sábado, 19 de setembro de 2015

ERNESTO SAMPAIO | As mãos ao nível de nós mesmos


A realidade do surrealismo não tem limites. Poeta surrealista, o campo prospectivo de Cruzeiro Seixas é o desconhecido ilimitado de onde brotam as imagens nas quais se expressa, através do inconsciente individual e do inconsciente coletivo, da voz ancestral dos mitos, das recordações, dos desejos, desde a infância mais remota, a essência profunda do nosso ser.
Se o conhecimento resulta da participação do homem no cosmos, é preciso procurar na completa imersão em si mesmo a fonte de toda a sabedoria. Aí encontra o homem a porta que se abre ao mundo, o umbral que, transporto, o despersonaliza e universaliza. Há que penetrar muito fundo no próprio espírito para abandonar o cárcere do eu racional, esse lugar fechado a partir de onde toda a projeção para o mundo é impensável.
A realidade transforma-nos e nós transformamos a realidade. Esta interação dialética constitui a essência do conhecimento poético. O surrealismo está com quem defende tal princípio. Mas com quem o defende até às últimas consequências. O infinito fluir em que consiste o conhecimento só pode ser dado integralmente pela poesia, e a poesia dá-o mediante a imagem que se produz e destrói a si própria, deixando-nos a luz do conhecimento. Só quando a imagem é combustão pode iluminar a realidade. Como nestes poemas desenhados de Cruzeiro Seixas, onde nada é fácil, nem natural.
Assombra a intuição brutal e profunda da vida e da morte em visões como estas, com raiz na valorização expressiva da imagem corporal, no fascínio pela materialidade dos corpos, mas uma materialidade que é mesma dos sonhos. As fontes desta arte são o desejo e a memória, as suas catástrofes e transfigurações, e as sombras aqui projetadas são ecos daquela "segunda vida" de que falava Nerval, onde "só os sonhos propriamente nos pertencem", mas uma segunda vida que não se distingue, ou não deveria distinguir-se da primeira.
Arrisco avançar que nestes poemas-desenhos o poeta expressa uma experiência do desmoronar do eu (pelo menos do eu poético), e creio que a maneira encontrada para recuperá-lo é a construção de uma espécie de retórica da ruptura; o eu rasga-se e o mundo aparece. Em Cruzeiro Seixas, a dissolução não é um movimento, mas um estado. A construção do poema-desenho articula esse estado como estado prévio para a sua superação: ao reconhecê-lo, o eu solipsista vazio (queda que não cai em nenhum lado, ou sempre cai noutro lado) cerra a brecha por onde ia desaparecer. A ruptura operada por Cruzeiro Seixas não é consequência deste movimento último, mas ato de violência em relação a si mesmo e em relação ao mundo -  ato de violência que os restaura a ambos.
As raízes de uma poesia como esta encontram-se nas profundezas do inconsciente e é preciso que o poeta se abandone às suas vagas sem terror, não tema entregar-se a um certo grau inalienável de furor. O seu material são os sonhos efetivamente sonhados, que se nos dirigem na profunda linguagem do real porque partem da inesgotável fonte de todo o conhecimento, de lá onde se engendra a verdadeira sabedoria, o mundo nos transforma e nós transformamos o mundo.
A recusa da realidade dada e o anseio pelo maravilhoso são ambivalentes nestes desenhos, traduzindo-se em sinais contraditórios: por um lado, aspectos do real, daquilo a que poderíamos chamar, segundo a terminologia psicanalista, "o conteúdo manifesto" do universo; por outro lado, alusões ao "conteúdo latente" impulsionado pelo desejo. Tal diversidade de fatores essenciais outorga a estas imagens o seu caráter dramático e alucinante, impondo acima de tudo o sentido da contradição. Fundamentam-se na oposição de identidades dotadas de um nexo comum, ou na associação de outras pertencentes a ordens diversas, quer dizer, na manifestação simultânea do pluralismo e do simbolismo de todas as coisas, na sua dependência das secretas estruturas do ser, de que precedem por emanação, e na sua nebulosa independência em relação à origem e em relação às outras. O prazer e a dor, o bem e o mal, o belo e o horrível surgem menos por causa da sua condição particular e mais como elementos especialmente aptos para ser confrontados, sinais capazes de mostrar a unidade desgarrada, a ruptura da imagem do mundo, o desajuste interno de todos os sistemas que se abatem sobre o homem com todo o seu peso insuportável. A relação entre "o movimento e o repouso", que Breton considerava necessária para a expressão surrealista, tem o seu paralelo na relação entre o formal e o informe, o contínuo e o descontínuo, o finito e o infinito, o material e o espiritual, o figurativo e o ctônico, deduzido de um sistema superior e o emergente das profundidades. Todas essas contradições integram estas imagens, mas não se fundem num termo médio, antes permanecem soando como uma dissonância em que cada nota exalta o valor das que chocam contra ela.



