sexta-feira, 6 de março de 2015

LUCILA NOGUEIRA | Contra o primado da pseudonímia no estudo da poesia de Fernando Pessoa

Uma das maiores distorções a que se tem submetido o estudo da literatura portuguesa tem sido a ênfase injustificável na metodologia estética pseudonímica a que o poeta português nomeou por “obra heterônima”. Esse processo de criação literária, existente desde os tempos bíblicos, reveste-se de uma ficcionalização especial nas mãos de Fernando Pessoa, em meio ao tédio e ao autoritarismo da Lisboa das primeiras décadas do século passado. No entanto, trata-se quase de uma constante em terras lusitanas: veja-se Miguel Torga (Adolfo Correia da Rocha), José Régio (José Maria dos Reis Pereira), Antonio Gedeão (Rômulo Vasco da Gama de Carvalho), Herberto Hélder (Luís Bernardes de Oliveira), Mário Cláudio (Rui Manuel Pinto Barbosa Costa), Adília Lopes (Maria José da Silva Viana Fidalgo de Oliveira). E também em terras lusófonas africanas: José Luandino Vieira (José Vieira Mateus da Graça) e Mia Couto (Antonio Emílio Leite Couto). O Brasil não fica de fora, com Marques Rebelo (Eddy Dias da Cruz), Tristão de Ataíde (Alceu Amoroso Lima) e o contemporâneo Ferreira Gullar (José Ribamar Ferreira).
Também foram muitos os escritores de língua estrangeira que usaram pseudônimos Novalis (Friedrich Von Hardenberg), Voltaire (François Marie Arouet), Sthendal (Henri Beyle), Anatole France (Jacques Anatole François Thibault), André Maurois (Emile Herzog), George Sand (Amandine Aurore Lucile Dupin), Paul Éluard (Eugène Grindel), Mark Twain (Samuel Langhorne Clemens), George Orwell (Eric Arthur Blair), Lewis Carroll (Charles Lutwidge), Rubem Dario (Félix Ruben Garcia Sarmiento), Pablo Neruda (Neftali Ricardo Eliecer Reys Basoalto), Gabriela Mistral (Lucila Godoy y Alcayaga). Entre muitos outros, inclusive vários laureados com o prêmio Nobel.
Em língua portuguesa, o maior uso de pseudônimos vamos encontrar no padre Manuel Antunes: ao todo cento e vinte e quatro, colaborador que era da revista Brotéria em temas filosóficos e literários – no seu caso, o recurso intensivo à pseudonímia tem sido explicado pela necessidade de apresentar diversificação autoral, uma vez que precisava escrever vários artigos em um mesmo número de revista. Sem falar em se constituir uma utilidade estratégica para iludir a censura do Estado Novo, que averiguava mensalmente os conteúdos publicados. Manuel Antunes começa a colaborar na Brotéria em 1949 e foi seu diretor de 1965 a 1982; escreveu nela quatrocentos e dez artigos dos quais duzentos e cinquenta e dois deles foram assinados com os seus múltiplos pseudônimos. O que significa dizer que os adeptos do primado da pseudonímia pessoana nas letras portuguesas, já teriam, diante de Manuel Antunes, que justificar no mínimo a sua pouca informação e reconhecer de imediato o padre como objeto analítico maior do aludido primado.
O pseudônimo, como se sabe, é um nome artístico. É usado com mais frequência na música e no cinema: Woody Allen (Allen Stewart Konigsberg), Charles Aznavour (Shahnour Aznavurjan), Brigitte Bardot (Camille Javal), Enya (Eithne ní Bhraonáin), Rita Hayworth (Margarita Carmen Cansino), Marilyn Monroe (Norma Jean Mortenson). Ele representa uma nova vinda ao mundo, desta vez, no berço da arte. Apesar de típico do romantismo, atravessou as vanguardas e se estendeu até nossa época. Trata-se de um novo nascimento a partir de um novo batismo.
O uso do pseudônimo tem um caráter liberador, tanto em relação aos outros como a si mesmo. Assumir essa postura implica em contestar a imagem da identidade na antiguidade clássica, entendida como cópia ou duplicação de um modelo sempre igual a si mesmo. Na literatura, se por um lado, permite ao autor reduplicar-se, por outro, talvez consiga protegê-lo da opinião pública, além de atuar, também, como estratégia discursiva.
Além de criar nomes artísticos para os poemas que escrevia, Pessoa deu-lhes cosmovisões, estilos de época, biografias. Já tivemos oportunidade de discorrer em ensaio sobre esse aspecto, em 1985, aos cinquenta anos da partida do poeta ("A Lenda de Fernando Pessoa", 2003). No ano de 1935 ele escreve a conhecida carta a Adolfo Casais Monteiro explicando a possível gênese dos “heterônimos” tendo em vista que sua obra poética contém versos em seu próprio nome e outros assinados por Ricardo Reis, Alberto Caeiro, Álvaro de Campos, pseudônimos que Pessoa converte em “personagens de um drama” lírico monologal. A partir daí a pseudonímia começa a ter em Fernando Pessoa um relevo que não acontecera em outros autores, chegando-se ao extremo de afirmar o chamado “primado da heteronímia”, segundo o qual “a singularidade da poesia de Pessoa estaria na proposição não de um só poeta, mas de quatro”: aí residiria o enigma e a força da sua poesia.

