segunda-feira, 31 de agosto de 2015

ALEXANDRE BONAFIM | Dora Ferreira da Silva: a graça poética do sagrado


No panorama da literatura brasileira, a obra da poeta Dora Ferreira da Silva destaca-se pela completa entrega a um sentimento místico da vida. Trata-se de uma poesia que se irriga nas fontes do sagrado. A palavra, para Dora, desvela, no chão do mundo, o mágico e o perene, numa busca pela face de um Deus sempre desperto e, ao mesmo tempo, oculto na matéria.
Dora teve uma longa carreira literária. Devotou praticamente toda a existência à poesia. Publicou, ao todo, nove livros de poemas, dos quais se destacam Retratos da OrigemPoemas da EstrangeiraCartografia do imaginário e o seu mais recente, Hídrias, vencedor do prêmio Jabuti 2005.
Teve sua obra coligida em Poesia reunida, livro vencedor do prêmio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras. Ela, ao lado de seu marido, o filósofo Vicente Ferreira da Silva, publicou importante revista, na década de 50, chamada Diálogo. A revista Diálogo serviu como fonte de difusão da produção intelectual da época e foi referência para as artes e ciências do Brasil. Após a morte do marido, em 1963, a poeta passa a publicar outra revista, a Cavalo Azul. Além de poeta, Dora também foi tradutora. Sua tradução das Elegias de Duíno de Rainer Maria Rilke foi considerada, pela crítica especializada, uma das realizações mais bem sucedidas, em português, da obra do escritor de Sonetos a Orfeu. Rilke foi presença marcante na vida e na obra da poeta. A poesia de Dora possui um tom órfico, busca por um outro sempre ausente, muito semelhante à procura do Deus terrível, empreendida por Rilke. Dora também traduziu outros grandes poetas do Ocidente: Hölderlin, Novalis, Saint-John Perse, San Juan de la Cruz. Foi Dora Ferreira da Silva quem também traduziu os poemas que compõem a versão brasileira da obra de Hugo Friedrich, Estrutura da lírica moderna.
O sentimento órfico na lírica de Dora, de tom rilkeano, levou a poeta a sondar a linha divisória entre o sensível e o invisível. É sempre num além, fronteira entre o mundo e a irrealidade, que o outro desperta sua presença.
Esse ser inefável ganha inúmeras conotações na obra da autora. Trata-se de um “tu” que pode ser tanto um pai, um amante, um irmão, um amigo, ou até mesmo Deus. Essa polissemia da segunda pessoa revela ao leitor uma poesia arrebatada, contorcida por um sentimento sofrido e, ao mesmo tempo, celebratório, canto a homenagear, constantemente, a natureza e os seres, mesmo quando esses são degradados pela efemeridade do tempo. A lírica de Dora, de uma melodia sutil e refinada, ecoa seu canto de beleza até mesmo ante a face da morte e da ausência. Uma gratidão pelo dom da vida, com toda a sua carga de encanto e terror, resplandece em sua palavra, ressaltando uma verdadeira paixão pela existência humana. É dessa vigorosa paixão pela vida que irrompe a busca do sagrado.
José Paulo Paes, importante poeta e crítico literário, elucida essa forte busca da presença divina:

[…] Dora Ferreira da Silva pertence à linhagem daqueles poetas cuja palavra, fiel nisto às próprias origens da poesia, quando canto e ritual eram indistinguíveis um do outro, ronda o tempo todo as fronteiras do sagrado. Não porque queiram eles dar testemunho deliberado de sua adesão a esta ou àquela confissão religiosa, mas porque uma natural disposição de sensibilidade os leva a ver na realidade menos o espaço fechado do material e do sensório que o espaço aberto da hierofania, para usar o termo, hoje consagrado, proposto por Mircea Eliade para designar “o ato da manifestação do sagrado”. No domínio da poesia, esta presença do sagrado não deve ser entendida no sentido restrito de manifestação direta do divino, e sim o sentido mais amplo de ânsia de transcendência do Eu rumo ao Outro.

