 382 páginas: Leon Hirszman o navegador das estrelas (Editora Rocco, 1997, Rio de Janeiro) que recorda para as novas gerações a importância desse cineasta, um dos mais importantes do Brasil, um dos fundadores do Cinema Novo, e que continua sendo lembrado pelos seus pares, como um elemento aglutinador nas palavras de Cacá Diegues, ou “o maior articulador que o cinema brasileiro já teve e um exemplo de convivência universal” como lembra Nelson Pereira dos Santos”.
Reconhecimento, aliás, merecido por este artista que no decurso de três décadas transitou por diferentes áreas da vida cultural brasileira deixando uma herança indelével pela interação que conseguiu realizar entre o movimento que ajudou a criar no inicio dos anos 60 e que foi se consolidando ao longo do tempo e influenciando jovens diretores que a partir dos seus filmes e idéias começaram a renovar suas temáticas.
E Leon Hirszman ganhou ainda, de 2 a 11 de setembro de 2005, uma das mostras mais completas sobre a sua carreira: promovido pelo SESC/SP e Secretaria Municipal de Cultura, com apoio do CTAV (Centro Técnico Audiovisual).
O público pode assistir seis longas e dez curtas metragens realizados pelo cineasta entre 1972 e 1986, no Cine Sesc e na Galeria Olido, além do vídeo Leon de Ouro, dirigido por Eduardo Escorel, que aborda a vida e obra de Hirszman que morreu em 1987. Entre os destaques da mostra estava o premiado: Eles Não Usam Black Tie, São Bernardo, Garota de Ipanema, e ainda a trilogia Imagens do Inconsciente, um dos últimos trabalhos de Leon, desenvolvido durante três anos, onde ele aborda o universo artístico interior de três pacientes do setor de terapêutica ocupacional de um centro psiquiátrico do Rio de Janeiro.
Neste evento Leon Hirszman foi homenageado ainda com o lançamento de um catálogo com uma entrevista inédita concedida a Paulo Emílio Salles Gomes para a extinta revista Argumento.


Ana Lúcia Vasconcelos (Brasil, 1944). Atriz, dramaturga, ensaísta. Contato:analuvasconcelos@globo.com. Página ilustrada com obras de Luis Caballero (Colombia), artista convidado desta edição de ARC. Agulha Revista de Cultura # 49. Janeiro de 2006.






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