Quando criança eu inventava livros e falava sozinha com eles nas tardes intermináveis do sobrado da Rua do Lima, no enorme silêncio gerado no espaço entre o sono da tarde da minha avó Lucila e a mímica habitual de Maria, a empregada muda e surda. A solidão cria uma metodologia especial para a necessidade de comunicação e a arte tem sido sempre uma efetiva e presente resposta, diálogo permanente e companhia fiel que termina por sobreviver ao seu próprio agente criador. A capacidade imaginativa do artista habitualmente o arrasta por caminhos inacreditáveis ao senso comum, mas que, ao surgirem, sempre lhe parecem simples e familiares. Essa maneira de olhar e atuar no mundo funciona inclusive como um código de reconhecimento entre os que são artistas verdadeiramente e aqueles que apenas aspiram a essa condição. Na verdade, além de implicar no domínio técnico, escrever bem um poema é, sobretudo, manter-se fiel às brincadeiras mágicas da infância, sem qualquer medo da censura pública, transportando-as à idade adulta com ousadia e naturalidade.
Ao longo do nosso exercício do magistério em literatura portuguesa, começamos a observar a ênfase progressiva no método autoral pessoano: do famoso baú deixado pelo poeta foram-se descobrindo um total de setenta e dois autores / pseudônimos e isso criou quase como uma obsessão entre os estudiosos, preocupação a ultrapassar em alguns casos a análise da beleza, do sublime, da modernidade e da eternidade dos versos do poeta. E mais: observamos uma ignorância relativa ao contexto social português ao tempo em que Pessoa produziu as suas obras. Além disso, como lembra José Augusto Seabra, Pessoa chegou a pensar em deixar sua obra anônima, assumindo, assim, a nulidade semântica do seu próprio nome; Seabra muito acertadamente recorda que esse fato, apesar de sabido, raramente é posto em relevo:

Pensei, primeiro, em publicar anonimamente, em relação a mim, estas obras, e, por exemplo, estabelecer um neopaganismo português, com vários autores, todos diferentes, a colaborar nele e a dilatá-lo. Mas, sobre ser pequeno demais o meio intelectual português, para que (mesmo sem inconfidência) a máscara se pudesse manter, era inútil o esforço mental preciso para mantê-la.

O professor da Universidade do Porto, Arnaldo Saraiva recolheu um texto pessoano datado de 1914:

Cada um de nós, na sua vida realizada e humana, não é senão a caricatura da sua própria alma. Somos sempre menos do que somos. Somos sempre a tradução para grotesco daquilo que quisermos ser, e que, por isso, intimamente e verdadeiramente somos.