O outro é o corpo, a carne, de onde irrompe o sentimento sacro da existência. Esse outro, por sua vez, pode ser tanto um ser humano, quanto um elemento da natureza: um pássaro, uma árvore, um rio. O outro amado é o universo, o cosmos inteiro, simbolizado pela contingência de um ser ou objeto. No ínfimo desponta a sede, a fome pelo infinito. Tal como o Aleph borgiano, pequena esfera a conter todo o globo terrestre, o ser (ou objeto) eleito por Dora contém o incomensurável, o ilimitável. É o que podemos perceber no seguinte poema:

AGORA

Agora que no vagar dos pensamentos
chamo-te - pai - da estação da infância
como se pudesses voltar no rápido só para me embalar,
fecho os olhos dentro de tuas pálpebras
És minha invenção de amor. Olhos melancólicos
os teus. Eu contigo em degredo.
Difícil tocar a face desse segredo cada vez mais longe
e partir e também ficar, embora encontrada a chave da porta mais secreta.
Se eu pudesse dizer: seja a paisagem de seda azul
e o último sol fortíssimo do ocaso
- eu liberta enfim de tuas pupilas.
Um rio passaria desenhado pela mão mais fina. Passa uma pluma apenas uma
no rio acordado.

Esse ser ausente, “pai da infância”, está contido em um além distante mas, ao mesmo tempo, está na intimidade do eu lírico. O outro é plasmado, assim, pelo devaneio (“invenção de amor”), capaz de transfigurar a lógica do real e consubstanciar espaços díspares (o além e o aqui). Na busca desse ser, ao mesmo tempo íntimo e distante, o eu lírico revela um sentimento de orfandade, já delineado pela presença da palavra “pai”. Somente a possibilidade do “dizer” (“se eu pudesse dizer”), palavra mergulhada no silêncio, poderia libertar o eu lírico das amarras que o prendem a essa presença-ausência do outro. Todavia, temos de ler essa falência da palavra, ou seja, essa impossibilidade de nomear o amado, pelo viés da ironia, pois todo o poema é a nomeação, o batismo do outro, instaurando-o, mesmo que distante, no próprio âmago do eu lírico.
Eis uma verdadeira manifestação da Hierofania, da presença divina. Também Deus é uma presença e uma ausência. A poesia de Dora dialoga com esse ser invisível, materializando-o pela palavra poética. O poema passa a ser o corpo do divino, a carne de um ser supremo, vivo e pulsante somente através da palavra poética. É importante notar que essa presença nunca se realiza completamente, de forma objetiva, no real, na vivência empírica do poeta, mas na vivência espiritual da palavra. Giorgio Gambirasio, em seu livro Teologia dos Deuses bíblicos, revela-nos o perigo da manifestação direta do divino. Há uma necessidade, entre o homem e o Deus, de uma distância, sem a qual o humano seria esmagado pela força da revelação sacra:

O sagrado é sempre ambivalente: ele atrai e repele; inspira veneração, mas também temor; pode resolver nossos problemas, mas pode também atrapalhar as nossas vidas ou até nos destruir. Assim, a hierofania (a manifestação do sagrado em geral) e a teofania (a manifestação de um deus pessoal, em particular) produzem reações conflitantes nos humanos. Resulta que, nas relações entre os deuses e os humanos, convém que estes mantenham sempre respeitosa distância daqueles: a presença manifesta de um deus, a teofania, pode ser muito perigosa para os mortais.

Podemos afirmar que, para se resguardar da revelação direta do sagrado, Dora o reveste pela palavra poética. A poesia, torna-se, assim, uma via de transcendência, ponte capaz de ligar o homem ao divino. Conforme aponta Galimberti, o sagrado é manifestação de uma grandeza maior, ou seja, a revelação do próprio mistério, grandeza essa que atrai e repele o homem:

“Sagrado” é a palavra indo-europeia que significa “separado”. A sacralidade, portanto, não é uma condição espiritual ou moral, mas uma qualidade inerente ao que tem relação e contato com potências que o homem, não podendo dominar, percebe como superiores a si mesmo, e como tais atribuíveis a uma dimensão, em seguida denominada “divina”, considerada “separada” e “outra” com relação ao mundo humano. O homem tende a manter-se distante do sagrado, como sempre acontece diante do que se teme, e ao mesmo tempo é por ele atraído, como se pode ser com relação à origem de que um dia nos emancipamos.

