terça-feira, 25 de novembro de 2014

JULIO MENDONÇA | Qorpo-Santo: o poeta que escreveu o contrário do que pensava






Ponha-se o leitor – em trajes e ambientes tornados vintage por sua imaginação – na Porto Alegre de 1862 a 1883 e calcule o estranhamento que, naquela cidade então provinciana de um Brasil na periferia dos centros políticos e culturais, deveria ter causado nos contemporâneos a seguinte fala de uma personagem, escrita para uma peça teatral:
“Ainda havia eu concebido um pensamento: o que havia de ser; o que sem ter na cabeça... não; sem ser chafariz... e gotejar pelo nariz... tão bem não: sem se fazer de si – todo inesgotável, forte; de sua cabeça sempre cheia – caixa; de seus lábios – forte bica onde tem e por onde lança a mais cristalina linfa todas as vezes que quer em palavras, orações, proposições e discursos!”
Este trecho da peça Lanterna de Fogo foi escrito por José Joaquim de Campos Leão, em 1866, então já assinando com o nome com que se rebatizou: Qorpo-Santo. Este poeta paradoxal, dividido entre um desejo messiânico de purificação e o mergulho dilacerado no borrão da escritura, após uma vida breve e atormentada deixou uma das obras mais intrigantes da literatura brasileira.
   O que se sabe de sua vida é pouco e pode ser resumido em algumas linhas que transcrevo do livro de Eudinyr Fraga (FRAGA, 1988: 43):

“José Joaquim de Campos Leão, mais tarde Qorpo-Santo, nasceu em 19 de abril de 1829, na Vila do Triunfo, Província de São Pedro do Rio Grande. Com a morte do pai, em 1839, foi estudar em Porto Alegre, tornando-se, em 1851, professor público na Vila de Santo Antônio da Patrulha e, posteriormente, em Alegrete e Porto Alegre. Casou-se com dona Inácia Maria, com quem teve três filhas: Idalina Carlota, Lídia Marfisa e Plínia Manuela, e um filho, Tales José. No seu próprio dizer, foi vítima de “atos violentos” em julho de 1862, ou seja, começa o processo de sua interdição por moléstia mental. Entre 1864 e 1868 esteve às voltas com a Justiça e ele próprio se encarregou de nos deixar cópias de documentos e pareceres sobre a sua instabilidade mental. Já estava separado da família, quando, em 1868, o Juiz de Órfãos e Ausentes (o que corresponderia ao atual  Juiz da Vara da Família e Sucessões) declarou-o interdito, incapaz, portanto, de gerir a sua pessoa, os seus bens e a sua família, condição em que morreu aos cinquenta e quatro anos de idade, em 1º de maio de 1883, em Porto Alegre, vítima de tuberculose pulmonar. A maior parte da sua febril atividade parece ter se desenvolvido após o aparecimento dos sintomas de perturbação mental. Foi ele mesmo quem escolheu o seu apelido, conforme nos explica no volume II, p. 16, da sua Ensiqlopedia:
(...) se a palavra corpo santo (ainda com C) foi-me infiltrada em tempo que vivi completamente separado do mundo das mulheres, posteriormente, pelo uso da mesma palavra hei sido impelido para esse mundo.”

