terça-feira, 25 de novembro de 2014

KLÉBER LIMA | Hospício é Deus, de Maura Lopes Cançado






Em se tratando de Maura Lopes Cançado, primeiro, folhei-a bem. Calmamente vá se fixando em um trecho ou outro, se furtando, aqui e ali, a pontos finais. Apenas vá até a metade da oração, suspenda a leitura e, pouco a pouco, fixe a atenção, desvaneça para o mundo, apague-se, pois, Sofredor do ver e Hospício é deus  de Maura Lopes Cançado, não são apenas livros, não foram apenas escritos, não se restringem a intenção comunicativa alguma, e não tem, em sua motivação mais nuclear, nenhum compromisso efetivo com a literatura, por isso, talvez, sofram incomparavelmente de um crônico desconhecimento, e de uma, ainda maior, incompreensão. São livros raros, sobre todos os sentidos que a palavra pode determinar. São, também, livros espantosos. Para alguns o título já o denuncia. Começa-se a lê-lo e a impressão de consciência de si que a escritora atinge é praticamente insuperável na literatura e nas artes de forma geral. Há, sobretudo, sangue pelas páginas; cada palavra carrega uma grave lucidez que não permite absurdamente nenhum desvio de si. Maura Lopes Cançado é exata, e ser exata, em tal sentido, a princípio, opõe-se a qualquer exatidão fomentada pelo desejo de um alvo exterior.  Ausenta-se com violência de sua humanidade, recria-se demiurgicamente e, na tentativa absoluta de atingir, torna-se alvo de si mesma. Sua aproximação com a loucura (de fato, e não enquanto tema de curiosidade como para a maioria dos escritores), seus dois assassinatos, sua situação marginal e sua insolúvel inadaptação social são elementos constituintes de uma vultosa condição de estranhamento e desconforto existencial. Se, às vezes, demonstra friamente uma total indiferença à sua condição, (o que no fundo é um lance sutil de revolta incontornável e de ordem maior, por isso mais perniciosa e redentora, o que não é muito distante da posição de Jesus Cristo quando inquirido por Pilatos, dando como resposta, laconicamente, apenas um “Meu reino não é deste mundo”)  por outro, Maura Lopes Cançado sublima-se no ato de escrever, não admitindo nenhum amálgama para si. Senhoras e senhores, leitores embrutecidos e intelectualóidesfrígidos, se vós, alguma vez, sentirdes vontade de Ler realmente, entendendo esse ato como uma possibilidade experiencial valiosa, Maura está aí, conciliada com a imagem que fomentou de si mesma: difícil, exigente e rara.

