terça-feira, 25 de novembro de 2014

MÁRCIO SIMÕES | Murilo Mendes: janelas verdes & espaços abertos





As inúmeras viagens que fez Murilo Mendes na fase final de sua vida, de 1952 até 1975, não obstante fosse homem já feito e maduro, contando mais de cinquenta anos, tiveram um impacto significativo em suas relações humanas e em sua obra de poeta e prosador. Não me deixarão mentir os inúmeros títulos em que assumiram forma a intensa energia mental e capacidade de criação do poeta em seus últimos anos de residente europeu. Fixando-se na Itália a partir de 1957, como professor de cultura brasileira na Universidade de Roma, Murilo vai aproveitar a estadia no velho continente para lhe conhecer de perto as cidades, os lugares, as edificações, a culinária, os hábitos, as populações, as artes e tudo o que possa ser vida e movimento – realização – humana sobre a face de suas terras.
Desse contato inquiridor, dessa atenção decidida e delicada, que sobre tudo incide em busca de um sentido; desse olhar conhecedor; desses deslocamentos e vagamundagens do poeta, teremos uma recriação sensível no que se cristalizou em obra linguística: nada menos do que seis títulos de inspiração geográfica constam da obra completa do autor. O primeiro deles, em poesia, canto e evocação da cidade homônima: Contemplação de Ouro Preto. Depois, novamente em versos, tematizando-se agora a Espanha: Tempo Espanhol; que terá sua contraparte na prosa deEspaço Espanhol. Em verso também o Siciliana, sobre a célebre ilha da Sicília e cuja edição italiana (bilíngue) teve prefácio de Giuseppe Ungaretti. Em prosa, por fim, os últimos dois: Carta Geográfica, obra inacabada sobre as impressões que causaram ao escritor os mais variados lugares: de Delfos a Genebra, de Amsterdã a Haia – registros de suas deambulações europeias. E, dedicado inteiramente a Portugal, o admirável Janelas Verdes. Todas essas obras correspondem, pois, ao que se convencionou chamar de “segunda fase” da obra muriliana: de maior descritividade, de mais próximo contato e diálogo com as coisas e ambientes concretos, de figuração do que lhe é exterior. Ressalve-se que é só na velhice e após seu “exílio” europeu que Murilo Mendes torna-se prosador. Saíra do Brasil com dezenove livros escritos, sendo apenas um em prosa. Escreveria mais onze antes de morrer, dessa vez, apenas dois em verso.


Poeta de inspiração intensa e curta, a prosa de Murilo é semi-aforística e suas descrições, às vezes, quase epigramas ou epítetos. Normalmente distribuídas em seções breves, as notas de viagem de Murilo Mendes conservam um tom de jogo lúdico com a linguagem e com a vida, de livre criação linguística amparada no sedimentado rigor e saber fazer de seu autor.