Apesar da interdição de seus bens, abriu sua própria tipografia em Porto Alegre, em 1877, na qual publicou os nove volumes da sua Ensiqlopedia ou Seis Mezes de Huma Enfermidade (obedecendo à ortografia criada pelo autor), dos quais conhecem-se, atualmente, apenas seis. Na Ensiqlopedia, Qorpo-Santo deixou registrada – sem muita ordem – toda sua produção literária, em diversos gêneros: peças teatrais, poemas, crônicas, pensamentos, cartas, etc.
Visto como louco pela família, interditado pela Justiça, a pobreza e a doença abreviaram a vida de Campos Leão e sua obra ficou dispersa e esquecida por décadas. Nos anos 20 do século passado, artigos na imprensa gaúcha associaram-na com o futurismo italiano e com o nosso modernismo (cf. SANTO, 2000: 25), sem maior repercussão. Na década de 60, no entanto, dá-se, de fato, a descoberta de Qorpo-Santo, cem anos após.
Em meio ao espírito renovador, contracultural e libertário que floresceu na década, Aníbal Damasceno e Guilhermino Cesar chamaram a atenção para a originalidade de Qorpo-Santo. A encenação pública de algumas de suas comédias, entre final dos anos 60 e começo dos 70, rapidamente trouxe grande repercussão para o autor, projetou uma imagem de precursor das vanguardas modernas (particularmente a do chamado teatro do absurdo) e iniciou um debate sobre suas vinculações estéticas.
Baseados, inicialmente, nos seus textos para teatro, Guilhermino Cesar, Décio Pignatari e Yan Michalski foram alguns dos autores que viram Qorpo-Santo como precursor do teatro do absurdo. Flávio Aguiar considerou razoável associá-lo ao absurdo, mas chamou a atenção para a diversidade de procedimentos teatrais na obra do autor gaúcho: teatro de costumes, teatro de tese, trágico, grotesco, cômico. Preferiu apontar as hesitações, paradoxos e impasses e chamou o teatro de Qorpo-Santo de “teatro da paralisia”. Eudinyr Fraga achou mais legítimo associá-lo com a escrita automática surrealista, fazendo, no entanto, a ressalva de que ele não se enquadra totalmente na estética daquele movimento artístico.
Nos primeiros anos da recepção crítica da obra de Qorpo-Santo, voltados fundamentalmente para o estudo de seus textos teatrais, o debate sobre sua possível vinculação com o absurdo ou o surrealismo procurava responder ao caráter anárquico e intrigante dos textos. Um teatro multifacetado, não-linear, marcado pela ausência de desenvolvimento lógico de enredo e que rompe constantemente com as convenções cênicas. O comportamento imprevisível e anticonvencional de seus personagens promove uma desnaturalização das relações sociais. Estes e outros aspectos – e, principalmente, a questão relativa a quanto de involuntário há nas suas características que nos parecem mais originais – têm desorientado sua interpretação.
No entanto, passada uma certa euforia que se seguiu à sua descoberta – uma empatia a posteriori calcada em códigos de nosso tempo – , outro debate se interpôs a respeito da influência da desrazão em sua obra. Se nos anos setenta e oitenta, sob a influência da História da Loucura de Foucault e da antipsiquiatria, a loucura do autor foi valorizada como libertária, em anos recentes diversos estudos retomaram sua patologização. Alguns estudos têm procurado apontar excessos na revisão histórica de seu valor literário. Outros têm reduzido seus escritos a sintomas de sua doença.
Sintoma interessante dessa fase de revisão da canonização, um artigo de Friedrich Frosch, publicado em 2010, questiona o que considera excessiva valorização de Qorpo-Santo, lembrando que outros autores, entre eles Flávio Aguiar em seu estudo pioneiro, apontaram inconsistências em sua obra. Frosch questiona se a suspensão da “normalidade” da linguagem por Qorpo-Santo, em meio às suas inconsistências, ausência dos “grandes assuntos da humanidade” e idiossincrasias de mau gosto, se justificam diante da necessidade de comunicabilidade da “literatura como sistema”. Sem prejuízo da necessária liberdade de pesquisa em relação a juízos mais sedimentados, podemos perceber aqui as forças do sistema literário reagindo para manter a ordem.