Inventar “pessoas”: não é isso que faz o ficcionista, o dramaturgo? Ser o que se é: ser o que se deseja ser. Ser a si mesmo como se fosse um outro. Identidade pessoal, identidade narrativa. Uma alteridade que atingisse um grau tão intimo que não se pudesse pensar em um sem pensar igualmente no outro. Uma hermenêutica de si mesmo: se a poesia nasce de uma desavença interior, às vezes o recurso à máscara pode nos fazer dizer a verdade. Assumindo vários “eus”, o poeta persiste na dúvida e no mistério sem racionalizar – é o que Keats chamou “capacidade negativa”, ou seja, a permanência na incerteza, a capacidade de suportar o desconhecido. Para lembrar Nietzsche, é preciso que, de vez em quando, descansemos de nós próprios.
A aceitação do jogo de contrários de que se compõe o mundo remete a uma postura que representa a realidade em estruturas discursivas fragmentárias, em oximuros que deconstróem as fronteiras entre os opostos: daí haver quem diga que os chamados “heterônimos” de Pessoa poderiam ser uma resposta à descontinuidade básica entre a realidade e o discurso que deseja representá-la – quem sabe uma declaração artística da impossibilidade do conhecimento da essência das coisas.
O que verificamos é que a multiplicação dos pseudônimos, do ponto de vista da instituição literária, não significa apenas novas personalidades ficcionais criadas por Pessoa, mas um problema que está se tornando sério ligado à questão da autoria: qual a legitimidade da publicação em nome de um autor de uma obra por ele não autorizada? Até que ponto isso pode justificar o interesse editorial de um sempre ávido mercado literário? Por acaso o Fernando Pessoa de hoje, ano de 2007, não surge também modificado pelos organizadores de seus textos, ou quem sabe de acontecimentos desconhecidos do público que ultrapassam a genuína criação da obra?