Janelas Verdes, livro de 1970, mas apenas posteriormente publicado, em Portugal, em edição autônoma de 2003, respondendo a uma das últimas vontades do autor, é dividido em três setores: o primeiro, em torno de diferentes localidades e cidades portuguesas; o segundo, sobre variados escritores e artistas, portugueses antigos e contemporâneos; e o último, constando de seis poemas dirigidos à escritores de Portugal. No texto de Murilo, relatos, descrições e reflexões singularmente pessoais entrelaçam-se à arquitetura, à paisagem, ao clima, ao espaço, à história, à cultura e à literatura da nação camoniana. Ao tempo acumulado e testemunhado pelos monumentos antigos se pode fundir, por exemplo, como num eco subjetivo, as imagens e ritmos dos grandes poetas ibéricos, de ontem e hoje. Nada vê o autor com olhos de estrangeiro; nada é para ele exótico, surpreendente, pitoresco; mas, antes, singularmente familiar. O conhecimento profundo da história e cultura de um povo passa por ser a apreensão íntima de seu caráter; de sua forma peculiar de perceber e interagir com o ambiente que o rodeia; de sua maneira própria de assimilar e interpretar o mundo e o universo; de suas tendências para representá-lo. O que Murilo nos informa é que todo poeta (ou mesmo falante) de língua portuguesa, não importa em que parte do globo viva ou esteja, é, se quiser, o mais legítimo herdeiro e transformador dessas representações. Já se disse em algum lugar que todo idioma é uma forma única, específica e irrepetível de se perceber, entender e expressar a realidade. E não se pode esquecer que a história de Portugal é também, até certo ponto, a nossa. Assim como toda a cultura escrita em língua portuguesa é única. Ou pelo menos faz parte de um patrimônio cultural compartilhado por todos os falantes e leitores de português.
Assim, Murilo reconhece a literatura e as artes ibéricas como ancestrais em sua própria cultura e formação. Como parte fundamental de sua identidade. Bem como deixa evidente a importância dos escritores portugueses em sua educação, conforme se verifica pelas inúmeras citações de Bocage, Cesário Verde, Antônio Nobre, Almeida Garett e Camões, dentre outros, em mais de uma passagem associados à juventude do autor.
Outro elemento digno de nota é a intensa atenção que dedica o poeta à expressão linguística: dá destaque mais de uma vez ao efeito subjetivo dos sons; ao sentido plástico das imagens projetadas na mente; às palavras e modos de expressão vulgarizados pelo emprego repetitivo e irrefletido – evitando-os e utilizando em seu lugar estruturas e termos pouco usuais. O resultado é uma prosa sem frases nem formas feitas, armada com um léxico e um ritmo extremamente pessoais. Para ilustrar, eis duas passagens:
“... aeroplano (palavra mais visual e direta do que avião, é verdade que esta alude a ave, mas por isso mesmo se banaliza)...”
“... Torres Vedras, nome severo-gracioso, com a tonalidade fechada de Torres e a abertura em e de Vedras...”

Misto de literatura de viagem e exercício de crônica criativa e estilo,Janelas Verdes é sobretudo o registro linguístico de um olhar extremamente reverente e sensível ao mundo e as palavras que usamos para representar esse mundo. Mais do que um livro de viagens, é o livro de um viajante. O homem Murilo Mendes está inteiro em cada passagem; deixa-se o livro com a sensação de quem visitou um ser vivo. Fica-se com o sentimento presente de seu diálogo íntimo; de sua insatisfação e de seu inconformismo diante dos rumos da sociedade moderna; de sua descrença no cientificismo e no capitalismo; de sua irreverência humorística e libertária.
Em várias passagens, de forma reveladora, ele se refere ao modo como compreende liricamente as janelas, como nesta nota:

“Quanto ao título: não se refere ao Museu das Janelas Verdes. Refere-se a espaços abertos; à liberdade; ao campo e mar de Portugal, ao verde que ali nos envolve sempre.”

Como se vê, as janelas para Murilo Mendes são uma metáfora do lugar, uma representação do espaço; e até mesmo da psicologia de um povo. No primeiro texto do livro, dedicado a Guimarães, cidade tida como berço da nação portuguesa, um andarilho Murilo Mendes nota “o número espantoso de janelas”, para acrescentar em seguida:

“Abrindo o povo tantas janelas, quer dizer (suponho) que é arejado, ama a vida, a comunicação.”

E nesse mesmo espírito, mais a frente, profetiza, muito ao seu modo, uma era utópica de lazer universal para a humanidade onde:

“Debruçar-se à janela voltando a ser uma ocupação instrutiva, Guimarães serviria de modelo a outras cidades futuras; provavelmente se fundará uma Janelópolis universal, traduzindo abertura para a invenção, a liberdade, a convivência e a paz definitiva; com muitas janelas verdes, além de vermelhas, brancas, azuis, dialogando-se.”

As janelas, primeiramente representação de um lugar; e depois símbolos de um povo; representam, em última instância, para o poeta, como num microcosmo, o seu próprio sonho de humanidade, a grande metáfora do espaço humano.


MÁRCIO SIMÕES (Brasil). Poeta, editor, ensaísta e tradutor. Criou e dirige o selo Sol Negro Edições. É diretor assistente da Agulha Revista de Cultura. Contato: mxsimoes@hotmail.com. Página ilustrada com obras de Leonardo da Vinci, artista convidado desta edição de ARC.

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