I | Este ensaio trata da escrita de Maura Lopes Cançado, na mesma medida em que é um relato de choque - perplexidade singular - e antes de tudo, trata de um encontro fortuito; falo por meio de uma ferida aberta em meu coração, um cancro festivo, provocado por exposição inconsequente e despretensiosa a uma luz excessivamente agressiva, uma luz por dentro da luz, que se reclama quase ao inumano.
Procurava por escritas agressivas. Procurava por escritas dentro. Vasculhava os velhos armários da literatura. De uns tempos para cá me interessei quase que exclusivamente por escritores que não chegaram a ser. E quase sempre isto coincidia com biografias atordoadas e obscuras. Estas pessoas renunciaram, ou por convicta deliberação ou por inaptidão sem solução, um lugar em nossa sociedade, mas possuíam, até certo ponto, habilidades excepcionais que facilmente dariam conta do itinerário comum. Porém, isto ainda não é o mais importante. O que quer que a pessoa tenha feito, neste sentido, só merece ser mencionado, se o fez constituindo sua obra. Através disto é possível dizer muitas coisas, inclusive (o que não é o caso aqui) emitir juízos baseados na moral mais vulgar ou de extrair hermenêuticas com tendênciaspsicologizantes.
Então, portando esse forte desejo de ser atingido, encontrei Maura Lopes Cançado. Para ser justo, encontrei-a em um artigo de Nelson de Oliveira, que mencionava vários vultos  literários cujo desconhecimento crônico por parte de editores, críticos e mesmo escritores contemporâneos depunha, a meu ver,  contra o bom nível da literatura brasileira. Alguns: Rosário Fusco, Uilcon Pereira, Samuel Rawet, Jaime Rodrigues, Campos de Carvalho, Holdemar Menezes, José Agripinno de Paula, e claro, Maura Lopes Cançado (lembrando de cabeça, salvo engano, desses citados, só foram reeditados Campos de Carvalho com “Obra reunida, editora José Olympio”, José Agripinno de Paula com “Pan-América e Lugar público, editora Papagaio “, Samuel Rawet “Contos e novelas reunidos”; “Ensaios Reunidos”, ambos pela editora Civilização Brasileira, Jaime Rodrigues com “Phutatoruius” da editora DBA e Rosário Fusco com “O agressor, editora Bluhm; ASA: Associação dos Solitários Anônimos, Ateliê Editorial). Posso ainda acrescentar, para aumentar o número de vultos, o espetacular Ricardo Guilherme Dicke, escritor matogrossense, com obras como “Salário dos Poetas”, pela editora da Universidade Federal do Mato Grosso  e “Deus de Caim”, pela editora LetraSelvagem. (Aviso aos ávidos garimpeiros: há muito mais!). Compreende-se que sempre haverão absorções tardias, nem sempre justas, nem sempre à altura do descoberto. Estes desencaixes poderão [?] ser encaixados com algum esforço incomum ou mesmo ocasional. Consumidos, aos poucos, obterão (re)conhecimento tardio, servindo tanto de influência anímica para alguns quanto de estudos críticos e acadêmicos para outros.
Ao ler trechos como os de Maura, fico tentado a dizer, principalmente quando se vislumbra a literatura “literária”  brasileira, que seria hora de começar a escrever de verdade. Não desviar mais o olhar em nenhuma direção e evitar qualquer movimento supérfluo. Não bastam apenas boas histórias, saber contar, atingir um excepcional nível de linguagem, enfim, angariar adjetivos enunciados por outrem, introduzir-se com identidade de “escritor” no contexto literário. Isto não é propriamente questão de literatura, por isso nunca admiti deixar que pensassem que faço literatura, pois me falta, tanto por motivos óbvios (quem se diz escritor tem livro publicado, tem algum público leitor e participa de eventos literários e tem o todo o direito de o fazer), quanto por motivos pessoais (um irrepreensível desacordo diante de tudo isso), qualquer vontade sincera de minha parte nesse sentido. O que eu busco é a expressão obscura de minha vida interior, esse ocaso que vem a coincidir com a literatura, mas que não se restringe a esta, e que, no momento em que eu escrevo atinge sua representação máxima. Devo dizer, apesar disso, que é um caminho sem volta.   