Carlos Filipe Moisés reforça a idéia dos pseudônimos / personagens proferindo seus monólogos e fornecendo ao leitor perfis de várias personalidades: o enredo ou drama de que essas figuras fariam parte correria por conta da imaginação de quem lê. O mesmo C. F. Moisés menciona haver Pessoa criado os “heterônimos” como quem constrói a sua Family Romance, constituída de mestre e discípulos, influências e contrastes: essa expressão é empregada por Harold Bloom em seu livro “A Angústia da Influência”, para designar o background literário de todo escritor de gênio. Ele refere o caráter de obra fragmentária, in progress, deixada pelo poeta e reafirma tratar-se do exercício semelhante ao praticado pelo romancista ou dramaturgo essa relação ortônimo / pseudônimos. Dessa forma Pessoa cristalizou em seu texto a noção da vida como um teatro, as pessoas com suas máscaras, as personas.
Conforme Eduardo Lourenço, de Pessoa poder-se-á dizer que existiu de forma superlativa por haver concedido a si mesmo vidas imaginárias; espectador privilegiado do seu próprio espetáculo, autor de um “drama vivo” que toma à letra e às avessas a fórmula da teatralidade moderna ilustrada na Itália por Pirandello e na Argentina por Jorge Luis Borges. De modo que sua vida será ela vivida sob o signo da teatralidade, considerando-se que o poeta é o sujeito e o objeto da ação, sendo ainda o espaço da representação: o poeta Pessoa há de fazer tudo o que o ser humano possa realizar para não abandonar o reino da infância em que é o rei dos seus sonhos.
Octavio Paz definiu a obra de Pessoa como a busca de uma identidade perdida: para os românticos, como para Nerval, Rimbaud e os poetas da modernidade, o eu era um obstáculo; Georges Gunthert destaca o “palco poético” em que o autor português se veria a si próprio, representando através dos pseudônimos, mas sem que ninguém conhecesse, à exceção de Sá-Carneiro, o segredo da sua identidade; destaca o importante fato de que para Pessoa, como para outros que o antecederam (Schopenhauer, Kierkegaard, Nietzsche) o pensamento não teria raízes no espírito, mas na realidade, coisa que os românticos, alemães e ingleses, há muito teriam pressentido.
A questão dos múltiplos pseudônimos bem como da criação de “personagens” para atribuição de poemas, é coisa bastante antiga em literatura, já realizada e bastante conhecida por autores como o poeta escocês James MacPherson e o filósofo dinamarquês Sören Kierkegaard.
Em 1760, por insistência de amigos, James Mac Pherson (1736-1796) publicou os “Fragmentos de Poesia Antiga coletados nas Altas Terras da Escócia”, que seriam supostamente traduções suas dos antigos poemas gaélicos. Em 1761 e 1763, sugeriam Fingal e Temora, respectivamente apresentados como obra do poeta irlandês do século III Ossian; em 1765 viria a publicação “Os Trabalhos de Ossian”. Os irlandeses se revoltaram com a mistura realizada com a cultura escocesa; a autenticidade dos poemas foi questionada por Samuel Johnson o qual, após investigação local afirmou em “Uma viagem às Ilhas Ocidentais da Escócia” (1775) que se MacPherson havia mesmo encontrado fragmentos de antigos poemas e algumas estórias, ele os reunira em um poema de sua própria composição. O certo é que a partir daquela época, “Baladas Ossiânicas” foi o termo utilizado para designar poemas da tradição gaélica comuns tanto à Escócia como à Irlanda. Tratando-se Ossian de um poeta nórdico antigo, será contraposto ao Homero e a chamada poesia Ossiânica irá influenciar toda a cultura européia do século. Depois da morte de MacPherson, chegou-se a um acordo de que ele mesmo compusera a maior parte da poesia tida como supostamente antiga; no final do século XIX verificou-se a inexistência de Ossian. No entanto, esses poemas em prosa, rítmicos e melancólicos influenciaram poderosamente o crescimento do movimento romântico.
Como resta claro, James MacPherson escreveu um poema a partir de várias fontes, dizendo-se delas tradutor. Uma pergunta: como escreveu Homero a” Ilíada “e a “Odisséia?” O certo é que o tratamento dado por MacPherson às lendas antigas, direcionaram a sensibilidade dos românticos: Herder e Goethe tanto o admiravam que o último chega a citá-lo em “Os Sofrimentos do Jovem Werther”, no qual o personagem escreve em seu diário: “Ossian suplantou a Homero em meu coração”. Em síntese: os poemas ossiânicos foram escritos pelo irlandês James MacPherson e não por Ossian, suposto poeta escocês do século III. O curioso é que tenha havido quem se recorde desse fato como uma “fraude” e não como um recurso plenamente legítimo de criação literária, que inclusive chamou a atenção de todos para a antiga tradição oral que estava desaparecendo na Escócia.
A poesia de James MacPherson deflagrou na Europa uma atmosfera voltada para o sonho e o passado, o gosto pelas ruínas. Em 1764 acontecerá a publicação de “O Castelo de Otranto” de Horace Walpole, cenas de terror teatral em passagens subterrâneas; em 1786, William Beckford escreve “Vathek”, califa oriental sedento de prazer cujo satanismo irá também marcar o romantismo e que prenuncia Byron, bem como o romance gótico que irá se constituir em uma reação da aristocracia à burguesia industrial inglesa que iria se consolidar na era vitoriana, abolindo a primazia do prazer e instituindo as regras do decoro e da virtude. Daí se verifica a divisão do romantismo: a linha voltada para o homem comum (Wordsworth e Robert Burns) e o romantismo maldito e paradoxal que apresenta a fusão da libido com o instinto de morte. Em 1790 surge William Blake (1757-1827) com o seu visionarismo apocalíptico no livro “O casamento do céu e do inferno”. A respeito deste poeta, diz George Bataille que nele a sensualidade se opõe ao primado da razão e em nome daquela ele condena a lei moral, abrindo o seu espírito, também à verdade do mal. Essa atmosfera chegaria a influenciar autores do século XX, como o português José Régio, autor do “Cântico Negro”, incluído em seu livro “Poemas de Deus e do Diabo”(1925),cuja ideologia transgressora “dark” e “noir” já tivemos oportunidade de comentar
Se a poesia de Wordsworth era coloquial e creditada ao estudo e esforço, Samuel Taylor Coleridge (1772-1834) escrevia poemas de temática sobrenatural, acreditando na inspiração e concebendo a poesia como desvinculada do real; ele recorria a visões que lhe apareciam em sonhos como o caso de “Kublakhan”, além do demonismo presente em “O Velho Marinheiro” e “Christabel”, que tem em comum com o gótico a ambiência medieval e a atmosfera de pesadelo. O homem fatal romântico tem rosto pálido devastado pelas paixões, é misterioso e tem origem desconhecida, como nas obras “Os mistérios de Udolpho” e “O italiano” de Ann Radcliffe (1794 e 1797), bem como “O Monge” de Mathew Lewis (1796). Ocorre que, em 1667, John Milton havia publicado “O Paraíso Perdido” no qual se destaca Satã, o Príncipe das Trevas: esplendor nublado, majestade arruinada, beleza amaldiçoada. Como destaca Mário Praz em “A agonia romântica”, as metamorfoses de Satã irão comparecer ao romantismo inglês nas figuras de Prometeu, Caim e outros. E chega-se então ao modelo encarnado por Lorde Byron (1788-1824) em suas obras “Prometheus, Caim, Childe Harold, Manfred e D. Juan”. “The Vampyre” (1819), escrito por John Polidori, primeiro texto sobre vampiros na literatura inglesa, foi inspirado pelo próprio Lorde Byron. Os vampiros vão encarnar, no romantismo inglês, uma das configurações das metamorfoses de Satã; porque ele conjuga o sobrenatural, o mítico e o aristocrático, Eros e Thanatos. Esse gosto pelo horrível e exótico vai estar presente também na poesia de Percy Bysshe Shelley (1792-1822); quanto à figura da mulher fatal romântica, presente, por exemplo, em Salomé, Cleópatra e Monalisa, ela vai se destacar sobretudo no decadentismo do final do século XIX; tem como obra precursora “La Belle Dame Sans Merci”, do poeta John Keats (1795-1821). Conforme Fernando Monteiro de Barros, em seu estudo “O mal-do-século no romantismo inglês”, a vigência romântica na Inglaterra vai até 1832, quando tem início a era vitoriana que chegará ao ponto de censurar a obra de Shakespeare.