Apesar do sentimento do sagrado ser inerente a todas as religiões, ele é, antes de tudo, uma manifestação da própria vida. Não há necessidade de crer em Deus, ou ter uma religião para se ter acesso ao sagrado. A poesia foi, em todas as eras, uma forma de ligar o homem ao divino. Aliás, toda a poesia de Dora é um verdadeiro caminho a guiar seus leitores em direção às hierofanias. Hierofania, termo aqui proposto, é antes de tudo manifestação do sagrado, do mistério a pulsar além da vida cotidiana. Sobre essa escavação do real em busca da transcendência, tão cara à poesia de Dora, Per Johns expressa o quanto tal feito é de suma importância para a poesia da autora de Retratos da origem:

[…] falar de Dora Ferreira da Silva obriga-nos, em primeiro lugar, a falar de sua fidelidade a si mesma, ao longo de uma trajetória que entreteceu poesia altíssima a uma não menos relevante atividade tradutória e ensaística. Em segundo, e não menos, a falar de sua coerência, talvez obsessão - e não há grande poesia sem obsessão - na faina infatigável de desvelar “a grande escrita cifrada que se pode ver por toda a parte”, de que nos deu conta Novalis, mas que já ninguém vê (ou quer ver). Em termos imediatos isso significa a recuperação de um contato mais direto e íntimo com as fontes primárias da vida, um contato que se vem gradativamente perdendo […]. Nesse sentido a poesia de Dora procura religar-se, mas não como religião estrita que se automatiza em ritual e ladainha, antes como religiosidade difusa que ilumina os desvãos claro-escuros do ser, como se fosse uma viagem de descobrimento. Mas entenda-se: é uma viagem sem atalhos ou simplificações esquemáticas, que envolve riscos por envolver a totalidade do ser […]. E isso implica a penosa necessidade de perceber o etéreo misturado ao terreno, o bem irmanado na mesma vergôntea ao mal, ou vice-versa. Em suma, implica um resgate da milenar sabedoria do mito […]. É um exercício que pode parecer fácil, mas não é, por requerer em primeiro lugar a difícil prática de uma humildade essencial - em face do que Emanuel Levinas chamou de vestígios de Deus.

Esses vestígios de Deus são, na obra de Dora, a própria poesia. Em face do mundo, o eu lírico dos poemas de Dora expressa uma visão alumbrada, semelhante às percepções dos seres especiais, tais como o estrangeiro, a criança e o louco. É significativo o fato da autora ter, inclusive, um livro chamado Poemas da estrangeira. José Paulo Paes, nas orelhas dessa obra, assim expressa o olhar estrangeiro de Dora:

Na semântica de “estrangeiro”, tanto quanto na do “exílio”, há um claro jogo opositivo entre o cá e o lá. Jogo que serve para subsumir uma essencial oposição entre o ser e o estar: o estrangeiro está num lugar de onde não é; daí o seu sentimento de exílio. Ao dar o título que deu a este volume, Dora Ferreira da Silva quis possivelmente sublinhar uma condição existencial que não é apenas dela, mas dos poetas da modernidade. Disse-o Baudelaire, o fundador, quando se viu como um albatroz “exilado no chão” e reservou compensativamente para si um lugar no céu, entre as “santas legiões”.

Tal olhar estrangeiro se aprofunda na essência da matéria, no cerne dos seres e objetos, resgatando-lhes uma aura perdida, instaurando-os em uma dimensão atemporal. É o que se pode perceber no seguinte poema:

MULHER E PÁSSARO

Linha invisível
liga-me àquela andorinha:
tato percorrendo
um trajeto
de comunhão. O pássaro
debate-se em meu peito.
Ou coração? A andorinha
se esvai na tarde. Leva consigo
o que não sei de mim.