Menos importante do que seus textos teatrais, a meu ver, a poesia de Qorpo-Santo foi descoberta e começou a ser estudada mais recentemente, a partir da publicação do livro de Denise Espírito Santo (SANTO, 2000). Um aspecto importante da publicação de seus poemas é o de que sua leitura nos permite relativizar o alcance do debate entre os que associam o autor à literatura do absurdo e aqueles que o associam com o surrealismo.
Na introdução à edição dos poemas organizada por Denise Espírito Santo, Flora Süssekind, lembrando que o diagnóstico de loucura contra Campos Leão falava em “grafomania” – a compulsão de escrever –, analisa diversos aspectos da tendência a expor a materialidade da escrita que se observa em sua poesia, análise que pode contribuir para a leitura de seus textos teatrais. Essa constante exposição de aspectos materiais da escrita e da impressão está associada, nos textos, ao terreno das condições contingentes, ao precário e imprevisível, que Süssekind definiu como “uma espécie de princípio constitutivo de interrupção”. A “rede de descontinuidades” que a autora identifica faz lembrar a definição de Aguiar para os textos teatrais de Qorpo-Santo como “teatro da paralisia”:

“(...) uma sintaxe disjuntiva marcada graficamente por travessões, vírgulas e apóstrofes, impondo, visualmente mesmo, rupturas discursivas e uma desestabilização continuada a cada retrato diverso, a cada transformação da imagem autoral, a cada novo discurso (do jurídico ao religioso, da moralidade familiar à referência literária, da retórica amorosa às convenções dramáticas) de que os seus textos parecem se apropriar”. (QORPO-SANTO, 2000: 20)

Com relação às rupturas e às desestabilizações contínuas, Fraga observa que as unidades aristotélicas de espaço e tempo não se aplicam nos textos teatrais de Qorpo-Santo; em suas peças tempo e espaço são inconstantes e instáveis. A ocorrência dessa inconstância, da rede de descontinuidades, também em sua poesia, sugere que o espaço-tempo do autor gaúcho é o da escritura, numa espécie de metalinguagem dilacerada pela alienação.
O autoisolamento do autor na grafomania parece ser uma das razões para sua defesa de um novo sistema ortográfico, como podemos encontrar, por exemplo, num de seus poemas:

Se querem que viva o C
Façam soar sempre C:
Nunca dêem-lhe o de Q
Não roube o C ao Q

Enfatizando a dicção satírica e o nonsense, Denise Espírito Santo, ao apresentar a edição de poemas que organizou – trabalho de pesquisa de grande mérito –, faz, a meu ver, outra importante contribuição ao apontar para a presença de elementos do grotesco da cultura popular na obra de Qorpo-Santo.
Farsa, burlesco, obscenidade, desproporções risíveis, situações absurdas, agressões, escatologia, rústicas transações entre cultura e natureza, são algumas das características do grotesco que encontramos na obra do autor. Se tudo isto confirma desvios da norma estética dominante e rebaixamento de valores socialmente aceitos, também é certo que, conforme afirmam tanto críticos quanto defensores, encontram-se nas peças teatrais e nos poemas reações conflituosas de Qorpo-Santo em relação a eles. São frequentes, mesmo, manifestações ideológicas conservadoras que contradizem esses desvios. Contam-se diversas situações de embate com as leis e desmoralização dos códigos (linguísticos, de conduta social), bem como declarações de respeito às mesmas e aos mesmos, provavelmente nos momentos em que era tomado de seu recorrente desejo de reconhecimento social.
De qualquer modo, em meio a contradições e paradoxos, são muitos os sinais do grotesco que emergem nos poemas, como o antropomorfismo de que temos vários exemplos, como o poema “Um queijo” ou o poema “Objetos de conversação”:

Fala-se com as flores,
Fala-se com os frutos,
Fala-se com as cores,
Fala-se com os brutos!

Fala-se com a tinta,
Fala-se com o papel,
Fala-se com a pinta,
Fala-se com o pincel!