Em todo caso, algo aconteceu. E muito do que aconteceu é indizível. Para minha interioridade corrompida é como se tivesse encontrado um outro desvio, à altura do inesperado. Comecei a ler Hospício é deus, edição surrupiada e suja, edição que me chegou por correio, das poucas opções que constavam no acervo à venda (atualmente, se você tiver sorte, só encontra os dois livros de Maura Lopes Cançado na Estante Virtual, e lógico, quase sempre superfaturados). Realizava muitas leituras nesta época, relendo e estudando Kafka, Lautréamont, Artaud, Rimbaud e outros. Como sempre, em torno do escrito que estou lendo, colijo inúmeros dados biográficos sobre os autores. Empilho informações e detalhes. Se encontro continuidades entre vida e obra, me satisfaço. Nesta perspectiva, Maura Lopes Cançado foi exemplar.
Hospício é deus possui uma força descomunal. Trata apenas da infância, da juventude e do começo da vida adulta de Maura, no entanto, a impressão, enérgica e densa, com o que o escreveu o faz parecer tratar de uma longevidade extensa, tamanho é o agudo crônico do mundo interior de Maura. Os fatos mais banais, o cotidiano mais limítrofe atrelado a reclusão manicomial, obtêm traslados existenciais cujo destino são imprevisíveis.  
Maura foi, conforme consta em seus relatos, sonhadora, evasiva e lúdica o suficiente para alimentar um vívido mundo interior. Considerava-se candidata ao hospício desde tenra idade. Se descreve alheia. Sempre prestes a ficar doente. Sempre exigindo atenção. Isto já aponta decisivamente para  todos os aspectos vindouros de sua vida.  Maura foi, principalmente para si mesma, por toda a vida, a menina da fazenda do interior de Minas Gerais. Não se quer dizer com isso que lhe faltaram o desenvolvimento natural das faculdades supostamente atreladas a passagem cronológica dos anos: corpo e mente indo para uma maturidade conformadora. É tão somente o que nasce na sua infância que permanece até sua vida adulta “como criança fui excessiva”, convulsivamente alocado em uma subjetividade agressiva e inadaptada a armistícios.
No entanto, em Hospício é Deus, que começa justamente relatando a infância de Maura, destacam-se eventos com potenciais traumáticos irreversíveis. “Na fazenda tínhamos uma loja. O rapaz, empregado da loja, sempre se recusava a nos dar balas, a mim e minhas irmãs menores. Uma tarde fui sozinha. Pedi-lhe. Disse que sim. Sentou-me no balcão e teve relação sexual comigo, nas minhas pernas. Não tive nenhuma reação, creio haver sentido prazer e nojo […]Mais tarde, dois outros empregados repetiram o mesmo. […] O sexo foi despertado em mim com brutalidade. Cheguei a ter relações sexuais com meninas de minha idade. Isto aos seis ou sete anos.” Maura relata trechos como este com sobriedade maciça. A perplexidade avizinha-se da frieza enxuta.
Pouco depois dessas experiências, se se está lendo Hospício é deus, tem-se Maura aviadora, já casada. “Só queria casar-me, e o fiz. (Minha monstruosidade de adolescente ou minha monstruosidade, apenas)”. Linhas depois o desejo do desquite. A paixão pelo sogro. “Vivi cinco anos meses em casa de meus sogros, todo este tempo acreditando-me apaixonada pelo pai do meu marido, homem forte, alto, muito bonito, de quarenta anos, coronel da polícia militar e comandante do batalhão existente na cidade onde morávamos”. Não durou muito o casamento depois disto. Interessante notar: os rompimentos sempre são definitivos em Maura, seja com parentes, seja com o próprio filho (Cesarion), seja com o jornal, seja com a realidade.
São rompimentos definitivos. Rupturas violentas, sem volta. Fazendo questão de, com toda sua força, romper inteiramente, com tudo e todos que simbolizavam “a falta de sentido”, pois isto fazia jus ao sentimento seminal que a nutria: estar separado e seguir adiante, acima de tudo adiante. Acredito que seja um tipo de união inquebrantável com o todo, passando por frequências não habituais. Maura continha um tremendo mundo em si, e já não se continha.
“Naquele tempo meu mundo me parecia indestrutível”.  
Em Maura, importa a repercussão, pois tudo aponta o deslimite; mesmo que se diga que  são gestos sombrios e teatrais, ela produz, com isto, uma forte personalidade, encantadora no que tem de inacomodável, sublime no que tem de conflitiva. 
“Desde menina experimentei a sensação de que uma parede de vidro me separava das pessoas.”
Maura intransigente, crônica, agressiva, brutal, desfigurada, soberba, autoafirmativa, inscrita na eternidade, absorvida por uma luz.
"Devo escrever sempre no princípio de cada página do meu diário que sou uma psicopata."