Como se vê, todo um período literário que se estende até os nossos dias não só em best-sellers como em sucessivos filmes de platéia lotada, foi tornado possível a partir dos poemas de “Ossian” de James MacPherson, o qual, a partir de um artifício estratégico de composição artística, ou seja, de um modo de criação literária entre a ficção e a dramaturgia, deu voz a todo um direcionamento estético inglês, europeu, universal. E isso de tal maneira que as obras contemporâneas de autores respeitados como Umberto Eco, no caso o romance “O Nome da Rosa”, permanecem fieis ao método de recorrer, para a narração discursiva, a supostos textos e documentos encontrados ao acaso em sebos ou bibliotecas.
Fernando Pessoa, aluno brilhante em cidade de colonização inglesa da África do Sul, onde ficou dos sete aos dezessete anos, ou seja, onde construiu sua formação, por certo estudou com profundidade esse processo de criação de MacPherson com as suas consequências na literatura ocidental. Atribuir a um personagem ficcional um poema de autoria própria: não é certamente por essa razão que cada vez mais se respeita e admira a obra do grande poeta português. E não será também pelo aspecto da pseudonímia que se torna grande a sua poesia. Com a sua rigorosa formação filosófica, com toda certeza tinha Fernando Pessoa conhecimento do método pseudonímico aplicado à produção de seus livros pelo filósofo dinamarquês Sören Kierkegaard.
A pseudonímia como estratégia discursiva, como artifício literário do romantismo, é chamada por Johannes Climacus (Kierkegaard) de polionímia; ela estabelece a desconstrução do unívoco e através de um mecanismo de ambiguidade dissolve a tensão do paradoxo, convertendo-a em um teatro de máscaras que dialogam entre si, através de uma “comunicação indireta”, desdobramentos paradigmáticos de concepções estéticas e visões do mundo. Sabe-se que Kierkegaard publicou seus trabalhos filosóficos sob vários pseudônimos, que possuíam personalidades distintas com suas perspectivas de vida específicas (Johannes Climacus foi o mais socrático entre eles e trata do dilema entre a dúvida e a fé; Vigilius Haufniensis ocupa-se dos aspectos psicológicos pecado / ansiedade; Johannes de Silentio e Constantin Constantius cuidam da ética; Anticlimaco é o cristão modelar). O seu propósito não seria o anonimato, mas desvincular sua personalidade dos assuntos polêmicos que tratava. Chegou a publicar, em 1842, uma “Confissão Pública”, em seu próprio nome, desautorizando os boatos em que era ele o autor de artigos assinados com pseudônimos; considerava essencial para a dialética autoral que queria criar que estivesse desvinculado da autoria desses artigos.
Em 1843 publicou “Ou / Ou: um fragmento de vida: Segunda Parte (Papéis de B)”. A primeira continha os papéis de A e tratava de questões estéticas; a segunda era sobre o casamento; o editor era Victor Eremita, cada parte tinha um autor e Kierkegaard, para que o público não soubesse que ele era o autor, chegou a fazer os originais serem copiados por mãos diferentes, a fim de que os empregados da gráfica não o identificassem pela caligrafia; completando a farsa, uma semana após o lançamento do livro, publicou um artigo seu no “A Pátria” com o pseudônimo “A. F.” onde ele próprio indaga quem seria o autor de “Ou / Ou”?
Kierkegaard pertence a uma classe de filósofos (como Nietzsche e Platão) que une ao seu discurso intelectual um “pathos” poético com uma qualidade literária difícil de superar. Ele desenvolveu uma forma de expressão peculiar por meio da criação de pseudônimos, com uma nova forma irônico-sarcástico de fazer filosofia. Considerado o primeiro existencialista, a problemática principal de Kierkegaard consiste exatamente na irracionalidade da nossa experiência do real. Como um divino enganador, chega mesmo a afirmar: “não há nos livros pseudônimos uma palavra que seja minha”. Essa advertência Kierkegaardiana, se fosse levada a sério, implicaria em só reconhecer como de sua autoria os textos que ele assinou com o seu nome; no entanto, como não reconhecer como sua a totalidade da obra pseudônimo?
Pablo U. Rodriguez recorda que o sentido comum do nome próprio é algo que outro elegeu para mim, por que ele é a superfície de uma identidade que também escolheram para mim; o mesmo sentido comum reconhece no pseudônimo aquilo que eu escolhi para mim. Ou seja, o pseudônimo é a escolha de uma identidade que eu reconheço em mim, ou que eu desejo para mim. Assim, o pseudônimo é uma identidade que provoca uma libertação.