São imagens exógenas de um mundo em formação ou decomposição, visões de universos gelados ou noturnos, metáforas figurativas estáticas e claras, aparições sobre fundos geológicos, metamorfoses, estados em que o físico e o psíquico passam por transmutações constantes e imprevisíveis. Através destas imagens mudas fala a outra voz, que não ouvimos com os ouvidos, mas com os olhos e com o espírito.
Poesia e artes plásticas desenvolvem-se em territórios opostos: o campo da poesia é o tempo e o das artes plásticas o espaço. A arte de Cruzeiro Seixas situa-se na interseção destes dois campos. O poema passa e ao passar transforma-se; o quadro mantém-se sempre idêntico a si próprio. E contudo, a faculdade que rege poesia e pintura é a mesma: embora o pintor se sirva dos olhos e o poeta da linguagem, olhar e linguagem obedecem ambos à imaginação. Tal como acontece com outros artistas, na obra de Cruzeiro Seixas a imaginação é a faculdade que faz comunicar poesia e pintura, mas não como ponte a unir duas margens, antes como abraço de luta, como fusão que aniquila.
Poeta de imagens visuais, Cruzeiro Seixas concebe o desenho, não só nem exclusivamente como composição plástica, mas como metáfora dos seus sonhos, obsessões, cóleras, temores e desejos, espécie de espelho mágico alternadamente fasto e nefasto que desfigura e transfigura as imagens. O desenho transforma-se em poema e oferece-se ao espectador como um feixe de metáforas entrelaçadas. As formas aparecem e desaparecem, entrelaçam-se, desenlaçam-se, e nelas o eco ocupa uma função primordial, consistindo na repetição quase maníaca de certas imagens, submetidas a deformações e mutilações inquietantes. O eco é a manifestação rítmica da obsessão. Mais exatamente, é uma metáfora da obsessão: através de repetições e variações a imagem obcecante transforma-se em ritmo, como se os desenhos fossem versos.
Começamos por dizer que a arte de Cruzeiro Seixas não era natural. Muito menos natural e bastante mais difícil é o que se tem tentado no nosso pobre meio; Negar-lhe o lugar que ocupa no discurso da arte portuguesa, ou discutir-lhe os dotes plásticos. Nele, a singularidade da atitude e a heterodoxia da linguagem tornam a sua obra apaixonante, fazem que ninguém fique impassível perante ela. O lugar estratégico a partir do qual esta obra cumpre a sua função está indissoluvelmente ligado ao surrealismo.
Virá talvez um tempo em que se admitirá uma distinção suprema entre a arte (quer dizer, a poesia) e a atividade artística "puramente" estética (derivada de uma concepção estreita e rotineira da estética). O surrealismo terá pelo menos presumido contribuir para esta distinção que começou a vislumbrar-se após a fusão de dois termos ainda embrionários, um de origem empírica, outro de origem filosófica, em e pelo romantismo, fusão que o surrealismo assinala ao mesmo tempo o ponto de incandescência e a ruptura.




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Ernesto Sampaio (1935-2001). Ensaísta, jornalista, poeta, foi um dos mais expressivos estudiosos do Surrealismo em Portugal. Ensaio datado de março de 1995. Além de crítico de teatro, foi também um inestimável tradutor de autores como Artaud, Éluard, Breton, Péret, Arrabal, Ionesco, Adamov, Benjamin, Wilde, Eliot, dentre inúmeros outros.







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