II | No final dos anos de 1950 Maura chega no Rio de Janeiro. Trabalha no Suplemento  Dominical  do  Jornal  do  Brasil. Ambiente profícuo. Reynaldo Jardim, Assis Brasil, Ferreira Gullar e Mário Faustino estão entre seus companheiros de trabalho. Todos a admiram. Seus contos ocupam uma página inteira do suplemento quando publicados. “[…] eu trabalhava no Suplemento Literário do Jornal do Brasil, onde me cercavam de grande atenção e muito carinho. Reynaldo Jardim é o diretor e me queria bem deveras. Ó, o zelo de todos. O zelo de Reynaldo. Naturalmente, penso, por eu haver antes estado aqui, saindo para trabalhar lá. A curiosidade em torno de mim: “ - Esta é Maura Lopes Cançado, a que escreveu No quadrado de Joana? - o conto é realmente bom, mas pensar que a personagem dele é louca catatônica passou a aborrecer-me (como as pessoas são estúpidas, ainda se pretendem ser gentis).”
No entanto, as crises começam a piorar. Ela sai do Jornal.Voluntariamente pede confinamento:

“Por favor, Doutor J., não sei que fazer lá fora. Estou destruída. Aceite-me no hospital. Briguei no Jornal.”

Em uma carta a sua amiga Vera Brant, lê-se: “Creio ser verdade. Se estou no hospício, me comporto como sã; se estou fora, esquizofrenizo-me.” Na mesma carta, Maura citando seu filho, Maura escreveu: “ O Cesarion não sabe é que ao dizer-lhe: “Eu não gosto de  você”,  estou  dizendo justamente o  contrário.  Gosto de  você mas me sinto rejeitada, por isto te detesto. Mas não é ódio, Vera. É exatamente o contrário. Você entende, não? […]”.  Esses conflitos são levados por Maura aos limites. Os grandes monstros de sua obra, “O quadrado de Joana”, “O espelho morto”, “O sofredor do ver” dentre outros contos, absorvem a esfera visceral neurótica. Licencio-me aqui de fazer  comentários de teor clínico, ou ainda psicanalíticos sobre a obra de Maura, apesar de reconhecer que a matéria literária de Maura potencializa-se como nunca. A beleza, essa volúpia agressiva do sangue, impregnada em seus escritos, advêm muito da agitada lucidez que Maura tem tanto de sua situação manicomial quanto de sua interioridade catatônica.   
Acredito que, se Maura fosse do conhecimento de Maurice Blanchot, por exemplo, ele teria seus melhores ensaios dedicados a ela. Não simplesmente pela  vida de Maura ter sido quase toda em manicômios, e isto, para uma escritora, ter embasbacado atrativo, mas pela confluência literária que isto produziu. As condições cruas e abjetas em que escrevia, transfiguradas, sem adornos, para contos espetaculares.

“Faz muito frio. Estou em minha cama, as pernas encolhidas sob o cobertor ralo. Escrevo com um toquinho de lápis emprestado por minha companheira de quarto, dona Marina. O quarto é triste e quase nu: duas camas brancas de hospital. Meu vestido é apenas o uniforme de fazenda rala sobre o corpo. Não uso soutien, lavei-o, está secando na cabeceira da cama. Encolhida de frio e perplexidade, procuro entender um pouco. Mas não sei. É hospício, deus – e tenho frio.”
Não é algo separado da vida, como reclamava Artaud, sobre sua própria concepção de arte. É a “distância”, como várias vezes martelou Maura, na testa das circunstâncias ameaçadoras; à distância com que se escolhe, à distância com que se liquida, à distância dentro de si mesma, é que a mantêm firme, doada em absoluto, entregue. 