O pássaro (ou o próprio peito do eu lírico?) evola-se no infinito, esfuma-se nas profundezas do céu. Mais uma vez estamos diante de um ser contingente, o pássaro que, por sua vez, trava contato com todo o cosmos. Essa andorinha mágica, por sua vez, confunde-se com o próprio eu da voz lírica. Temos o entrecruzamento de dois seres: eu lírico e pássaro, entrecruzamento esse que revela uma terceira pessoa: um outro infinito. Uma verdadeira santíssima trindade é esboçada nesse poema em fuga, no qual o mistério da existência humana é explicitado com toda a sua carga dramática.
Vários são os poemas em que o outro se reveste com as cores do divino. É o que se pode notar nesse outro poema:

ALGUÉM…

Alguém desfecha a flecha do voo:
reflexo no vidro onde a chuva
penteia os cabelos.
Cantiva de muitas lágrimas
dos suspiros do vento
nesta casa pousada na montanha
aguardo criança flor anjo ou pássaro.
Pensamentos alígeros – andorinhas
nos aguaceiros de verão
traçam oblíquas, desaparecem
no céu que escurece.
Abraçada à minha alma
não sinto o tempo latejar por perto.
O incerto longe é a minha vocação.
O longe do longe onde talvez
estás sempre em despedida
do invólucro que não te retém. E eu
sempre atrás do aceno teu
do aroma que te esquece e se esvai.
Se um lenço de fino linho
se desprendesse de teus dedos (sonho meu)
o caçaria como a um pássaro
que longe vivia
e me pertencia.

Nesse poema, o eu lírico esboça a vocação de toda a poesia de Dora: o incerto longe, o além do além, morada de um ser erradio, de um ser invisível, é a vocação dessa lírica órfica. Mais uma vez, o infinito é delineado pela palavra, revelando uma presença-ausência sagrada, intensamente amada. Os pássaros novamente metaforizam a efemeridade das presenças. O ser amado, tal como o voo de uma andorinha, é um fragmento do tempo, um átimo fugaz do grande relógio da eternidade, pronto para se esvair nas despedidas e na morte. Aliás, a morte também é fundamental na obra da autora de Hidrias:

MURMÚRIOS

Pousa num ramo um sopro de agonia
dos que morrem (sem saber)
em nosso coração.
Suspira a noite no vento vadio.
Amados mortos: tentais dizer
o quanto amais ainda?

O eu lírico mergulha na visão do sensível, mas também no invisível. Como os antigos poetas da Grécia arcaica, Dora possui o dom de ir ao Hades e travar um diálogo com a própria morte. Como Orfeu, a poeta mergulha nas trevas da noite, sempre guiada pelo archote da poesia, e vislumbra as vozes amadas, tragadas pelo silêncio perpétuo. Conforme aponta o poeta e crítico Ivan Junqueira, o Deus de Dora, assim como o de Rilke, “não é Dionisos, e sim Orfeu, que, como intui Merquior, só 'começa a cantar a partir da experiência da morte'”
Uma das características da poesia é desvelar o real. Nesse aspecto, a palavra hierofania (“revelação, aparição divina”) entrecruza seu significado com a palavra epifania. O significado da palavra epifania também é, justamente, “aparição de Deus”. A grande hierofania ou epifania cristã é a aparição do Espírito Santo a Maria. Pois bem, na literatura, essa terminologia tomou um caráter metafórico. A poesia revela o mundo e o torna muito mais fecundo aos olhos de quem o contempla. Ela faz com que o cosmos, as estrelas, o sol, mas também as ruas sujas, os cachorros abandonados e feios, tornem-se revelações, aparições do encanto. A poesia enraíza o mundo no coração do homem. A partir dessas aparições, o ser que contempla atinge um sentir raro, um sentir alumbrado, capaz de lhe revelar um outro tempo, o tempo atemporal da poesia. De acordo com o escritor Luiz Ruffato, a epifania é, sobretudo, um instante totalizador, momento de alumbramento, em que o contemplador do mundo atinge a plenitude:

Epifania (do grego epipháneia “aparição”) é um termo da teologia usado para descrever a aparição de Jesus Cristo aos gentios ou, por extensão, uma manifestação divina qualquer. Menos usualmente, podemos […] entender esse conceito como aquele instante mágico em que algo nos ilumina, modificando a substância de nossas vidas, mesmo que só venhamos a ter consciência disso muito mais tarde.