Do corpo rebaixado, não-idealizado, estudado por Bakhtin na sua extensa pesquisa sobre as características da cultura popular, temos exemplos vários, tanto nas peças teatrais como em poemas como “Uma minha tripa”, “A minha barriga” e “Tripas”. Denise Espírito Santo destaca a imagem da glutoneria recorrente na poesia e no teatro de Qorpo-Santo, associando-a ao”tom triunfal e alegre” das imagens excessivas de banquete que Bakhtin estudou na obra de François Rabelais. Outro elemento com origem na cultura popular que Denise identifica na poesia do autor é o bestialógico; insetos e roedores assumem a condição de protagonistas em vários textos: exemplos são os poemas “Uma aranha”, “Ratos”, “Que formiga!”, entre outros.
Wolfgang Kaiser e Anatol Rosenfeld observaram que o grotesco marca profundamente a nossa época de contrastes violentos e exprime “a desorientação em face de uma realidade tornada estranha e imperscrutável” (ROSENFELD, 1993). Kaiser se refere a ele como “solo nutritivo” da pintura e da literatura do século XX. Por este caminho podemos entender porque Qorpo-Santo, descoberto depois do reconhecimento da arte moderna, foi associado a alguns de seus procedimentos.
O autor de “O Grotesco – configuração na pintura e na literatura”, escreveu a respeito do “grotesco linguístico”: trata-se de “forças intrínsecas da língua, que, uma vez desencadeadas, se desdobram a seguir até o absurdo” (KAISER: 1986: 130). Podemos identificar esse grotesco linguístico em Qorpo-Santo tanto na “dramatização do processo ficcional” (QORPO-SANTO, 2000: 18) – frequentemente hiperbólica –, quanto na alternância entre construção e destruição, na criação de neologismos ou no uso do nonsense e da livre associação.
Não virá daí, dessas forças transmitidas ao longo dos tempos pela linguagem popular – o caráter “estrutural” que Kaiser atribuiu ao grotesco –, a força dos momentos mais inquietantes e vívidos dos textos de Qorpo-Santo? Considerando isto, será necessário esperar consciência de ofício de um autor que escreveu uma obra como esta? Não é o estudo de poemas, em vez da poesia como parte do sistema literário, que é capaz de nos educar, conforme sugeriu T. S. Eliot?
Parece que, apesar dos problemas mentais, o autor gaúcho tinha razoável consciência das suas inconstâncias e da sua precariedade, pois expressou isto em vários momentos e de diferentes modos: por exemplo, em títulos – aliás, memoráveis – de algumas peças como “Certa entidade em busca de outra” e “Hoje eu sou um; e amanhã outro”; em versos como “Fui prensado!/hoje sou prensa!”; “Fui bigorna,/ e sou martelo!”; “Passo a rever minhas obras;/passo a cortar-lhe as sobras./passo a examinar-lh’os erros,/a decepá-los passo a ferros”. No magma de linguagem em que viveu seus últimos anos, Qorpo-Santo parece ter abdicado da necessidade social de ter uma identidade:
 “Quando terá esta cabeça um pensamento firme e invariável!? Por que razão hei-de eu sair com a mais firme resolução agora, e passados alguns minutos tomar resolução contrária?
Eudinyr Fraga escreveu, com razão, que a seguinte frase de uma das personagens da peça As Relações Naturais poderia ser uma epígrafe de sua obra: “É preciso dizer-lhe o contrário do que penso”.


Júlio Mendonça é poeta, doutor em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica (PUC) – São Paulo, especialista em Gestão Pública (UFABC) e analista de cultura na Secretaria de Cultura de São Bernardo do Campo. Foi diretor do Departamento de Ações Culturais de São Bernardo do Campo e consultor do Pólis - Instituto de Estudos, Formação e Assessoria em Políticas Sociais. Participou dos livros Cidades: Identidade e Gestão e Libro verde para la institucionalización del Sistema de Fomento y Desarrollo Cultural de la Ciudad de MéxicoO presente texto é um capítulo do livro Poesia (Im)Popular Brasileira, o qual foi organizado pelo seu autor para a Editora Lamparina Luminosa, tendo sido lançado em maio de 2013. Contato: juliocmendonca@gmail.com. Página ilustrada com obras de Antonio Beneyto (Espanha), artista convidado desta edição de ARC.


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