III | A imagino escrevendo. Está vestida com o “uniforme amorfo” do hospício. Imagino, então, todo seu corpo nisto. Inquieta. Alheada. À meia-luz, concentrada, mesmo que com o zunido e o rangido dos outros doentes, com as interrupções, com os ataques, arranhões, puxões, em meio às violências das guardas do hospício, acumulando hematomas e humilhações, com fome.  Frêmito: o mundo dentro de si ruindo e se tornando inviolável. Alimentando-se do escasso  excessivamente. Alimentando-se da própria fome. Bebendo da própria sede. Com o sangue quente. Sangue indomável. Sangue banhado por gritos. Sangue aéreo. Sangue com voos rasantes. Sangue borbulhando de silêncios estelares. Sangue violento encharcado de luz. Sangue contendo garras afiadíssimas insuflando a si mesmo, na direção do coração. Maura toda coração. Maura está viva e escrevendo.  
Maura está escrevendo, está dentro da coisa. Estar dentro é como o balouçar desfraldado de vazios. Há a necessidade de se dar pontos exatos, atados, irremovíveis. Chega-se com isso a uma costura. Depois, e de volta, certo de que não há como desfazer mais tal costura, repete-se o mesmo processo, partindo do último ponto findado, dessa vez, com a mesma exatidão vai-se contrariamente ao início da costura anterior. Estão diametralmente opostas, inconciliáveis, porém, coexistem. Em muita confusão atam os terríveis vazios da alma humana – bruxuleiam essa colcha oca de vida!    
Maura é insituável. A distância à qual se alçou desmesurada. Não reclama para si menos que isto: ser insuperável. Daí sobressai-se. É menos que rarefeito por aí o ar. É da ausência agressiva dele que se alimenta. Dos frêmitos aguçados da agonia. Da alteridade obscura que seu coração estabelece com o que o destrói. É destruindo-se que se afirma. É negando-se, sem qualquer indício de autoanulação, que produz uma pródiga afirmação, inalienável de início.
Artaud sangrando diz:

"Eu não quero comer meu poema, mas quero doar meu coração a meu poema e o que é meu coração ao meu poema. Meu coração é o que não é meu. Dar seu si-mesmo a seu poema é arriscar também ser violado por ele." (Revolta contra a poesia

A exposição sumária de si e do seu mundo interior. É cruciante. Há uma beleza genuína. É como se Maura tivesse lançado os dados de Mallarmé, e ao mesmo tempo, sabotasse o lance, não simplesmente burlando regras, mas as reformulando para si, para um outro lance, um lance do lado de lá, de si mesma, com uma multidão de sofredores do ver com os quais, fatalmente, o jogo a liquidaria.
Há um modo de arrancar em Maura. Tão brutal quanto mais sutil.
Maura Olha. Olha novamente. Olha-se fixamente. Afirma-se sofredora do ver e diz: “Ser louco para mm é chegar lá”. E Maura está apenas indo. Está exposta. Muitos cães rosnam em sua direção. Sua carne está se rasgando. Seus ossos estão à mostra. Desgastada. Exaurida. O que se passa? O que se passa?

“Nele não encontramos a falta. Nos parece excessivo, movendo-se noutra espécie de vibração. Junto dele estamos sós. Não sabendo situá-lo fica-se a dúvida: onde se acha a solidão?”

Toda a violência interior de Maura antes de ser canalizada entre escritos e gestos crus e rotineiros de violência física e moral dentro do hospício a confronta. “Analiso cada passo meu. Sofro cada gesto.” Não há tamanho, não há percurso. A orientação é para o sem armistício. Abre-se, em seu coração, a fome das fomes, a sede das sedes: “Enquanto isso, o coração chumbado e frio doía-lhe, ensurdecendo-o como se o chamassem para si próprio. Pensou um pouco compreendendo humano, cerrou as pálpebras nauseado, toda aquela exigência gritando-lhe enérgica, tentando em desespero íntimo fazê-lo voltar-se para seu próprio corpo.”
Não, não há bastante desespero em Maura Lopes Cançado, não como em Kafka. Seus gestos excessivos e sofrendo de enormidades sustentadas por uma tenacidade autodestrutiva funcionam como uma afirmação sumária.
Visualizo uma pessoa serena, reduzida ao que a supera  e, por isso, nem alheada nem comprometida consigo mesma ou com o que a rodeia. Se o hospício a desesperasse, por certo, perderia o que tem de contundente, propriamente, de desesperador e sua lucidez esmoreceria na medida circunscrita por sua condição marginal. Neste sentido, “Estar internado no hospício não significa nada” e estar ali, significa  Santidade.