Veja o que o poeta Carlos Nejar afirma sobre a epifania:

A epifania é aparição ou manifestação divina - diz o Dicionário Etimológico, de Antônio Geraldo da Cunha. É o instante de êxtase na palavra. Epifânicos são os momentos de criação de Clarice Lispector, em que o leitor levita com o texto. Ou o texto levita com o leitor.”

No texto literário, a epifania é um momento de plenitude, em que o leitor sente-se arrebatado por completo. Todavia, é importante sempre lembrar que esses momentos estão ligados às revelações que a poesia propicia do próprio mundo. Assim, com a epifania, o texto nos remete ao real, transformando-o em aparição súbita, em surpresa sempre viva. A epifania, por sua vez, relembra a sua origem etimológica, pois, no texto, ela se assemelha ao sentimento do sagrado, à sensação mística propriamente dita. Conforme aponta Bauer, “Por epifania se entende a irrupção de Deus no mundo, que se verifica diante dos olhos dos homens, em formas humanas ou não humanas, com características naturais ou misteriosas que se manifestam repentinamente, e desaparecem rapidamente”. Lembrando Mircea Eliade, a epifania é a inserção do tempo profano no tempo sagrado do amor e da religião. O poeta mineiro Emílio Moura, resume em versos essa noção sagrada da epifania: “Sou um poeta quase místico:/ A vida é bela quando é um êxtase”. Há uma poeta mexicana muito importante para a literatura do Ocidente, que confirma essa força arrebatadora da poesia, trata-se da Soror Juana Inês de La Cruz.
Para essa poeta, o poema é uma forma de gozo místico, no qual a alma trava contato com Deus. Esses momentos líricos foram chamados pelos críticos de cópulas com o divino. A carne sentia um arrebatamento total, um êxtase que era manifestado pela poesia. Eis uma outra perfeita epifania. O poema é esse arroubo, esse estertor, essa intensidade. É importante lembrar que a epifania desvela a realidade em sua nudez total.
Portanto, ela sempre se revela ao poeta através das percepções sensoriais, principalmente pela visão. O olhar do poeta penetra a realidade, transformando as coisas do mundo em revelações. A obra de Dora é, na verdade, uma constelação de epifanias. O olhar, o tato, as sensações físicas, enfim, travam contanto íntimo com o mundo, numa entrega arrebatada do eu lírico à natureza. Essa, por sua vez, é o liame que tece a voz lírica ao sentimento do sagrado:

MULHER E PÁSSARO

Voltamos ao jardim
ao banco lavado pela chuva.
Pedimos o verde ao verde
a flor à flor
sem quebrar-lhe a haste. Bastaria a manhã.
(Nossa presença
desalinha ar e folhas
num frêmito.)
Mas se nada pedimos
como quem dorme seguindo a linha natural
do corpo
respiramos o puro abandono:
um pássaro alveja o azul (sem par)
ultrapassa o muro do possível
e assim damos um ao outro
a súbita presença
do Céu.