A pseudonímia, chamada por Kierkegaard “comunicação indireta”, remete aos jogos de cubos infantis em que um maior oculta outro menor sucessivamente, tal como as famosas bonecas russas Matruskas (Babuskas). Essa imagem é sugerida pelo pseudônimo editor imaginário Victor Eremita, ao referir-se que um dos autores se encontra de certo modo no outro, como caixinhas chinesas. Não satisfeito em apresentar um carrossel de personagens, Kierkegaard chega ao nonsense pirandelliano de declarar que os pseudônimos estariam desejando o desaparecimento do seu autor: em seu “Pós-Scriptum” às migalhas filosóficas, declara o filósofo dinamarquês:

Percebo, desde o início, que minha existência pessoal é algo embaraçoso para os pseudônimos. Estes devem, de um modo a uma só vez patético e egoístico, desejar que esta realidade desapareça, quanto mais cedo melhor, ou que seja tornada tão insignificante quanto possível, embora desejem com uma ansiedade irônica, conservá-la diante deles próprios, como um modo de se sobressaírem. Pois meu propósito em relação a eles é o de dar-lhes unidade, como faria um secretário. Além de, o que não é sem ironia, fazer o papel de autor do autor (dialeticamente reduplicado) ou de autor dos autores.

Como destaca Guiomar De Grammont em obra acerca de Kierkegaard o sentido que a comunicação indireta toma em sua obra visa à expressão da existência como interioridade: a forma mais profunda de expressar sua tese central é criar personagens que são o testemunho vivo dela. E prossegue afirmando que ao nos perguntarmos quem é Kierkegaard, corremos o risco de nos perdermos nessa floresta de personagens que se movem como bonecos de cera aos quais um gênio houvesse insuflado vida; essa seria a imagem que ele próprio nos apresenta de si em relação aos pseudônimos, em uma definição que lembra o “ponto”, figura comum no teatro até há um tempo atrás que “soprava”para os atores as falas esquecidas – Kierkegaard “inspiraria” seus pseudônimos da mesma forma, seria apenas seu “desvelador”:

eu sou, com efeito, pessoal ou impessoalmente, um insuflador (souffleur) em terceira pessoa, que produziu poeticamente autores, os quais são autores de seus prefácios e, mesmo de seus nomes.