IV | A jornalista Margarida Autran, do O Globo, em matéria de 1978, anexada depois ao livro Hospício é Deus de Maura Lopes Cançado como posfácio, relata as piores condições em um dos momentos da internação:

“Terceira visita. O cubículo está cheio de lixo, pontas de cigarro por toda a parte, tudo está em desordem e malcheiroso, moscas sobrevoavam as canecas de café frio onde boíam formigas. Sobre a cama desalinhada, fronha e lençóis imundos, Maura me recebe descabelada, de camisola, toda angústia. Está cega.”
Maura já não escrevia. No entanto, Maura não se matou.
Também não me interessa refletir sobre o porquê ela não haver se matado.
Lembro da impossibilidade de  morrer de que Blanchot falou.
Prefiro pensar nela desta forma:
“Prometo que nunca irei desistir, e que morrerei gritando e rindo” (J. Kerouac)

Mas Maura queria falar. Queria que seus escritos obtivessem maior audiência, mesmo que, dolorosamente, para esta questão, eu me lembre mais uma vez de Kafka:

“Ninguém vai ler o que aqui escrevo, ninguém virá me ajudar; se fosse colocada como tarefa me ajudar; todas as portas de todas as casas, todas as janelas ficariam fechadas, todas as pessoas permaneceriam em suas camas, as cobertas puxadas sobre as cabeças, a Terra inteira um albergue noturno. Faz sentido, pois ninguém sabe de mim; e, se soubesse de mim, não saberia do meu paradeiro e sendo assim não saberia como me reter ali, não saberia como me ajudar. O pensamento de querer me ajudar é uma doença e deve ser curada na cama. Disso eu tenho consciência e por isso não grito pedindo ajuda, mesmo que, por momento – exaltado como estou, como agora, por exemplo –, pense muito a sério em fazê-lo. Mas sem dúvida basta, para expulsar esses pensamentos, olhar ao meu redor e tomar ciência de onde estou e – posso com certeza afirmá-lo – onde habito faz séculos.”

Há toda uma gama de análises possíveis, se se quiser, claro,  em relação à Maura. Delírio, loucura, marginalização, denuncismo entre outros. Porém, não se pode fixas Maura em parte alguma. Está em seu quadrado. “Joana imóvel, quadriculada no pano do vestido, marcando um tempo ainda imarcado porque novo. Um novo tempo:  nascido duro, sofredor.”. Avança, sem para onde. Maura é rápida. Blanchot cita Kozovoi “Entre dois pontos de dor, a poesia é a via mais curta”, e Maura vai ainda mais rápida por esta via, abre-a profundamente, morde as flores dos jardins mais negros, se embebeda dos orvalhos coagulados sobre pétalas venenosas. Se embriaga. Tem asas pesadas sobre as costas, seria melhor cortá-las: “Nem sequer encontro dor no sofrimento, ou independente de sofrer, a dor está presente”. Maura nunca se cristaliza. Está em constante crescimento interior. 
É em si, caminhando para si, que Maura se refaz. Neste sentido (e só existe este) a literatura é autoconhecimento. Destituído das ressonâncias literárias que qualquer obra, de qualidade, e com alguma visibilidade, possui. Maura está, sobretudo, atingindo-se. Esta experiência, em absoluto, radical (a mais radical das histórias literárias brasileiras) poderia, arrisco dizer, ser levada a cabo sem o ato de escrever. Para escritas agressivas, como a de Maura, a literatura é apenas pretexto para vivenciar a si mesma. Abandoná-la (ou, como diz Artaud “acabar com a superstição dos textos e da poesia escrita”), creio, é o passo posterior de uma escrita agressiva. Não se limita a parar de escrever e mesmo que silencie, fala no e pelo próprio silêncio, lida frontalmente com o que de si é inadmissível, violentamente antessocial e irreversivelmente espírito.  
Maura construiu sua inviolabilidade.   
Distante, o que escreveu se instaura com tal força no conjunto das coisas. Então, a exegese vacila, ou antes, é dispensável.
Você tem que está lá. Está dentro, assim como ela sempre esteve.

"Hoje não é. Mas existo desmesuradamente, como janela aberta para o sol. Existo com agressividade".

Não há maior história na literatura brasileira. 


KLEBER LIMA (Brasil, 1984). Poeta e bibliotecário. Inédito em livro. Contato: kpoesia@hotmail.com. Página ilustrada com obras de Leonardo da Vinci, artista convidado desta edição de ARC.

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