Novamente o infinito vem se interpor entre os seres, servindo como verdadeira aparição do sagrado. A natureza é a região eleita para os devaneios amorosos, para os encontros e desencontros dessa poesia em estado de êxtase divino.
Outro fator importante é tentar enquadrar a obra de Dora no panorama da história da literatura Brasileira. Em recente artigo publicado na folha de São Paulo, o crítico Manuel da Costa Pinto inclui a obra da poeta de Poemas em fuga na poesia da geração de 45. Essa geração, muito estigmatizada por diversos críticos, foi condenada pelo cultivo de uma estética anacrônica e obsoleta, uma estética que retomava o formalismo parnasiano, tão atacado pelos escritores do Modernismo. Nomes como os de Péricles Eugênio da Silva Ramos, Domingos Carvalho da Silva e Lêdo Ivo, infelizmente, devido a preconceitos, foram considerados escritores passadistas, conformistas e antivanguardistas. Principalmente, se levarmos em consideração, o ponto de vista da geração que viria logo em seguida, ou seja, a dos concretistas, verdadeiros combatentes da arte propagada pelo grupo de Péricles Eugênio.
O fato é que, condenada pelo formalismo, essa geração não foi devidamente lida. Os poetas de 45 praticaram diversas formas poéticas, do verso livre ao poema em prosa, e tiveram como mestres grandes modernos, como Rimbaud e, até mesmo, os surrealistas. Não podemos esquecer que, Claro enigma de Drummond, carrega muito o lastro lírico dessa geração.
É preciso nuançar que, apesar da poesia de Dora guardar um tom metafísico, como o de Péricles, por exemplo, ou como o de Marcos Konder Reis, ela está distante, todavia, pela sua diversidade de linguagem e temática, da obra dos escritores de 45. Nesse aspecto, a poesia de Dora é um canto solitário na literatura brasileira, como o foi, à sua maneira, o de Augusto dos Anjos. Não se pode negar, por sua vez, o veio simbolista da autora. Entretanto, subscrever sua poesia somente nos preceitos simbolistas é, ainda, uma maneira de minimizar sua obra, visto que a palavra de Dora também ultrapassa as características dessa escola estética. Nelly Novaes Coelho, em seu monumental Dicionário crítico de escritoras brasileiras, pontua algumas considerações iluminadoras:

Poeta de húmus órfico e de linguagem rilkiana, Dora Ferreira da Silva dá voz à poesia do mundo, - aquela que, desde Goethe (século XVIII) e de mil formas, tem dado voz a uma interrogação basilar: a que sonda o ser humano e suas relações com o mundo, com a vida, a morte, a memória, o efêmero, o eterno, etc. Interrogações que esperam, do poeta, a possível resposta, por ser ele o ponto de ligação entre o real e o enigma da vida. É essa concepção de poesia e de poeta que alicerça o universo poético de Dora. Sua poesia é irmã daquelas que, mesmo por diferentes caminhos, se empenharam (e se empenham) em descobrir uma nova ontologia ou nova teoria do ser, a partir de uma concepção de mundo, já não transcendente (como a concepção cristã, centrada num Deus criador), mas imanente (centrada no mundo sensível, no mundo dos seres e coisas concretas, onde estaria oculto o verdadeiro conhecimento da vida, a ser alcançado pelo olhar do poeta e pela palavra da poesia).

A poética de Dora é, sobretudo, panteísta. O Deus está inscrito no visível, no palpável. O sagrado se revela na matéria. Outro fator preponderante, ressaltado por Nelly, é a construção, empreendida por Dora, de um projeto que transcende a própria palavra. O lirismo da autora de Poemas da estrangeira é ontológico, é uma especulação do ser, uma busca das fontes do humano. A poesia seria, assim, uma forma de revelação do ser, tal como propôs Heidegger. Pouquíssimos poetas fizeram tal escavação do Ser. Eis o que torna Ferreira da Silva uma poeta ímpar, solitária, estrangeira em nossa lírica brasileira.
Dora, portanto, escava o real, o cosmos, com intuito de sondar, compreender as raízes do Ser. Especulação do sensível, entrega irrestrita ao real e à própria transcendência do real, a poesia da autora de Hídrias celebra o mundo, para despertar o Deus das pequenas coisas, o Deus imiscuído na pedra, no diamante do próprio real.

***

Alexandre Bonafim (Brasil, 1976). Poeta e ensaísta. Autor do livro Biografia do deserto (2006). Contato: alexandrebonafim@hotmail.com. Agulha Revista de Cultura # 55 (Janeiro de 2007).

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