No ensaio “A Lenda de Fernando Pessoa” que escrevemos aos cinquenta anos da morte do poeta (1985), já reclamávamos da super-valorização da crítica com relação ao processo estético dos pseudônimos, que não teriam qualquer importância não fosse a poderosa beleza e humanidade dos versos do poeta português:

Numa lembrança mais que oportuna é caso de se perguntar o que seria da Filosofia se os filósofos se estendessem além da conta sobre os caracteres psicológicos de Victor Eremita, Johannes de Silentio, Constantin Constantius, Johannes Climacus, Virgilius Hafniensis, Nicolaus Notabene e Hilarius Bogbinder: os sete “indivíduos” fictícios que Sören Kierkegaard fazia assinar as suas obras…

Numa feliz coincidência, em 2003 no mesmo ano em que editamos nosso ensaio (durante dezoito anos acreditamos poder editá-lo em Portugal), Guiomar De Grammont publica “Don Juan, Fausto e o Judeu Errante”, em que declara:

A pseudonímia, característica romântica da qual Kierkegaard se apropria, encontrou, como sabemos, em Fernando Pessoa, uma concretização comparável em excelência. Na obra de Pessoa encontram-se extraordinárias semelhanças com a forma como Kierkegaard construiu sua obra filosófica, as quais mereceriam ainda ser mais profundamente exploradas. Ambos assinam suas obras sob pseudônimo e muitos dos temas dos pseudônimos estetas de Kierkegaard encontram-se sob nova luz nos heterônimos de Pessoa.

A autora recorda a posição de Maria Esther Maciel, segundo a qual esse processo consistiria em um sair de si mesmo para viver a experiência da “outridade”. Conclui Guiomar De Grammont que a pseudonímia Kierkegaardiana estaria estreitamente relacionada à ironia como um método filosófico inspirado na maiêutica socrática; como se cada pseudônimo constituísse uma peça de um quebra cabeças o qual, no entanto, jamais deixará de ser indecifrável. Na verdade, a autora reconhece que ao utilizar-se de editores imaginários em pseudônimos, Kierkegaard estaria utilizando procedimentos da escola romântica; para compreender a extensão da sua critica sugere que se deveria procurar esclarecer com quem Kierkegaard polemiza em seu trabalho da autocompreensão da existência humana.
Em seu diário, declarou Kierkegaard: “depois da minha morte ninguém encontrará entre meus escritos (eis aí minha consolação), o menor esclarecimento sobre o que propriamente preencheu a minha vida”. O autor de “Temor e Tremor”, “Tratado do Desespero” e tantos outros textos que iriam resultar no existencialismo, fará com que Adorno, em nossos dias, venha evidenciar a sua atualidade por tornar “a dialética das coisas” uma “dialética da comunicação”. Os pseudônimos seriam alegorias através das quais se encontrariam as categorias filosóficas, personagens estéticas a representar-se como em uma cartilha; a fascinação seria a força mais terrível, para Adorno, da obra de Kierkegaard e o recurso à pseudonímia atuaria exatamente no sentido de sedução estética para obter esse fascínio.
Recordado – e demonstrado - o fato de que os recursos literários utilizados por Fernando Pessoa são de uso antigo, com destaque concedido nesta evolução ao poeta irlandês James MacPherson e ao filósofo dinamarquês Sören Kierkegaard, resta-nos a compreensão crítica de que os processos e métodos pseudonímicos são anotações à margem, preocupações periféricas, que não ajudam nem interferem na compreensão de uma poesia que de modo ininterrupto tem avançado na leitura e na companhia aos que são magnetizados por versos que revelam o grande paradoxo do êxtase e da angústia da condição humana. Que se leia nas universidades o texto pessoano, que se compreendam os condicionamentos do pacto autobiográfico de Philipe Lejeune e se perceba o fundamento do diálogo com a sua existência pessoal, mas que não se pretenda reduzir a excelência de uma poesia tão grandiosa a um simples mecanismo de execução pseudonímico, a um simples recurso da metodologia estético-literária. Já é tempo.


Lucila Nogueira (Brasil, 1950). Poeta, crítica, contista e tradutora. Professora dos cursos de graduação e Pós em Letras da UFPE, onde leciona literaturas de língua portuguesa, espanhola, teoria da literatura, além de disciplinas como Literatura Comparada, Teoria da Poesia, Estética do Surrealismo, Loucura e Literatura. Tem 24 livros de poesia publicados e está traduzida ao inglês, francês e espanhol. Contato: lucnog1@gmail.com. Página ilustrada com obras de Fabio Rincones (Venezuela), artista convidado desta edição de ARC.







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